sábado, 19 de dezembro de 2020

[SUPER NINTENDO] FINAL FANTASY 6 (Abril de 1994) [#589]



Em 1937 já existiam desenhos animados, mas eles eram eram exibições curtas entre as sessões duplas de cinema (desenhos de 5 minutos como Tom e Jerry, Pernalonga, Mickey Mouse, etc). Por isso quando Walt Disney anunciou que pretendia fazer um longa metragem animado, ninguém realmente entendeu do que ele estava falando. Nem mesmo no seu staff.

Quer dizer, ele ia fazer um filme de uma hora e meia só de piadinhas e comédia pastelão? Onde que ele ia arranjar tantas piadinhas visuais e como que isso não ia ficar cansativo? Só tem até determinado ponto que você consegue ver alguém levando uma paulada cartunesca antes de ficar cansativo e cinco minutos eram tudo um desenho animado servia, afinal.


Após FF1, o próximo FF a ser portado para o ocidente foi apenas o FF4 - que foi renomeado como FF2. O FF5 nunca foi lançado nos Estados Unidos e assim o FF6 foi lançado na América como FF3... com a capa menos americana ever. Quer dizer, eu realmente esperava uma capa com um close no peitoral suado do Sabin, que é bem mais o gosto americano de capas que colocar um Moogle fofinho

Walt Disney então explicou que ele não queria fazer uma esquete animada de uma hora e meia, ele queria fazer um filme FILME mesmo, de verdade, com personagens, ação, e até mesmo fazer o público chorar. A maior parte da sua equipe ficou olhando pra ele com uma cara "do que é você tá falando, seu doido, como é que alguém vai se emocionar com um desenho animado?".

Ele viu o olhar de incredulidade no olhar de seus funcionários, mas seguiu adiante. Ele sabia que aquele era o futuro e nada o demoveria de realizar sua visão. Nada, nem mesmo a realidade. Para financiar o filme ele se encheu de empréstimos, empenhou sua empresa, hipotecou até mesmo sua casa. Porque era o que ele tinha o que fazer.

E então, em 21 de dezembro de 1937, aconteceu. Sob todo ceticismo de todos os envolvidos, da imprensa até o porteiro do cinema, aconteceu. Mais precisamente, essa cena aconteceu:



Aconteceu. Pela primeira vez na história da humanidade, um desenho animado fez as pessoas chorarem. E as coisas jamais voltariam a ser as mesmas. Walt Disney havia mudado o mundo para sempre.

E porque eu estou falando de Branca de Neve aqui, nesse momento? Porque é a melhor analogia que pode ser feita. Em 1994, videogames estavam mais ou menos na mesma situação que a animação estava em 1937: uma midia jovem, boa para algumas piadas e bons momentos, mas nada realmente muito além disso. Não existia tal coisa como um jogo "sério", um jogo que você jogasse porque tem uma conexão emocional com os personagens e genuinamente se importa com o que vai acontecer com eles, você quer saber o que vai acontecer com eles tanto quanto se fosse um livro ou um filme. 

Você podia ter uma conexão ou simpatia com alguns personagens, como a Samus Aran ou sei lá, o Ryu ... sabe deus pq... ou ter desejo de uma coleção pouco saudável de posteres da Felicia de Darkstalkers no seu quarto... mas videogames não eram realmente sobre isso. A simples ideia de um videogame ser capaz de fazer alguém chorar era apenas ridicula. Videogames não eram feitos dessa forma em 1994.



Até que um jogo mudou tudo. Quando uma "bruxa" hipnotizada cruzou as planicies congeladas de Narshe em uma armadura Magitek sob o som do vendo e a dolorosamente linda melodia composta pelo gênio Nobuo Uematsu, as coisas jamais voltariam a ser as mesmas. 

Essa é a história de Final Fantasy 6. Porque Final Fantasy não é como qualquer outro jRPG. Não, esqueça isso, Final Fantasy não é como qualquer outro jogos.  


Por anos, a fórmula padrão para jogos de RPG era a seguinte: você, o jogador, leva um grupo de personagens para uma cidade, o que lhe dá uma missão, que o leva a uma masmorra, que contém uma batalha de chefe, que leva você novos níveis e equipamentos, o que permite que você avance para a próxima cidade, o que permite que você faça uma nova missão, que o leva a uma nova masmorra. Enxágüe, repita. 

Final Fantasy VI ... é diferente. Final Fantasy não é como qualquer outro jogo. Nunca foi, desde o seu próprio conceito, o próprio nome da série remete a essa ideia. Em 1987 a Squaresoft era... bem, uma empresa bem merda na real que nunca tinha emplacado um grande sucesso e que provavelmente jamais o faria. Seu maior sucesso havia sido até então Rad Racer, que é basicamente um clone de OUT RUN

Rad Racer, de 1986

Era praticamente inevitavel a falência da Square e que seus funcionários voltassem com o rabo entre as pernas para assumir os negócios da família e cozinhar pão para o parceiro digimon do seu filho sem fazer muitas perguntas. Foi então que Hironobu Sakaguchi juntou meia duzia de gatos pingados dentro da Square e juntos eles decidiram que se essa merda ia falhar mesmo, ao menos eles sairiam fazendo o jogo que eles sempre quiseram fazer. O jogo que eles entraram nessa industria pra fazer (porque afinal você não entra pra industria de videogames se já não tinha um sonho anterior de fazer o seu proprio jogo), a última tentativa desesperada, porém honesta, de viver como um rockstar dos games antes de voltar a ter uma vida merda e um emprego merda de 4am as 23h - como é a rotina do salaryman japonês, afinal.

Uma... fantasia final. Feita verdadeiramente com o coração.


Sete anos depois, as coisas são bem diferentes na Squaresoft. Pra começar, a empresa não está mais falindo. A luz não está ameaçando ser cortada toda semana, os filtros da maquina de café não são mais meias usadas e o refeitorio da empresa não tem mais como 78% de fonte os lanches dos filhos dos funcionários. A Square está bem, está saudável, está... confortável.

E Sakaguchi se sentia incomodado com isso. Em 1994 a Square ocupava a confortável posição de segunda maior produtora do genero favorito de jogos do Japão, muitos sucessos e até mesmo 5 Final Fantasy's depois, tudo estava bem. E esse era meio que o problema.

Sentado em sua poltrona confortável que não mais corria o risco de ser tirada a qualquer momento porque a empresa precisou vender para pagar o aquecimento do mês senão todo mundo morria congelado, ele lembrava dos tempos dificeis. Lembrava da gana, não, da NECESSIDADE de provar ao mundo, provar a si mesmo que ele era um contador de histórias.


Final Fantasy precisava de um novo desafio, esse tanto era certo. Mas o que eles poderiam fazer de diferente? O que eles poderiam tentar que nunca foi tentado antes? Bem, quem sabe... tentar o que nunca foi tentado antes. Sabe o que diz o ditado: a definição de loucura é fazer as mesmas coisas repetidamente e esperar resultados diferentes.

E o que nunca havia sido tentado antes em um videogame? Em 1994, várias coisas.



Mas vamos começar do começo: o que é Final Fantasy? Embora os jogos não tenham uma continuidade entre si, possuem temas recorrente: um império maligno do mal está dominando o mundo, e um grupo de "guerreiros da luz" usa chocobos e airships para usar cristais (ou a Lua) para salvar o mundo. E por algum motivo o plano do vilão usualmente envolve viagem no tempo because... hã, just because.

Tem também alguns elementos recorrentes como as summons, o cara da nave se chama Cid, os itens tem os mesmos nomes, o bestiário é o mesmo, e algumas coisas assim que dão uma identidade a série. São empregadas variações disso como em FF6 os cristais são magicites, em FF7 são a Matéria, em FF13 o cristal do tema é o L'cie,  ou no caso de FF XV, a mecanica do seu carro se chama Cindy. Em FF7 o "império do mal" é uma megacorporação. Enfim, você entendeu, a ideia geral da coisa é essa.

E como você pode ver, não é realmente muito com o que trabalhar e que já não tenha sido feito várias vezes e até melhor por outras empresas. Se é para ser fantasia padrão por fantasia padrão, salvar o mundo de um império do mal e coisas tolkenianas assim, então Dragon Quest já fazia isso muito antes de Final Fantasy e o character designer deles é o famoso Akira Toriyama... mesmo que ele só saiba desenhar 8 personagens, mas se isso nunca impediu Dragon Ball de fazer sucesso, não será agora que isso vai ser um problema.



Considerando que essa seria a sexta iteração da franquia, eu diria que seria bastante seguro dizer que tentar vencer fazendo as mesmas coisas apenas de uma forma ligeiramente diferente é meio que a definição de loucura que eu citei antes.

Mas... o que mais se poderia fazer? Que outra forma existe de contar uma história que não seja, bem, contar a história?

Olha, eu vou te contar um segredo. Só aqui entre nós, chega mais perto, pode chegar mais, isso... o que eu vou dizer pode parecer loucura, mas você sabe no seu coração que isso é a verdade mais verdadeira que há: "o que" acontece é a parte menos importante de uma história. "Com quem" acontece é o que realmente importa.



Pegue todas as obras que no papel deveriam ser épicas, lendárias, magnanimas... e que no fim você apenas bocejou e ficou olhando pro relógio pra ver quanto tempo faltava pra acabar. Invasões alieníginas, ninjas, piratas, robos gigantes, o fim do mundo e o universo em jogo! Tudo isso é muito awesome no papel, mas porque raramente isso funciona?

Por causa das 7 palavras mais perigosas que qualquer criador de conteúdo teme ouvir do seu público: "Eu não me importo com essas pessoas".

Agora pegue o contrário. Uma história particularmente pequena, as vezes até mesmo banal que não tem tanta coisa em jogo assim, mas que você se importa com o que acontece com aqueles personagens. Pegue Clube dos Cinco, por exemplo. Você certamente lembra desse filme, embora não tem certeza do porque. Quer dizer, pense sobre isso: sobre o que é esse filme realmente? Nada particularmente épico: cinco adolescentes hangeando na detenção. Não tem aliens, não tem nada batalhas épicas, não tem nenhum evento alterador de vida (casamento, divórcio, nascimento), não tem nada particularmente digno de nota.



Então por que você se importa? Porque você está interessado, porque você se importa com aqueles personagens. O que eles fazem, o que eles querem, não precisa realmente ser tão grandioso assim. É COMO que importa, não o que?

HMM, MAS E SE VOCÊ JUNTAR OS DOIS? PERSONAGENS QUE VOCÊ SE IMPORTA EM UMA HISTÓRIA ÉPICA E FODA? QUER DIZER, NÃO É COMO SE VOCÊ PRECISASSE ESCOLHER UM OU OUTRO, AFINAL.

Aí, meu caro Jorge, você tem ouro puro nas mãos. Você tem Avatar - The Last Airbender, você tem Kill Bill (filmes de vingança vivem ou morrem por quanto você se importa com o vingador, afinal)m você tem Steven Universe. Infelizmente, isso é muito dificil de conseguir, entretanto. Dificilmente um autor tem o tempo ou mesmo a habilidade necessária para fazer os dois, e se é preciso escolher é muito mais provavel acertar escolhendo focar nos personagens no que em uma trama maior que a vida para carregar um elenco não tão awesome assim.



Eu não estou dizendo que não pode ser feito e algumas obras inacreditaveis entraram para a história focando em um macro tão inacreditavelmente espetacular que os personagens não serem tão apaixonantes pode ser carregado. Duna é o melhor exemplo disso, a história é tão bem tecida, em tantas camadas de uma forma tão inteligente que não é realmente necessário que você se importe pessoalmente com os personagens. Senhor dos Anéis - discutivelmente um dos livros mais influentes de todos os tempos - é outro exemplo de uma história que é carregada nas costas do plot mais do que pelo carisma dos personagens. Então dá pra fazer, só que eu acho muito, muito mais dificil de fazer dar certo.

E eu acho que não preciso dizer que RPGs escritos para o Super Nintendo em 1994 não são exatamente um Frank Herbert da vida, né? E essa foi a realização que a Square percebeu: ao invés de fazer o que todo mundo já fazia, por que não fazer o que ninguém havia feito ainda e fazer um jogo character driven ao invés de plot driven?




MAS POR QUE NINGUÉM TINHA FEITO UM JOGO BASEADO NOS PERSONAGENS AINDA? NÃO É POSSÍVEL QUE NINGUÉM TIVESSE PENSADO NISSO

"Pensar" não é muito o problema aqui, e sim a execução. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que em 1994 videogames ainda eram vistos como brinquedos e quem é que faz produtos para crianças baseado em desenvolvimento de personagens?

MUITA GENTE.

Isso hoje. Mas e em 1994?

NESSE CASO, NINGUÉM.

Pois é. Não se faziam jogos baseados em narrativa de personagem porque não se achava que existia publico para isso. Mesmo no Japão, onde as crianças são tratadas de uma forma menos "conteúdo infantil e para bebês é a mesma coisa" do ocidente, os RPGs se baseavam no QUE acontecia e ainda sim não metiam o dedo muito fundo na ferida. Até porque videogame tinha que passar pela Nintendo e sua politica family-friendly, então nem tinha como ir muito além mesmo.

Então não apenas não parecia haver muita vantagem em fazer isso, como dava muito trabalho. Quer dizer, um RPG em videogame - especialmente um da quarta geração - tem um problema enorme para você desenvolver o seu trabalho: espaço.



Eu quero dizer literalmente espaço mesmo: o número de caracteres que você pode colocar em um cartucho de Super Nintendo é limitado. Se colocar cutscenes então, puta merda, o espaço que já era pouco vai comido a rodo. Então se você vai fazer isso, se realmente quer executar esse plano, você tem que escolher suas palavras com muito cuidado. Cada cena, cada caixa de dialogo tem que contar na caracterização do seu personagem porque o espaço que você é inacreditavelmente limitado.

Suponho que eu não precise te dizer o quão dificil isso é, você tem que puxar uma Rebecca Suggar que conseguia estabelecer personagens, caracteriza-los, criar conflito e resolver o conflito de forma satisfatória em episódios de 10 minutos porque ela é uma TimeLady ou algo assim, sei lá. Pra funcionar o que Final Fantasy 6 queria que funcionasse, eles teriam que atingir esse nível de otimização de recursos narrativos

PARECE UMA PROPOSTA TÃO AMBICIOSA QUANTO DIFICIL. ELES CONSEGUIRAM FAZER ISSO NA PRÁTICA?

Vamos ver umas das primeiras linhas de dialogo do Thief ao ser apresentado como tal, e então me diga você:


Pronto. Esse é o Locke e com uma frase ele já tem mais caracterização do que... bem, quase tudo que já havia sido escrito para videogames até aqui. Eu não posso estressar o suficiente o quão impressionante o trabalho de síntese e otimização de caracterização que é feito nesse jogo, e o quanto isso é vital para a proposta de uma character-driven story funcionar.

Não é de se admirar que isso nunca tenha sido tentado antes, puta merda como é dificil acertar nessas condições! E de alguma forma eles acertaram, isso é o mais impressionante! Claro que alguns truques são usados aqui (no papel, FF6 tem 14 personagens jogaveis, mas alguns desses não tem desenvolvimento algum como Gogo, Umaro e Mog), e eu não diria que eles acertaram TODOS os personagens (o Shadow poderia ter sido melhor wrapupeado), mas ainda sim a frequencia com que eles conseguiram puxar isso é alguma coisa extraordinária.

Hoje, é claro, você pode fazer uma analise e discussão sobre personagens de videogame que são tão complexos quanto de filmes ou livros, como o Joel de TLOU, o Kanji de Perona 4 ou o Big Boss de Metal Gear, e você pode fazer analises profundas sobre eles. Mas isso porque você tem horas de dialogo, tem gestual, expressões faciais, o pacote completo para ser analisado. 

Você poderia argumentar que é meio cuzão da parte dele mandar tirar a areia das botas enquanto eles ainda estão no deserto e vai encher de novo em dois passos... mas é sobre passar uma mensagem


O que Final Fantasy 6 é conseguir entregar personagens que mereçam mais do que um paragrafo de explicação... usando dialogos não muito maiores que um paragrafo. Eu sei que pode não parecer grande coisa hoje, mas eu realmente preciso te lembrar que estamos falando de 1994 e nada do tipo jamais havia sido feito antes na história dos videogames! Caralho, isso é realmente uma grande, enorme coisa!

E melhor ainda, esse desenvolvimento dos personagens são costurados entre si em relacionamentos que você assiste se desenvolverem, tecendo uma trama movida pelos personagens de uma forma rica, como nunca havia sido feito antes. Alguns membros do grupo desprezavam os outros, alguns iriam sair do grupo por motivos narrativos - as vezes em definitivo dependendo de como você jogar. Eles tem problemas perdoando uns aos outros, ou entender porque seus companheiros fizeram as escolhas que fizeram, ou mesmo aceitando a si mesmos como eles são.

O tamanho dos dos sprites e das caixas de texto limita o quanto um personagem de Super Nintendo pode se expressar, mas eu ainda sim entendia seus sentimentos, eu me preocupava com eles, eu estava orgulhoso de lutar por eles e torcer para que eles sejam felizes


Ou então essa cena:


Essa cena - opcional e apenas desencadeada quando você coloca os irmãos Edgar e Sabin em seu grupoe os traz para o Castelo Figaro - revela a trágica história de dois personagens que até então era apenas alivio comico. Sabin é um fortão cabeça-dura; Edgar é um engenheiro lascivo.

Como você aprende no flashback, no entanto, entende que eles passaram por algumas merdas. Seu pai morreu uma década antes dos eventos de Final Fantasy VI, e em seus desejo de morte, ele pediu aos dois irmãos Figaro que governassem o país em seu lugar. Mas nem Sabin nem Edgar queria ser rei. Sabin tenta convencer Edgar a abandonar Figaro, mas Edgar aponta como isso seria covarde. Seu pai, cuja sombra paira sobre os dois, ficaria desapontado se eles fugissem do país. Então Edgar faz uma proposta.

“Vamos resolver isso jogando uma moeda”, diz Edgar. “Se der cara, você ganha. Coroa, eu ganho. O vencedor escolhe o caminho que quiser ... sem arrependimentos, sem ressentimentos. ”



Sabin concorda, e então a câmera segue a moeda no ar por alguns segundos antes de escurecer. Nós sabemos como essa história terminou, é claro. Edgar governou o Figaro como rei por quase dez anos. Sabin, passou a próxima década treinando para ser um artista marcial. No presente, quando eles se reencontram trocam algumas zoeiras, tomam um gole e depois seguem a aventura.

Algumas horas mais tarde, em uma tentativa de convencer o jogador errante Setzer a ajudar sua party a lutar contra o Império, Celes propõe decidir a coisa na sorte e - sendo o gambler que é, Setzer adora a ideia - e Edgar puxa a moeda mais uma vez, propondo que se ele tirar cara, Setzer se junte a eles. A moeda cai em cara, Edgar vence, só que Setzer percebe imediatamente que foi um truque. Edgar usou de duas face iguais.  

Sabin, se estiver na party, comenta "Essa moeda ...", fazendo com que ele e você como espectador juntem as peças as peças: Edgar deixou seu irmão ganhar aquela aposta que mudou sua vida todos aqueles anos atrás. Edgar, um personagem que até agora era melhor resumido como um safado pervertido, intencionalmente abriu mão da sua liberdade por Sabin. E Sabin nunca soube.



Final Fantasy VI é repleto de momentos como este. Quase todos os personagens do grupo principal são mais complicados do que parecem. Da origem trágica de Terra e sua jornada para entender - e aceitar - o que ela é, a Cyan sendo assombrado pela culpa da família que ele não conseguiu salvar, Final Fantasy VI tem uma profundidade de personagens que até hoje é meio rara em videogames. Em 1994, então, sem precedentes.

Essa não é a única razão pela qual Final Fantasy VI é tão incrível, mas definitivamente é a maior. No início do jogo, quando Locke está correndo pelas minas de Narshe para salvar Terra, ele esta estranhamente determinado a salvar uma completa estranha que até onde ele sabe, é uma soldado inimiga. Mas okay, "é só um jogo, é pra ser assim mesmo e whatever" você pensa inicialmente. São necessárias muitas horas e sidequests depois para você entender que ele fez o que fez para ajudar Terra no começo do jogo porque ele se sente culpado pelo que aconteceu com Rachel, a mulher que ele amava. 

Embora Locke pareça um ladino caçador de tesouros despreocupado, ele é assombrado pela compulsão de tentar salvar pessoas, especialmente mulheres, e isso impulsiona tudo o que ele faz. Um jogo moderno com horas de dialogo gravado a disposição poderia tentar martelar na sua cabeça esse fato, talvez lançando alguns balões de pensamento ou monólogos extensos sobre como Locke só quer salvar as pessoas, mas Final Fantasy VI é obrigado a ser sutil devido as limitações de espaço... e isso acaba ficando inacreditavelmente elegante.

Essa opinião não é apenas minha, é também o que pensa o diretor do jogo Yoshinori Kitase:

“It’s maybe strange to say [this], but I miss the limitations of making games in those days. The cartridge capacity was so much smaller, of course, and therefore the challenges were that much greater. But nowadays you can do almost anything in a game. It’s a paradox, but this can be more creatively limiting than having hard technical limitations to work within. There is a certain freedom to be found in working within strict boundaries, one clearly evident in Final Fantasy VI.”

Eu não estou dizendo que "antigamente era melhor" nem nada disso, mas existe um senso de elegancia na narrativa de FF6 - forçado por necessidades reais - que acaba dando um tom muito único ao jogo.

OK, EU ENTENDI. VOCÊ TEM TODA ESSA GALERINHA LEGAL APRONTANDO ALTAS CONFUSÕES, MAS... COMO VOCÊ MONTA ISSO EM UM JOGO, EXATAMENTE?

Bem, Final Fantasy (me refiro a franquia como um todo) tem uma estrutura de mundo recorrente que envolve ir explorando o mundo cidade a cidade (frequentemente a quest de uma cidade é conseguir o transporte para ir até a próxima), e quando o jogo já est explorado o suficiente então você ganha uma airship para ir a qualquer lugar e fazer sidequests e tal.

Enquanto isso é verdade aqui, esse jogo não tem exatamente um protagonista fixo (você pode argumentar que a Terra  é a protagonista da primeira metade e a Celes da segunda, mas isso é apenas discussão semantica) então seu grupo frequentemente é dividido em partys diferentes tentando ir a lugares diferentes por motivos diferentes.



A primeira metade do jogo (que é chamada de "World of Balance") é bastante do que você pode esperar de um RPG tradicional, só que um MUITO bem feito. Os personagens são apresentados assim como o mundo, e em cada cidade que um grupo vai, algo interessante está acontecendo - seja em narrativa, quanto em gameplay.

Você consegue sentir o quanto a Square rachou a cabeça para sempre manter as coisas novas e interessantes, seja na situação, seja na mecanica

Em Final Fantasy VI, você canta em uma ópera enquanto outra parte do grupo luta nos bastidores da opera que esta acontecendo, você faz um passeio em primeira pessoa pelos trilhos do trem subterrâneo, rouba roupas de mercadores, luta em uma corredeira contra um polvo pervertido, pega um trem que conduz almas mortas para o submundo - e depois DÁ UM SUPLEX NESSE TREM, abre caminho para obter recompensas em um banquete, coleta peixes para um velho doente, luta contra uma força aérea imperial e tenta impedir o Império maligno do mal que odeia o bem de destruir o mundo.


Como eu disse antes, não é um material groundbreaking a nível de plot porque esse não era exatamente o forte da Square. Mas é um jogo divertido, sólido, com ótimos personagens tendo grandes aventuras criativamente executado. 

E então FF6 chega ao ápice da aventura, a batalha final contra as forças do império valendo o destino do mundo - como é lugar comum nos RPGs e... e é nesse momento que FF6 entra no seu modo Getúlio Vargas: "Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".

Os heróis perdem. O vilão consegue o que quer e o mundo é destruído. Chocado, você vê cenas fortes (tanto quanto era possível para um jogo de SNES, isso é) do mundo sendo destruído. Pessoas morrendo. Os heróis falharam. Trevas e dor. E é assim que termina, com uma catastrófica derrota da luz.

25 anos antes, para surpresa de absolutamente todo mundo ever, Final Fantasy 6 puxou um Avenger Infinity War. E é aqui que o tema do jogo realmente começa. Diferente de todos os outros RPGs que vieram antes dele, e de quase todos que viriam depois, FF6 não é sobre salvar o mundo: é sobre o que acontece depois do fim do mundo. 




E tal qual Avengers Endgame, não é uma derrota sem consequencias, ou que pode ser revertida facilmente. Quando você assume o controle na segunda metade do jogo, Celes passou um ano em coma e nesse um ano sob o reinado de terror do agora deus-Kefka as coisas só pioraram. O mundo está morrendo a tal ponto que os monstros em batalhas aleatórias no mapa mundi tomam dano todo turno de fome, esse é o nível da coisa (alias a atenção a detalhes nas pequenas coisas nesse jogo é espetacular, como uma hora que você encontra uma caverna repleta de baús vazios e só depois entende porque eles estavam vazios).

Celes chega ao seu momento mais sombrio. Derrotada. Sozinha. Sem esperança. Desesperada, ela tenta se suicidar... e até mesmo isso falha. E é então, apenas então, no momento mais sombrio de um RPG até então... que o verdadeiro tema do jogo começa, e um bastante fiel ao conceito base de Final Fantasy quando você pensa sobre isso: luz.

FF6 não é sobre impedir que o mundo seja destruído, tampouco é sobre o fim dele. É sobre esperança, sobre os guerreiros da luz fazendo o melhor que podem para tornar o mundo, mesmo um arruinado, um lugar melhor. E nesse sentido não é uma escolha do acaso que o primeiro companheiro que Celes reencontra é justamente o sempre otimisa Sabin que esta fazendo o que ele faz de melhor: sendo awesome, que é salvar uma criança de uma casa desabando... segurando a casa inteira nas costas, porque é assim que o Sabin rola.

Clássico Sabin!

E assim Celes, a garota que perdeu tudo, e Sabin vão em busca dos outros Returners espalhados pelo mundo, recrutando eles mais uma vez para uma luta impossível contra o deus da magia, e amarrando as histórias pessoais deles iniciadas na primeira metade do jogo no processo. É uma estrutura escolhida com muita felicidade, que emenda perfeitamente as duas metades do jogo, dá um propósito de aventura e uma sensação de complitude as narrativas individuais de cada um.

Isso é uma coisa estranha de se dizer, mas considerando que você pode enfrentar qualquer uma das inúmeras sidequests em quase qualquer ordem que você escolher, e considerando que é tecnicamente todo conteúdo secundário (você pode escolher entrar na masmorra final mais ou menos em a qualquer hora que você quiser, embora isso seja extremamente desaconselhável), esta segunda metade do jogo deve ter tido um impacto gigantesco em jogos como Breath of the Wild, pois adota a filosofia semelhante de deixar o jogador fazer o quanto quiser antes de decidir que já é o suficiente e pode enfrentar o grande mal do jogo.



Eu me esforço para pensar em outro RPG, ou jogo em geral, que produza uma reviravolta semelhante no meio do jogo com tanta confiança quanto Final Fantasy VI. Tenho certeza de que esse tipo de jogo existe, mas não consigo lembrar de nenhum agora. 

E é nessa reviravolta que o jogo combina sua história com a jogabilidade de uma forma que poucos RPGs conseguem. Ou poucos videogames conseguem realmente fazer esse nível de casamento metanarrativo. A esta altura do jogo, você está apegado ao elenco principal, o que torna essa coisa deles espalhados por aí ainda mais comovente. Ou seja, embora não seja obrigado, é muito provavel que o jogador vá fazer isso.

E como consequencia de procurar seus companheiros, você explora o mundo e vê o resultado do reinado de Kefka sobre ele. Cidades pequenas antes agitadas ou charmosas agora estão acabadas, em alguns casos, totalmente destruídas. As pessoas vivem com medo de Kefka e do poder que ele exerce (que assume a forma de um laser gigante que ele pode disparar em qualquer ponto do mundo de cima de sua torre gigante - sim, ele essencialmente controla um farol nuclear). Você, como jogador, vê tudo o que ele fez e quer acabar com isso. O jogo deixa de ser uma história sobre como salvar o mundo e se torna uma história sobre como salvar o que resta. Em essência, é pós-apocalíptico e carrega consigo toda a desolação que isso implica.



Tudo isso se combina com a segunda metade do jogo rica em conteúdo para uma experiência de JRPG diferente de qualquer outra. O conteúdo obrigatório da segunda metade é bem pouco, mas existem sideques a dar com pau. Além de encontrar todos os membros do grupo, há alguns personagens bônus para recrutar e missões específicas dos personagens que desbloqueiam novas habilidades para eles (novos gadgets para Edgar, novos movimentos para Sabin, novas danças para Mog), bem como muitas peças de Magicite para encontrar e equipamentos poderosos para empunhar. 

Tudo leva a um clímax com peso real. No momento em que você ataca a torre de Kefka, você provavelmente investiu tempo reconstruindo o grupo e settango seus feitiços e equipamentos. Mesmo que você só possa ter até quatro pessoas em seu grupo de cada vez (o que inevitavelmente significa que você terá membros preferidos do grupo), a masmorra final faz com que você não sinta que desperdiçu tempo porque ela forçaa fazer três grupos para assumir diferentes partes da masmorra. É uma construção épica e absolutamente massiva para o confronto final com Kefka e a Tríade Guerreira, e tudo vale a pena você finalmente silencia o palhaço louco e traz o equilíbrio de volta ao mundo.



E já que estamos falando da parte mecanica do jogo, Final Fantasy 6 é tudo que você pode esperar de RPG dessa época - no espectro positivo das coisas, isso é. O jogo foi lançado apenas um ano após Final Fantasy 5, então como se imaginar essencialmente é a mesma engine de combate com alguns twists, só que são twists bastante interessantes na verdade.

Por exemplo, a mecanica mais iconica de Final Fantasy V eram os jobs: você pode equipar uma "classe" em um personagem e ele usa aquelas habilidades, depois troca e tal (a mesma mecanica que é utilizada ainda hoje em FF XIV). No 6, os jobs foram fundidos com os personagens então você ainda tem monk, thief, blue mage, etc.

Aqui cada personagem é de uma classe, então você precisa efetivamente trocar os personagens para usar classes diferentes. O grande truque aqui é que cada personagem não é apenas de uma classe diferente, como tem mecanicas exclusivas. Para Sabin, o monge, por exemplo, você apenas escolhe "seus golpes de monge" em uma lista de comandos, você tem que fazer sequencia de golpes como em um jogo de luta. Strago, o Blue Mage, aprende magias novas levando ela na cara de monstros, Terra tem o Metamorph que a transforma em Super Esperjin e manda seus atributos de magia pro espaço. 

Dafuq tu decidiu que ele é o pai do Gau, Sabin...

Considerando que são 14 personagens jogaveis pra uma party de 4, e considerando que em mais de uma oportunidade você terá que gerenciar mais de uma party simultaneamente (especialmente no final, Team C 4life!), só isso já é muito com o que trabalhar... e eu nem comecei a falar nas customizações.

Isso porque além do que o seu personagem aprende naturalmente você ainda pode equipar Espers neles que ensinam magias e dão bonus de atributo no level up, como duas reliquias em cada personagem que tem todo o tipo de efeito - desde dar imunidade a um status como mudar o comando de uma classe, tipo um que transforma o mando de magia da Terra em DualCast (o que aliado a ela poder equipar as melhores armaduras e ao Morph faz dela a melhor personagem do jogo no endgame, mesmo que no começo do jogoela não tenha nada de especial).



As combinações de reliquias podem dar imunidades, potencializar forças do seu personagem ou mesmo transforma-lo em algo interamente diferente - como equipar duas reliquias de Dragoon para o seu personagem virar efetivamente um Dragooner pulador clássico de Final Fantasy.

E se isso tudo não fosse opções o suficiente para seu jogo... algumas armas e armaduras também tem seus próprios subefeitos. Então embora você possa tecnicamente apenas usar o autoequip para colocar as armaduras com maiores atributos - e isso vai funcionar, não vai ficar ruim - se você parar para ler a descrição dos itens e ver o que eles fazem... fica melhor ainda!

Como dá pra ver, FF6 mecanicamente é um desbunde para nerds que gostam de ficar otimizando essas coisas, e a melhor parte é que você não PRECISA fazer isso para jogar o jogo. A dificuldade do jogo é super acessível e apenas subindo de nível e equipando o melhor equipamento o jogo pode ser jogado até o fim. O jogo pode ser vencido "normalmente", mas...


... porque você não iria querer passar horas mexendo nas configurações do seu grupo para causar 40 mil de dano e lançar um curaga na sua party por turno? É extremamente satisfatório, eu garanto.

Dizer que Final Fantasy VI é um jogo à frente de seu tempo seria uma afirmação incorreta porque ele criou seu próprio tempo, ele mudou as regras para o que podia e não podia ser feito em um videogame, e isso é algo sem preço.

Em vez de ver outra história do Bem vs. Mal envolvendo uma pessoa má indo atrás de alguns cristais, a Square mostrou ao mundo que, sim, os videogames podem enfrentar os melhores romances de alta fantasia com seu próprio lore único e personagens interessantes que atacam assuntos reais e muito humano, como a insanidade, a tristeza e a permanência do otimismo apesar de todas as adversidades. 





Tem o que pode ser a maior reviravolta no meio do jogo que já vi e oferece uma grande experiência de RPG de todos os tempos, do início ao fim. Eu não diria que é o melhor RPG de todos os tempos criado porque as ideias que FF6 implantou foram aprimoradas depois em outros jogos como Persona, Chrono Trigger ou mesmo Final Fantasy 7 - que é o mais popular FF ever, tipo o David Tennant dos FF, e que essencialmente é uma versão mais ambiciosa e focada desse jogo, feito em uma época em que a Square já tinha descoberto que caminho seguir com FF. 

Enfim, esse é um jogo que tem sucesso em todos os riscos que assume e é um exemplo do que torna os videogames tão especiais. Mais do que isso, na verdade, o que Final Fantasy 6 representa para os videogames não pode ser inteiramente explicado em apenas um texto, mas lembre-se que toda vez que você se emocionar pensando em uma girafinha, quando o Noctis se despede de seus brothers com "vocês são os melhores" ao som de Stand By Me ou ser avisado que a Clementine vai se lembrar disso, saiba que tudo isso só existe porque um dia três armaduras Magiteks cruzaram as planicies congeladas de Narshe ao som do vento cortante e da música de Nobuo Uematsu

Como disse Isaac Newton, "Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro dos gigantes". E não tem como ser muito maior que Final Fantasy VI.

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MATÉRIA NA GAMERS
Edição 037 (Janeiro de 1999)