quinta-feira, 10 de novembro de 2022

[#1000][Jan/97] FINAL FANTASY 7


Quase um mês desde a última postagem é algo que não acontece comumente nesse blog, na verdade acho que nunca aconteceu. Porém isso é por um motivo bastante nobre: afinal, o jogo de hoje como vocês já viram no título é algo especial. Eu quero dizer, realmente especial.

Porém antes de falar sobre o jogo em si, eu preciso comentar que selecionei esse jogo especial porque essa é uma review especial a altura, é minha milésima review. Uau, cara, mil jogos jogados e analisados, isso não é algo que acontece todo dia. Na verdade, quando eu comecei a cinco anos e meio atrás essa marca parecia inatingível, apenas um sonho.


Entretanto, aqui estamos nós. Mil jogos. Desses, 392 jogos de Super Nintendo - agora matematicamente comprovada como a plataforma mais popular da época, e 336 jogos de plataforma. Como vocês podem ver, eu realmente joguei muito jogo de plataforma no Super Nintendo velho de guerra.

Verdade também que eu joguei muitos jogos tenebrosos que fazem você cogitar arrancar seus olhos com uma colher, mais precisamente até agora 236, enquanto 123 são joias que merecem a recomendação para as gerações futuras. Ou seja, 23,6% dos jogos lançados entre 90 e 97 são bombas mortais da morte maligna, enquanto 12,3% são realmente especiais. O que é uma média não tão diferente assim de hoje em dia...

Bem, meus feitos históricos a parte, vamos falar de um jogo igualmente histórico. Porque sério, quando falamos de "jogos históricos", não tem como ficar muito mais histórico do que ao ouvir os primeiros acordes da composição filhadaputamente genial de Nobuo Uematsu.


O universo. Uma vendedora de flores que faria o mundo chorar. Um megalopole steampunk onde a tubulação vaza o sangue drenado do Planeta que definha com a exploração... FINAL FANTASY 7. Nós ainda não sabiamos na época, mas naquele momento, naquele momento mágico em que os primeiros acordes tocavam, a história estava sendo escrita. Nada nunca mais seria como antes para os videogames. Bem, verdade que nós ainda não tinhamos como saber, mas também é verdade que dava pra sentir. Final Fantasy 7 é um daqueles jogos que assim que você olha para ele, assim que você segura a caixa do jogo nas mãos, você consegue sentir a energia vibrando no plástico barato dos seus CDs de que essa vai ser uma jornada especial.

E poucos jogos são realmente especiais como FF7.

Eu já vi hentai o suficiente pra saber como isso termina...


Bem, é verdade que a nível de aberturas, eu ainda prefiro o tom épico e melancólico das armaduras Magitek andando na neve do começo de FINAL FANTASY 6, fazendo o Super Nintendo suar efeitos que você sequer julgava serem possíveis naquele sistema, mas o meu ponto aqui é que se você não arrepiou com essa abertura de FF7 é porque você já está morto por dentro. Desculpe, mas não existe outra possibilidade.

Mas, como já fizemos outras 999 vezes nesse blog, vamos começar do começo...

THAT'S A LOT OF DAMAGE!

Em 1996, Ken Kutaragi era o big boss da Sony e ele estava soltando fogo em quem passasse perto dele.  Essa pode parecer uma posição estranha dado que o projeto bancado pelo nome dele e pelo qual ele lutou muito - o Playstation - era um sucesso absurdo de vendas, especialmente para uma empresa sem tradição nenhuma no ramo. 

Então vc poderia imaginar que ele estaria muito feliz com os resultados do PS1, especialmente depois de muito descrédito dentro da Sony de que videogames eram apenas um brinquedo de moda e que ia passar, o aparelho era um sucesso. Financeiramente o retorno era fabuloso, porém seu ego (sempre ele) não estava feliz.

Final Fantasy não é Final Fantasy sem o Malboro e seu Bad Breath... uma piada do jogo que eu levei mais tempo para entender do que eu tenho orgulho em admitir


Recapitulando um pouco a história, a Sony entrou nessa brincadeira quando entrou numa parceria com a Nintendo (com quem já tinha uma boa relação, eles fizeram o chip de som maravilhoso do Super Nintendo) para fazer um acessório de CD para o Super Nintendo... e aí do nada levou um pé na bunda da Nintendo sem nem um jantarzinho pra terminar. A Sony então continuou sozinha desenvolvendo o tal videogame de CD e o resultdo foi o Playstation. Porém o que Kutaragi queria, de verdade, era a cabeça da Nintendo. E esse era o problema, pq vencer a Nintendo não é assim mandioca no cream cheese. Oh não, vencer a Nintendo é onde a jiripoca rebolava a patchanga real.

A Sega tinha feito a gentileza (para eles) de se implodir sozinha, mas a Nintendo estava ganhando a guerra APESAR de adotar uma midia inferior tecnicamente (os cartuchos). SUPER MARIO 64, Mario Kart 64, Starfox 64, International Superstar Soccer 64... os caras não paravam de fazer jogos que vendiam o console, e a esse ponto Kutaragi já estava tendo pesadelos em ouvir três palavras:


Não é que o Playstation não tivesse jogos muito bons até aquela altura (TOMB RAIDER e RESIDENT EVIL são fenomenais, por exemplo), mas ele sabia que se eles continuassem apenas trocando golpes de igual para igual com a Nintendo o publico ficaria com a marca que eles já conheciam e confiavam. Quem cresceu com um Nintendinho e teve um Super Nintendo só não teria um Nintendo 64 se a Sony tivesse um jogo radicalmente diferente, um killer app para a todos dominar e na escuridão aprisiona-los.

O problema é que isso é mais fácil falar do que fazer. Você não pode simplesmente chegar pra alguém e dizer "me faça um único jogo que sozinho ganhe a guerra"... alias até pode, mas o cara capaz de fazer isso trabalhava na Nintendo - e esse era o problema.


Ele varreu o Japão de ponta a ponta, procurando uma desenvolvedora que solucionasse o seu problema... e óbvio que não encontrou. Fazer jogos bons era uma coisa, e isso o Playstation tinha, mas fazer um jogo que sozinho fizesse as pessoas dizerem "eu vou comprar um PSX por causa DESSE jogo"... aí é que são elas.

O que nos faz voltar ao ponto que Ken Kutaragi estava furioso. Então eis que começa uma comoção do lado de fora da sua sala, as pessoas falando alto, a segurança sendo chamada, ele ouve claramente sua secretária dizendo para alguém que ele não podia ir entrando desse jeito... para nenhum efeito. Entra na sua sala um japonês de poncho e sombrero, arrastando um caixão por uma corrente de ferro.

"Hey, hombre, eu ouvi que..."

ESPERA, ESPERA, ESPERA, PARA AÍ. TÁ, EU SEI QUE TU ROMANTIZA A HISTÓRIA E TOMA CERTAS LIBERDADES POÉTICAS, MAS O JAPONÊS PISTOLERO MEXICANO JÁ É IR LONGE DEMAIS!

Pode parecer isso, mas olha a portentosa bigodera do cidadão e me diga se é possível imaginar que essa conversa aconteceu de qualquer outra forma:


É, OKAY, FAZ SENTIDO...

Pois é. Mas então voltando a história... o CEO da Sony estava perplexo diante daquela figura exótica, porém antes que ele pudesse dizer alguma coisa, o estranho lhe falou:

"Hey, hombre, eu ouvi que estas procurando alguém que possa vencer a Nintendo. Eu posso fazer isso... por um preço."
"Ma-Mas quem diabos é você e como passou pela segurança?", perguntou Kutaragi incrédulo
"Meu nome é Hironobu Sakaguchi, e quanto ao que aconteceu a sua segurança... vamos dizer que seu RH vai precisar abrir vagas em breve"

Sakaguchi... ele conhecia aquele nome. Todo mundo no Japão conhecia, era uma lenda. Se havia alguma chance de vencer a Nintendo, ela estava bem diante dos seus olhos. Ele relaxou um pouco em sua cadeira de couro de carneiro albino da Malasia, e disse ao estranho:

"Se você é quem diz ser... então pode ser que você consiga. Qual o seu preço? Dinheiro não é problema, desde que você realmente destrua a Nintendo", ele disse inconscientemente coçando a parte da bunda que levou o chute metaforico da Nintendo anos atrás.

"100 milhões", o forasteiro disse friamente
"Cem milhões de ienes? Isso é bastante dinheiro...", Kutaragi ponderou
"De dolares", o pistoleiro completou.

Ken Kutaragi olhou incrédulo para a figura em sua sala. 100 milhões de dolares em 1996 é mais ou menos o equivalente a uns 200 milhões hoje, e nos dias de hoje é um orçamento que pouquíssimos jogos (ou mesmo filmes) podem alegar ter. Pra vc ter uma ideia, o orçamento de GTA 5 em 2013 foi de 137 milhões de dolares e Cyberpunk 2077 em 2020 foi de 174 milhões. E ambos são jogos colossais, singularidades em vendas por si próprios que seus numeros formam sozinhos buracos negros de tão pesados que são.

Então um jogo custar 100 milhões em 1996... cara, é muito dinheiro pra caceta mesmo.


Porém Ken Kutaragi olhou aquela figura, e soube que ele não quebraria o status quo da industria sem correr riscos. Ele apenas perguntou sobriamente:

"Você pode me garantir que consegue vencer a Nintendo?"
"Eu tenho um bando de garotos especiais lá no meu escritório. Depois que eles terminarem, ninguém mais vai cogitar comprar um console da Nintendo pelos próximos dez anos. Pode contar com isso."

E dito isso uma bola de feno rolou entre eles no escritório, e o estranho se retirou arrastando o caixão que trazia consigo. Kutaragi estava correndo um risco incalculavel... ou melhor dizendo, um que ele estava com os numeros na mão ali para calcular... mas era um risco que ele estava disposto a correr se isso implicasse acabar com a Nintendo.


Foi assim então que nasceu o primeiro videogame de todos os tempos a ter um orçamento de CEM MILHÕES DE DOLARES. Putaquepareo ragatanga... isso é dinheiro pra caceta mesmo... mas o que foi feito com esse dinheiro todo? Algo que, como Sakaguchi havia prometido ao big boss da Sony, nunca havia sido feito antes em um videogame.

Mas como, exatamente, isso aconteceu? Bem, duas coisas realmente grandes aconteceram durante o desenvolvimento de FF7 que influenciou pesadamente o desenvolvimento do jogo. Dois eventos únicos na história da humanidade, pode-se assim dizer.



O primeiro, todo mundo mundo conhece: o fenomeno Neon Genesis Evangelion. O anime de 1995 que misturava robos gigantes e waifus com depressão e discussões filosoficas-religiosas tomou o Japão de assalto e logo o mundo. Eu já comentei que durante o desenvolvimento de SUPER MARIO RPG: Legend of the Seven Stars a Square já tinha incluído referencias a esse anime que eles claramente gostavam pacaraío. Porém FF7 não é apenas sobre referencias, as raízes do anime se espalham ao próprio core de desenvolvimento do jogo.

"Quem eu sou? Qual o meu proposito? Pelo que eu estou lutando e o quão longe eu estou disposto a ir? O que eu lembro foi realente o que aconteceu?" são questões sobre as quais FF7 foi construído. É bastante seguro dizer que FF7 é o jogo narrativamente mais ambicioso já escrito até então, sua trama realmente tenta ir a lugares além do "vamos derrotar um império do mal" (que aqui é uma mega corporação, mas funciona do mesmo jeito) de uma forma que 1997 ainda não estava preparado.

TÁ, MAS QUAL A OUTRA?

A outra o que?

TU DISSE QUE O JOGO FOI INFLUENCIADO POR DUAS COISAS REALMENTE GRANDES NO SEU DESENVOLVIMENTO. UMA FOI EVANGELION, QUAL FOI A OUTRA?

Bem, a outra foi uma das maiores coisas que pode acontecer na vida de alguém, só que em escala pessoal: a mãe de Hironobu Sakaguchi, o produtor do jogo, faleceu durante a produção de Final Fantasy 3 (não o FINAL FANTASY 6 que foi lançado no ocidente como FF3, o verdadeiro FF3 de 1988) e desde então ele sempre quis fazer um jogo sobre isso.

... e orgias gays, é sobre isso tb


Sobre o que a vida significa, sobre o peso de perder alguém querido, sobre como continuar depois que alguém tão importante em nossas vidas se vai e nós continuamos. Sobre o silencio, sobre a casa vazia que resta no dia seguinte. Embora a série Final Fantasy não seja realmente estranha a eventos dramáticos - com efeito, uma das cenas mais profundas da história dos videogames é quando a Ceres tenta se suicidar em FF6 depois que o Kefka vence e o fim do mundo acontece - Sakaguchi sempre sentiu que a tecnologia ainda não estava pronta para ele contar uma história tão cara ao seu coração.

Havia um limite de texto nos cartuchos, um limite no número de cores, um limite no número de músicas... a história que ele queria em seu coração verdadeiramente contar não poderia ser contada em um Nintendinho ou mesmo um Super Nintendo.

Mas então, agora estamos na quinta geração de consoles. O poderoso Playstation ostenta uma midia (o CD) capaz de armazenar 500MB de informação, é mais de 100x o tamanho do espaço em um cartucho de Super Nintendo. E mais: CDs são baratos de prensar, um jogo sair em 3 CDs não é nada financeiramente proibitivo (já um jogo sair em 3 cartuchos, taqueopareo, que facada), então ele podia facilmente ter mais de um 1,5GB de espaço para contar sua história.


Essa era a hora, esse era o momento pelo qual ele esperou por mais de dez anos. Um sonho de dez verões era finalmente possível, a tecnologia estava finalmente pronta para tal. E então nasceu esse jogo, um jogo fortemente inspirado pelo mais revolucionario anime de uma decada e pelos sentimentos pessoais de um artista cozinhados por quase dez anos. E aí você começa a entender o que faz Final Fantasy 7 um jogo tão grandioso.

Sendo o produtor do jogo, Sakaguchi então sentou com o compositor Nobuo Uematsu, o diretor Yoshinori Kitase e o time de roteiristas (do qual ele fazia parte) e colocaram esse show na estrada. A história da mega corporação que tentou drenar a vida do mundo, do fantoche sem memórias, da vendedora de flores e do anjo de uma só asa.

Aerith zoando a Claudete é um dos top 5 momentos da historia dos videogames

Mas como, exatamente, você transmite a sua mensagem? Se o tema do jogo é "vida" e o que ela realmente significa, como você faz essa mensagem chegar genuinamente ao coração dos jogadores? Bem, é bastante simples (ao menos no papel): você faz os jogadores se importarem. A morte é a grande ferramenta para mostrar o valor da vida, porém ela só tem significado se a audiencia se importar.

Veja, personagens morrerem durante um jogo não era algo inédito nos videogames. Não era comum, mas estava longe de ser um evento sem precedentes. Em PHANTASY STAR 4: The end of Millenium, lançado três anos antes, a Alyz é a melhor personagem do jogo mas de longe e ela morre na metade da  história. O que Final Fantasy 7 faz então de tão diferente para ilustrar o seu ponto sobre a vida e morte?

Ele parte o seu coração, é isso que ele faz. Porque não tem como falar sobre Final Fantasy 7 sem falar sobre Aerith Gainsborough, a vendedora de flores que fez o mundo inteiro chorar.


Aerith é, até esse ponto da história dos videogames, a personagem melhor escrita até então. Ela é uma garota que cresceu nas favelas do Setor 5, e embora visualmente ela possa parecer o estereotipo de princesinha indefesa a ser salva - algo comum em videogames - ela é definitivamente tudo menos isso. 

Ela fala não tem medo de falar o que ninguem mais tem coragem de dizer, ela fala pelos cotovelos, ela é muito perspicaz, diz o que pensa e sabe o que quer. Ela é uma mulher independente que flerta com o protagonista pq ela é segura de si mesma, ao mesmo tempo que vê através da sua fachada de guerreiro durão. Ela tem uma personalidade forte e é extremamente divertido passar tempo com ela, ela é aquele tipo de pessoa que é sempre gostoso ter por perto. Ela não é nem a princesa a ser resgatada, nem a badass inatingível como a Lara Croft em Tomb Raider, e sim o tipo de garota do qual você genuinamente gostaria de ser amigo dela.


Como dá pra ver, eu tenho muita história com Aerith Gainsborough. Eu sei que, falando sério, fora do eu lirico desse blog, parece estranho dizer isso sobre um personagem fictício de um videogame, mas Aerith é incrivelmente importante para mim. Eu tenho jogado videogames a maior parte da minha vida, e tenho uma relação muito profunda principalmente com RPGs, e eu não consigo pensar em nenhum outro personagem que mudou meu relacionamento com RPGs, e com personagens femininas em particular, mais do que a Aerith.

A primeira vez que Aerith tem uma longa cena no jogo é em uma igreja abandonada nas favelas do Setor 5 por volta de uma hora de jogo, e isso é um forte contraste com a hora anterior. Sua introdução é uma lufada de ar fresco: até esse ponto na história nossos heróis, Cloud, Tifa e Barret estão bem estabelecidos neste mundo steampunk sujo e cinzento - todos os três lutam contra a megacorporação maligna Shinra e vivem em favelas igualmente cinzentas e sujas. 



Mas a primeira vez que vemos Aerith na igreja, a tela dá um fade-in em branco, como se estivessemos vendo a luz do Sol pela primeira vez em muito tempo (o que, no caso da suja e sombria cidade de Midgar é bem o caso). A igreja em si é bem iluminada, em comparação com os marrons e cinzas das favelas e reatores que vimos antes, e as roupas de Aerith são muito mais brilhantes e coloridas do que qualquer outra que vimos até agora.

Aerith parece um ser saído de um outro mundo muito diferente de Midgar, e é muito dificil não ficar fascinado pelo seu jeito. Os seus jogos de palavras tentando provocar Cloud que ele se levava a sério demais, a energia contagiante em seus passos enquanto ela se movia, e seu entusiasmo pelas flores e pela igreja, enquanto ela falava sobre elas. Aerith tem um mindfulness contagiante, tudo que ela faz tem o máximo da sua atenção e ela trata cada momento como único e especial, mesmo nos piores momentos. Sua positividade e seu amor pela vida são algo que não se vê todo dia em videojogos, eu te digo.


São esses pontos fortes e sua natureza caprichosa que tornam Aerith tão memorável, e ela continua se destacando assim durante a maior parte do jogo. Embora o PS1 não tenha gráficos 3D muito complexos, eu conseguia imaginar claramente o seu smirk quando quando ela está na saída do Setor 5, sabendo que o Cloud ia tentar voltar para o Setor 7 sem ela como guia. 

Quando chegam ao parque, Cloud diz adeus a Aerith, mas ela não reage da maneira que ele esperava. "Oh não!" ela responde zoando ele, "'O que será de mim agora!?' ... não é isso que você quer que eu diga?" Aerith está brincando com Cloud, mas ela também o está confrontando porque ele está tentando protegê-la e apesar de sua aparência indefesa, Aerith conhece as favelas e sabe se virar perfeitamente bem. Tão importante quanto isso, ela está brincando com noções de estereótipos de gênero nos videogames (e nos anos 90 de modo geral), ela está desafiando a percepção de Cloud e do próprio jogador.


Porém, como cabe aos grandes personagens, Aerith não existem também suas vulnerabilidades. Nessa mesma cena do parque, onde Cloud e Aerith discutem sobre a SOLDIER (uma classe de soldados de elite dentro da megacorporação maligna do mal Shinra), e Aerith claramente quer perguntar a Cloud se ele conheceu o namorado desaparecido dela (afinal Cloud se apresenta como um ex-SOLDIER e não existem tantos soldados dessa classe, era bem provavel que eles se conhecessem). Porém ela se recusa a mencionar o nome dele não pq ela esta fazendo joguinhos com Cloud, mas pq genuinamente ainda dói nela. 

Aerith tenta viver o momento e aproveitar sua vida, mas não quer dizer que ela seja invulneravel a dor, ou a ter medos ou dúvidas. Ela apenas... faz o melhor que ela pode nesses momentos. Ela tenta sorrir e ser positiva, mesmo quando dói. Ela definitivamente não é perfeita ou invencível, ela tem medo de descobrir mais sobre si mesma e sobre os Cetra, mas ela precisa para salvar o Planeta, e nem uma vez ela reclama ou foge do seu compromisso. Ela sorri com dor, sempre tentando se manter positiva e manter o moral do grupo.

Espero que um dia esse blog chegue até o Remake de 2020, eu tenho sentimentos interessantes para compartilhar a respeito desse jogo

Perceber o seu medo em Cosmo Canyon quando ela entende que é a última Cetra, de que esta sozinha no mundo, dói. Cloud pergunta se isso significa que ele não pode ajudar, e ela se recusa a responder. Esta é Aerith sendo um pouco orgulhosa, tentando processar sozinha seu papel no mundo e o que ela tem que fazer para salvar o Planeta. Ela deveria ter compartilhado seus medos com o grupo e pedido ajuda de Cloud e os outros? Teria sido melhor, mas como eu disse ela não é perfeita. 

Ela faz isso de novo no hotel da Gold Saucer, quando ela está começando a entender seu papel e seu responsabilidade como ultima dos Cetra. Ela começa a processar toda a responsabilidade que recaí sobre os seus ombros de salvar o mundo, e que ninguém mais pode faze-lo em seu lugar. Em poucos minutos, ela está de volta ao seu antigo eu alegre, pedindo a Cloud para levá-la em um encontro e empurrando-o para fora da porta do quarto de hotel porque - compreendendo melhor o que ela tem que fazer dali pra frente - ela quer ter uma noite divertida como uma garota normal. Uma última noite.


Enfim, acho que voce pegou uma ideia geral da coisa. Há muito o que gostar nessa pequena vendedora de flores que descobriu ser a última esperança de salvar o mundo e está completamente apavorada por isso, mas ainda sim ela sorri e tenta fazer o melhor que pode da situação. Aqueles momentos lúdicos em que ela coloca as mãos nos quadris para sacanear o quão sério todo mundo está se levando, ou quando ela diz algo para levantar o humor dela e da party quando as coisa estão bem pesadas... Ela me fez rir mais do que a maioria dos outros personagens, e eu ainda sorrio e rio por causa dela até agora. Quando penso em Aerith, penso na vez em que ela se junta a Don Corneo com Tifa, ou quando ela sussurra para Tifa enquanto tenta confortar Barret. Ela traz positividade para o grupo da melhor forma possível, enquanto cuida de todos. 

E suponho que já é bastante claro a essa altura, a esse ponto eu estava completamente apaixonado por ela e eu posso dizer que até hoje, quase trinta anos depois a Aerith é o meu referencial do que é uma mulher por quem eu me apaixonaria. Ela é especial de tantas maneiras que um personagem de videogame nunca havia sido.

Mas então... e então...


Estranho como videogames são referenciados por terem a interatividade como seu diferencial de outras midias, e ainda sim esse é o único momento em que eu realmente quis interferir em um jogo e não pude. Eu digo isso agora, sabendo o que acontece depois disso. Eu queria apenas segurar a mão dela e pedir para ela não ir, que a gente vai achar outra jeito. Mas então, suponho que eu deveria saber que poucas coisas no mundo são capazes de impedir Aerith Gainsborough de fazer o que ela sabe que tem que fazer.

No instante em que a White Materia começa a rolar pela escadaria e a música tema dela toca, eu comecei a chorar como nunca antes eu havia chorado jogando videogame. Em 1999, e em 2022.



É claro que jogando o jogo pela segunda vez eu sabia que isso ia acontecer, mas isso não me fez sentir menos raiva ou tristeza. Foi pior até, pq agora adulto eu consigo entender melhor as entrelinhas e entender o que a tornava uma personagem tão incrível. As próprias palavras de Cloud para Sephiroth resumiram meus sentimentos e minha dor naquele momento:

Aerith não vai mais falar, não vai mais rir, chorar… ou ficar com raiva…

O centro emocional da party e o coração e a alma do grupo se foi. Aerith era uma pessoa que amava a vida. Ela adorava sentir essas emoções e não as experimentaria mais. Essa frase ficou comigo desde então. Teve então outra cena, logo em seguida, que me fez desabar de vez: logo após Cloud colocar o corpo de Aerith para descansar no fundo do lago, os membros da sua party vem falar com Cloud - no meu caso eram Barret e Yuffie.

... AND AERITH APROACH THE RING WITH A STEEL CHAIR!!!

Barret é aquele machão enorme que está claramente usando toda força dos seus musculos para não desatar no choro na frente de Cloud, e é o que eu esperaria dele. Yuffie me quebrou, entretanto. Vê, Yuffie é a genki girl do grupo e que não leva as coisas muito a sério por causa da sua juventude - o que lhe dá alguns dos melhores comentários do jogo, porque ela fala mesmo e foda-se. Então, pela personalidade dela, vc esperaria que Yuffie mais ou menos agisse como Barret e tentasse disfarçar a dor, talvez dizendo alguma bobagem tsundere para tentar mostrar aos outros o quanto ela era cool e não se importava (mesmo que por dentro se importasse), seria algo mais ou menos assim que eu esperava que ela fizesse.

Como ela reage, entretanto, não poderia ser mais diferente disso.


Essa é a única cena do jogo em que Yuffie não consegue esconder que ela é apenas uma criança, a morte é algo que ela nem deveria conhecer nessa idade, e ela começa a chorar em desespero. Especialmente na cultura japonesa onde o contato fisico é algo bem reservado, ver o quanto ela desmonta e abraça o Cloud foi muito forte pra mim.

Sabe, é curioso quando vc pensa sobre isso pq ela está ausente da história pela maior parte da sua duração, mas sua presença persiste mesmo dezenas de horas no jogo depois. Mesmo se você removesse o arco do meteoro e a Holy Materia de Aerith, sua vida ainda importaria muito depois de sua morte.

Existe um buraco no grupo dali pra frente, e ninguém consegue disfarçar o quanto ela faz falta. Quando Tifa tenta desesperadamente ajudar Cloud com seus problemas existenciais de identidade, ela mesma reconhece que ela não é Aerith. "Se Aerith estivesse aqui ela saberia o que fazer", ela diz desesperada ante sua impotencia em ajudar Cloud.



Porém a ausencia de Aerith no seu grupo dali pra frente não é apenas emocional ou narrativa, ela é mecanica enquanto jogo - e aqui é a cereja do bolo de genialidade da coisa toda: o jogo nunca mais te dá uma healer tão boa quanto Aerith. Você pode usar itens, você gambiarrar (eu dei uns pulos pra upar o stat de magia da Yuffie e foi o que deu pra arrumar), mas existe um buraco mecanico na sua party pra lembrar que ela não está mais lá. Um buraco que jamais será preenchido, em todos os sentidos.

E isso foi, como dizem os gringos, by design. Não existe mérito maior que um videogame possa atingir do que não apenas te falar sobre uma ideia ou sobre um ponto, mas mecanicamente através do jogo mesmo te fazer sentir algo que nenhuma outra mídia conseguiria fazer sentir. Poucos jogos conseguem isso.



Death Stranding precisa ser um videogame pra vc sentir em seus ossos o ponto que o Kojima quer passar sobre o jogo, Spec Ops: The Line precisa ser um jogo para você viver com a culpa de que ninguém te mandou fazer o que você fez, e Final Fantasy 7 precisa ter eternamente o buraco de uma healer dedicada para derramar sal sobre uma ferida que mesmo passados quase 30 anos, jamais fechou. 

Eu costumo dizer que existem três grandes buracos no coração de um nerd que jamais serão curados, feridas que continuarão doendo até ele dar o seu último suspiro. Uma é nunca ter existido uma segunda temporada de Firefly, outra é a tragédia (não no sentido narrativo e sim no sentido de tecnicamente uma desgraça mesmo) que é o segundo CD de Xenogears (chegaremos a isso em breve)... e a terceira é quando a vendedora de flores prometeu que voltaria quando tudo estivesse acabado.


Sabe, durante grande parte da minha vida eu sempre achei que eu sempre fui apaixonado pela Aerith, e enquanto em um certo nível isso é verdade, rejogando o jogo hoje eu entendo que não é bem isso. É algo além, maior que isso.

Veja, durante toda minha vida eu lutei contra níveis de solidão e depressão que a maioria das pessoas não poderia sequer começar compreender. Com efeito, meu maior medo hoje é de acontecer alguma coisa comigo pq senão meus cachorros vão literalmente morrer de fome já que eu não tenho nenhuma relação com outro ser humano, eu não tenho contato com amigos ou familiares em um nível literal, não é raro eu passar semanas sem dizer uma única palavra a outro ser humano, isso é o quão sozinho eu sou. Também precisa ser dito que isso não é culpa de ninguém senão minha própria, eu entendo que eu sou uma pessoa extremamente repulsiva de se estar por perto.

Os japoneses tem ideias estranhas sobre como é a vida na favela...

Rejogar FF7, entretanto, me ajudou a entender que o que me fascina tanto na Aerith não é que eu gostaria que ela fosse minha namorada ou algo do tipo (não que essa ideia seja ruim, mas né), mas sim... que ela é o tipo de pessoa que eu gostaria de ser. A capacidade de Aerith de cultivar flores mesmo em uma terra estéril reflete a maneira como ela cultiva o melhor nas pessoas ao seu redor.

Agora, como adulto, eu entendo o significado mais profundo dessas flores. Apesar das condições pouco mentalmente saudaveis que eu me encontro, eu escolhi ser resiliente. Eu escolhi sobreviver. Alguns dias são mais dificeis do que outros, as vezes parece que o meteoro de Sephiroth esta vindo na minha direção, mas eu realmente estou fazendo o melhor que eu posso da forma que eu consigo porque fazer o melhor de cad adia é tudo que se pode fazer, essa é a grande lição de Aerith.

Isso é o que eu quero dizer no sentido de que ela é uma inspiração sobre que pessoa eu gostaria de ser. Não alguém sem problemas ou defeitos, porque isso não existe, mas alguém que faz o melhor que pode e trás o melhor das pessoas que se aproximam dela. Mais do que precisasr de uma Aerith na minha vida, eu preciso ser mais como ela. Até pq, como a Asuka disse em Rebuild of Evangelion:


De forma similar, para ser o melhor que eu posso ser nas condições em que me encontro eu preciso de uma amiga mais do que de uma namorada, e pelas últimas 100 horas ela foi minha melhor amiga, assim como foi a primeira que eu tive lá em 1999. 

Existem muitas outras coisas sobre Final Fantasy 7 além de Aerith, obviamente. Existem kaijus (com uma grande cena de referencia Godzilla inclusive, como direito a música e tudo), existe um sistema de Matérias muito interessante, existem todos os elementos inspirados por Evangelion sobre identidade que eu mencionei brevemente antes, existe a filhadaputesca trilha sonora composta pelo maestro Uematsu, existem subsistemas incrivelmente complexos para a época (como todo sistema complexo de criação de Chocobos que é praticamente um game dentro do game ou os combos que dá pra fazer com as Matérias), dezenas de minigames, existe um sistema de combate aprimorado do jogo anterior adicional um melhor uso da ATB e dos Limit Breaks, existe uma trama que consegue costurar satisfatoriamente bem dois subplots aparentemente sem relação (a treta contra a Shinra matando o Planeta e o Sephiroth como real vilão) e muitas, muitas outras coisas.

Essa ideia de usar cenários pré-renderizados como em RESIDENT EVIL nunca havia sido tentada em um jogo tão grande, e foi o que impressionou geral na época pq o jogo tem quase uma centena de cenários únicos todos redondinhos e bonitinhos

Mas a coisa é, esse texto já está com 5 mil palavras e você meio que pode ler sobre os aspectos tecnicos de FF7 em qualquer lugar. É um jogo gigantescamente famoso e muita gente já dissecou ele sob tantos angulos possíveis. O que eu queria contar aqui era a minha visão particular do porque esse jogo importa tanto.

Tecnicamente eu não diria que é o melhor RPG de todos os tempos, não diria nem que é o melhor Final Fantasy de todos os tempos... e nem que é o melhor FF do PS1 (esse seria o FF9, você tem o direito de concordar comigo ou de estar errado). Mas é um dos videogames mais importantes de todos os tempos e eu espero ter iluminado um pouco do porque.

Outro problema é que eu rio dessas coisas


No final de Final Fantasy 7,  o meteoro está indo em direção ao planeta, mas mesmo na morte (ou por causa dela, mais exatamente) Aerith comanda para que o Lifestream emerja do planeta, empurrando o meteoro para trás e permitindo que a White Materia o destrua. Eu gosto particularmente desse final porque é uma metáfora muito poderosa, mostrando que aqueles que já se foram das nossas vidas ainda têm o poder de nos ajudar. As memórias, emoções e conhecimento daqueles que se foram das nossas nunca realmente nos deixam completamente, e as interações que tivemos com eles se tornaram parte de nós.

Como uma  outra grande personagem de Final Fantasy diria dali a alguns anos, "The people and the friends that we have lost, or the dreams that have faded... never forget them".

Depois dos acontecimentos recentes, e principalmente ao escrever esse texto, eu lembrei daquela frase clichê, esqueci exatamente as palavras mas é algo como: "Quando você abraçar alguém, abrace como se fosse a última vez que você vai abraçá-lo, porque um dia vai ser, e é muito verdade". A vida é curta, então abrace seus sonhos, abrace as pessoas que você ama e abrace a sua vendedora de flores como se fosse a última vez. Um dia será. E ligue para a sua mãe enquanto você ainda pode.


E... bem, isso ficou um pouco mais pessoal e confuso do que eu originalmente esperava, mas tudo bem. Afinal essa foi a review número 1000 desse blog, então eu suponho que posso me permitir ser confuso e pessoal.

Eu gostaria de agradecer as pessoas que me ajudaram durante essas mil reviews e os amigos eu perdi durante o caminho, mesmo que não estejam mais comigo todos vocês foram parte muito importante dessa jornada e para sempre farão parte de quem eu sou.


E, mais importante que isso, esse definitivamente não é o fim dessa jornada! Mas nem perto disso, vamos agora rumo um dia aos DEZ MIL jogos! Isso é sequer possível? Bem, só tem um jeito de descobrir!

E é isso meu povo, continuem estranhos e continuem jogando!

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 118 (Agosto de 1997)

Edição 121 (Novembro de 1997)

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 025 (Abril de 1996)


Edição 037 (Abril de 1997)


Edição 038 (Maio de 1997)


Edição 044 (Novembro de 1997)











Edição 52 (Julho de 1998)




MATÉRIA NA GAMERS
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