Eu considerei por um longo tempo se esse jogo deveria ser o jogo número 1000 desse blog, mas por fim eu decidi que 999 é um número bacana o suficiente. Entertanto se esse fosse o caso não estaria errado, já que nossa amiga Laura saqueadora de tumbas totalmente seria uma entrada digna para o milesimo review, Tomb Raider é um jogo importante assim.
Isso pq em 1996, a Sony estava metida em uma alhada: o PS1 vendia mais que o Saturn nos EUA, o preço era okay, os jogos estavam entrando e alguns jogos eram realmente do balacobaco, como RESIDENT EVIL ou TEKKEN 2.
ISSO NÃO PARECE EXATAMENTE A DEFINIÇÃO DE UM PROBLEMA, SABE?
Normalmente não seria... não fosse o pequeno e singelo fato que do outro lado eles estavam competindo contra um fucking genio. Eu quero dizer literalmente, o Leonardo Da Vinci dos videogames, mais conhecido como Shigeru Miyamoto. E isso era um puta problema para a Sony. Tipo realmente grande:
A Nintendo já tinha renome no mercado, obviamente, e não estava pra brincar: já chegou com uma voadera no peito pegando uma quadra de distancia, lançando o Nintendo 64 com um SENHOR puta jogo que é SUPER MARIO 64.
Do dia para a noite o N64 tomou a liderança dos videogames, e se tinha algo que a Nintendo sabia fazer era vencer. Ela vence e vence e vence. Ou seja, a Sony estava em perigo.
O Playstation precisava de uma resposta urgente a SUPER MARIO 64, e enfase no "pra ontem" nisso. Mas querer é mais fácil do que fazer e isso tinha dois motivos. O primeiro é que, obviamente, a Nintendo tinha o fator Miyamoto e o homem é uma singularidade em si mesmo.
O segundo problema, entretanto, é de razão tecnica: o hardware do N64 dava voltas ao redor do Playstation. Embora o CD de fato possa conter mais informação que um cartucho, as especificações do PS1 tornavam impossível fazer um SUPER MARIO 64 no videogame. Não com a mesma velocidade, não sem os poligonos nunca estourarem não importa o quanto você movimente a camera, não com a mesma fluidez de movimentos.
Colocando de uma forma simples, o PS1 não tancava. Embora é verdade que anos depois eles aprenderam a otimizar a programação e lançar jogos no mesmo estilo para o PS1 (como Spyro: The Dragon, por exemplo), em 1996 simplesmente não dava pra fazer um jogo de plataforma como SUPER MARIO 64 no PS1.
Mas então o que DAVA pra fazer? Bem, o que DAVA pra fazer era pegar as fraquezas do PS1 e transforma-las em vantagens. O PS1 não tinha memória RAM para um jogo rápido e fluído como o da Nintendo? No problemo amiguemo, vamos então fazer um jogo de plataforma 3D DELIBERADAMENTE lento. Quase mais um puzzle do que um jogo de ação, sim?
Isso é algo que o PS1 totalmente aguentava em 1996, e foi assim que Tomb Raider veio as prateleiras. Na época eu chamava TR de "jogo de ação matemático", pq o jogo é muito mais parar e pensar do que reagir. Os controles respondem de forma lenta, pq é o que PS1 aguentava, mas ao invés de ser um problema isso foi incorporado a jogabilidade.
Por exemplo, a distancia de salto da lara nesse jogo é recorrente ao longo de todo o jogo: três passos para trás. Se você quiser chegar a algum lugar, vá até a beirada e recue três passos, corra e aperte o pulo durante a corrida. Não quando chegar a beirada, durante a corrida mesmo. Isso vai fazer Laura executar o salto na distancia precisa - e se não funcionar (se o salto ficar curto demais) é pq não é esse o caminho.
Sim, eu sei que descrevendo assim parece meio burocrático e não muito bom action-wise, mas a verdade é que na prática funciona muito bem essa ideia de poder fazer uma queue de comandos para Laura executar nos próximos segundos, ao menos ao que o jogo se propõe a fazer.
Como eu disse, esse jogo tem que ser visto mais como um puzzle do que como um jogo frenético de ação e não é raro você parar por alguns momentos olhando ao redor (o controle de camera nesse jogo é excelente, melhor mesmo até do que SUPER MARIO 64 e isso é dizer alguma coisa em 1996) tentando entender "como eu chego lá em cima?".
Esse sempre foi o aspecto de Tomb Raider que sempre me fascinou, como o level design desse jogo é tão bom e fluído! Cada uma das quinze fases do jogo leva aproximadamente uma hora para ser terminada na primeira tentativa, e durante esse tempo todo você está sempre pensando, mapeando a fase mentalmente, e o design dos niveis sempre é satisfatoriamente interessante. Nunca fica trivial ao ponto de ser apenas um aborrecimento, mas tambem não é nada que vc não consiga fazer sem um detonado.
E agora você sabe como as piramides foram construídas, Laras Crofts arrastaram os blocos de pedra através do deserto
Eu já comentei em vários jogos nesse blogo como eu detesto jogos de exploração sem mapa, mas esse não é o caso aqui: os niveis são tão bem desenhados que o unico mapa que você realmente precisa pra jogar Tomb Raider é o que você faz na sua cabeça.
Quando você puxa uma alavanca, por exemplo, o jogo corta rapidamente para uma porta abrindo (sim, esse jogo MOSTRA onde a porta abriu, ao contrário dos PRINCE OF PERSIA 2: The Shadow and the Flame da vida que são feitos de puro ódio contra o jogador) e seu cerebro rapidamente conecta os pontos. "Tá, eu sei onde isso é" é uma sensação bastante satisfatória de se ter jogando um jogo.
Eu já disse mais de uma vez e direi novamente: o level design não deve ser inimigo do jogador, o programador não pode estar tentando vencer o jogador tanto quanto um narrador de RPG não pode estar tentando vencer os jogadores. O que o designer deve estar tentando fazer é uma conversa com o jogador, criar um ambiente divertido para desafia-lo sem irromper em ódio e ranger de dentes.
E essa é a maior qualidade de Tomb Raider, especialmente quando você pensa que uma única fase desse jogo tem a duração de um jogo médio da época (+/- uma hora), e existem 15 boas fases nesse jogo. Isso mostra o quão bem desenhado esse puzzle disfarçado de plataformer é.
Olha, achei um vale com dinossauros ainda vivos! Como boa arqueologa, é meu deve garantir que a arqueologia não esteja errada e por isso vou extinguir os bichos a bala!
Então você soma esse level design estelar com a ideia sagaz de usar as limitações do PS1 como vantagem e temos um jogo de plataforma que faz o melhor uso possível da criação em um mundo em três dimensões. Se as pessoas ainda não sabiam como fazer um jogo de plataforma 3D no PS1, Tomb Raider mostrou o caminho. Não é SUPER MARIO 64, mas definitivamente é sua própria coisa e uma muito boa, saiba você.
Entretanto, o jogo ser incrivelmente bom (especialmente para os padrões da época) é apenas parte do legado de Tomb Raider. A outra parte é algo mais popular que o próprio jogo, porque é claro que não podemos falar de Tomb Raider sem falar da nossa querida pior arqueologa de todos os tempos (não sei, arqueologos deveriam preservar as coisas e não quebrar um vaso de 13 mil anos só pra pegar um clip de munição), Laurinha querida.
Quando a Eidos mostrou uma versão inicial para a Sony, os chefões do PlayStation não ficaram particularmente impressionados com o design do protagonista Indiana Jones-like (era pra ser um cara de chapéu e chicote, veja você), o que fez a Core Design voltar ao quadro negro uma segunda tentativa.
Então surgiu uma ideia: e se ao invés de fazer um clone do Indiana Jones... e se eles tentassem uma versão feminina dos heróis dos filmes de ação dos anos 90? Sabe aquele cara brucutu que sempre tem uma frase de efeito, sai de qualquer enrascada com um sorriso cinico de "está tudo sob controle" e passa fogo em todo mundo sem correr risco pq é apenas outro dia no escritório?
Então, Laura é a versão feminina disso e ficou bastante cool na verdade... embora eu tenha que dizer que não é exatamente por sua personalidade que Laura é lembrada. Isso pq Lara sempre deveria ter atributos fisicos exagerados, como esse tipo de personagem pede, mas ao fazer os ajustes finais no modelo 3D da personagem um deslize do mouse aumentou o aumento planejado dos seios em 150%. Antes que as mudanças pudessem ser revertidas, uma decisão quase unânime da equipe de projeto de seis pessoas da Core Design significou que a nova e turbinada Lara deveria ficar.
Então temos agora o angulo perfeito para o marketing: nossa heroina gostosona (ao menos para gráficos de 1996, isso é), ultra cool e uber confiante o tempo todo. Junto com a já discutida qualidade excelente do jogo e uma trilha sonora cinematográfica, dublagem e cutscenes entre as fases narrando a história (uma coisa não tão comum assim na época), a segunda encarnação de Lara Croft foi aprovada pela Sony e, como dizem, o resto é história.
O segundo jogo não se chama "estrelando Lara Croft" por acaso, porque o marketing de vender a personagem como uma estrela foi bastante agressiva, apresentando anúncios sempre provocativos, empurrando Lara como a mascote do PlayStation e apresentando os jogos 3D a um público alternativo que se achava adulto demais para Super Mario 64 (pq outra coisa que eu sempre digo é que americanos são super cheios dessas palhaçadas).
O resultado de um marketing agressivo, um jogo ótimo e uma protagonista carismática foi um jogo que esgotou sua tiragem inicial de 100 mil unidades em poucas horas, vendendo um total de 7 milhões de cópias ao longo da sua vida.
Lara, entretanto, rapidamente se tornou maior que o proprio jogo e quando se viu já aparecia em anúncios de bebidas energéticas, cartões de crédito e carros, roupas de mergulho de marca, seu rosto com labios grossos viraram selos postais na França, bandas escreveram músicas em sua homenagem, ela posou com roupas cada vez mais modestas nas capas de revistas populares, e até publicações de prestígio como o Financial Times estavam apresentando artigos de primeira página sobre a heroína do momento.
Lara não era apenas um ícone dos jogos: ela se tornou uma celebridade por si mesma, ao ponto que havia apenas tanto que uma heroína virtual poderia dizer ou fazer que manteria a atenção da mídia fixa no personagem, o que levou a prática de contratar modelos da vida real para ser a Lara Croft "oficial".
A vida era competitiva pra Natalia, eu não a invejo
Nathalie Cook foi a primeira modelo a retratar a personagem, contratada pela Eidos para participar de eventos publicitários, promoções e feiras, mas definitivamente não foi a última. Com efeito, o alto número de modelos usados ao longo dos anos (cerca de oito) levou o Guinness World Records a premiar Lara Croft com o recorde de “personagem ficticio com mais representações oficiais da vida real” em 2008.
Um caso particularmente curioso foi da modelo Nell McAndrew, que foi demitida de seu papel como "Lara Croft oficial" depois de posar para a Playboy usando a personagem como atrativo sem aprovação prévia da Eidos.
Isso levou a Core Design a entrar com uma ação contra a revista que forçou a Playboy a colocar adesivos na capa, obscurecendo qualquer referência ao nome Tomb Raider.
Embora todo mundo saiba hoje que a representação ideal do poder e classe da personagem é sua representação no cinema, estrelada por Angelina Jolie. Com efeito, a imagem da Jolie como mulher badass fatale ainda hoje é um tanto indissociavel desde sua representação em Lara Croft: Tomb Raider de 2001.
É fácil se deixar levar pela moralidade moderna e se indignar com uma protagonista exageradamente sexualizada, mas é preciso lembrar que na época, apesar dos melões maiores que a vida e expectativas corporais claramente irreais, o fato de Lara ser uma personagem feminina forte à frente de um dos videogames mais vendidos de todos os tempos realmente foi um ponto positivo que acendeu o fogo para que personagens femininas mais fortes fossem apresentadas como protagonistas em videogames - Muito longe do papel de "donzela em perigo" que era visto comumente em muitos jogos antes da chegada de Tomb Raider.
Embora a personagem feminina iconica dessa nova forma d epensar para mim sempre será a Samus Aran de SUPER METROID, não há como negar o papel de Lara em convencer os desenvolvedores que personagens femininas podiam ser foda apenas porque elas são foda. Se o Schwarzenegger podia, Laurinha da Massa também podia e isso é o que realmente importa aqui.
Tomb Raider é, como eu disse, um excelente jogo por seus próprios méritos. Mas seria um negócio tão grande como foi a presença dela? Possivelmente não. E certamente é difícil imaginar que hoje é relativamente comum ter personagens femininas maneiras como protagonista (especialmente as sem qualquer sexualização como a Ellie de The Last of Us ou a Eloy de Horizon: Zero Dawn) sem essa grande pedra fundamental dos videogames que foi Lara Croft.
Long live the queen, baby!
... e agora eu vou precisar de um tempinho, pq a próxima postagem é a review número MIL e eu quero que essa seja realmente especial. Nos vemos do outro lado!