Frequentemente "Quackshot staring Donal Duck" é descrito como uma homenagem a Indiana Jones usando os personagens da Disney. Embora não esteja de todo errado - até a mesma fonte foi utilizada - a verdade é que ocorre justamente o contrário: Indiana Jones foi inspirado no Pato Donald e não o contrário.
Espera, o que?
Bem, vamos começar do começo porque história de patos exploradores em lugares exóticos é bem mais antiga do que isso.
Ah, o Brasil dos anos 80. Como era boa a economia naquele tempo, ao contrário de hoje
Durante os anos 30 havia um quadrinhista que trabalhava para a Disney chamado Carl Banks. Com o advento da segunda guerra mundial as condições de trabalho na cidade grande deterioraram muito e Banks decidiu largar tudo aquilo, se mudar para o interior e começar um pequeno negócio de avicultura - trabalhar com a criação profissional de galinhas era um antigo sonho seu. Banks nunca completou o primeiro grau (ou o equivalente americano disso) e viveu a maior parte da vida em um sítio. Era natural que, farto da cidade, ele apenas quisesse retornar a isso.
Antes de sair, no entanto, ele fez uma última história em quadrinhos para a Disney chamada "Pato Donald encontra o Ouro dos Piratas". Foi nessa história que foram apresentados pela primeira vez os sobrinhos do Pato Donald - Huguinho, Zezinho e Luizinho - assim como um vilão papagaio chamado "Bico Amarelo" que depois viria a ser o Zé Carioca nas edições brasileiras. Lembrem-se dessa HQ, ela será mais importante do que o próprio Banks poderia imaginar.
Pois bem, feito isso Banks entregou os tacos e se mudou para o interior. Desligou o celular, não abriu seu facebook, saiu de todos os grupos de Whasapp. O que era muito fácil de fazer em 1942. E para surpresa de ninguém, começar um negócio ele precisava de grana, cash, moola, dinero, tutu, faz-me-rir. Bem, o que Banks sabia fazer melhor do que ninguém era ser quadrinista, então ele decidiu pegar uns freelance (ou o equivalente disso na época, na verdade) para fazer mais alguns quadrinhos para a Disney.
Carl Barks inventou Minecraft... |
Qual não foi sua surpresa ao ligar para seu antigo editor e descobrir que não só sua última HQ antes de sair tinha sido um sucesso estrondoso e a casa do Mickey queria muito te-lo de volta. Banks aceitou, com a condição de que ele pudesse ter liberdade criativa sobre o seu trabalho, e assim nasceu a parceria que definiu os quadrinhos ocidentais.
Foi assim que Carl Banks desenvolveu ao longo dos anos o "Patoverso" da Disney. Ele criou Patópolis e toda miríade de personagens que a orbitam: Tio Patinhas, Professor Pardal, os Irmãos Metralha, Maga Patalógika, Margarida.
Barks não apenas criou novos personagens, ele os humanizou e deixou mais interessantes personagens já existentes - sendo sua obra prima o legado do Pato Donald. Nas primeiras histórias do Pato Donald ele era uma figura antagonica, um animal pouco inteligente que se deixava levar pela raiva facilmente. Nas mãos de Barks os quadrinhos do Pato Donald se transformaram nas aventuras de um herói que tinha o coração no lugar certo, mas que as vezes deixava seu temperamento levar a melhor sobre suas boas intenções. Ele também era um tanto azarado e marcado por um cinismo e pessimismo bastante únicos - e eventualmente ficava puto da cara, é claro.
Embora muitas das histórias se passassem em Patópolis, o que Carl gostava mesmo de fazer era explorar lugares fantásticos. Leitor ávido, Barks tinha uma grande biblioteca de clássicos em sua casa que usava como inspiração para escrever as aventuras do Pato Donald e sua turma. O artista costumava dizer que viajara o mundo inteiro graças a seus livros, e tinha boas recordações de todos os lugares que "visitara". Seu detalhismo ao retratar templos ou monumentos que via na revista National Geographic criava paisagens tão verossímeis e belas que pareciam ser a transposição de uma foto acrescida da emoção da arte. Em outras ocasiões, essa profundidade decorria exclusivamente de sua imaginação, pois lugares nunca descobertos pelo homem moderno como as minas do rei Salomão ou a sala do tesouro do rei Minos I da Grécia - ou até paisagens mitológicas como Asgard ou Cólquida e paragens de sua criação, como a fantástica Quadradópolis - sugeriam uma notável impressão de realidade e familiaridade
O estilo de conduzir histórias de Barks inspirou os rumos dos quadrinhos da Disney nos próximos anos, aplicando a esse mesmo tratamento aos seus principais personagens para que eles fossem mais do que meras gags de tirinhas. Sabe quem mais adotou essa ideia? Stan Fucking Lee. Quando ele assumiu a direção da Marvel ele esfregou as mãos e disse: "Let's go full Carl Banks!", criando personagens mais humanizados, com qualidades e defeitos relacionaveis ao leitor - ao contrário dos heróis da DC que são conceitos abstratos quase sem fraquezas - em locações mundanas que passam um senso de localização muito único. No caso de Stan Lee o que ele conhecia muito bem era a cidade de Nova York, onde cada herói acabou localizado em um bairro (Homem Aranha no Queens, Demolidor na Cozinha do Inferno, o Quarteto Fantástico em Manhatan, etc).
Quando eu digo que ele praticamente criou os quadrinhos ocidentais como os conhecemos hoje, não é figura de linguagem.
... e Inception também |
É claro que muitas crianças cresceram lendo (ou assistindo, já que Ducktales é quase todo baseado em obras dele) as aventuras desenhadas por ele, entre elas um certo garoto que viria a se tornar diretor de cinema muitos anos depois. George Lucas é um fã assumido de Barks e cita que os quadrinhos dele foram grande inspiração para o estilo de aventura pulp dos seus filmes.
“As histórias de Barks têm movimento cinematográfico; começo, meio e fim
bem definidos. Elas avançam em cenas, diferente de tantos outros gibis.
As histórias de Barks não se movem simplesmente de um quadrinho para
outro; elas fluem em tomadas ininterruptas, que conduzem a outras
tomadas, como num filme.”
Quando Lucas decidiu criar uma versão moderna das histórias de aventura em lugares exóticas dos anos 30/40, os quadrinhos de Carl Barks foram uma de suas grandes inspirações. Após alguns dias discutindo com o diretor Steven Spielberg, nasceu um filme que talvez você já tenha ouvido falar :
Então Quackshot não é inspirado em Indiana Jones, Indiana Jones é que é inspirado no Pato Donald. Aposto que você sabia dessa, hã?
A PARCERIA SEGA-DISNEY
A Disney é, junto com a Nintendo, uma das empresas mais preocupadas com a imagem da sua marca que existem. Ela não permite nenhum produto licenciado que traga alguma conotação negativa as suas franquias - sim, a EA não desativou as microtransações em Star Wars porque ela se importa com a opinião do público, mas sim porque a Disney chamou os tios na xinxa.
Alias eu ficaria muito surpreso se a Disney não comprar a Eletronic Arts nos próximos anos, mas isso é outra história. Eu dizia que eventualmente alguma coisa passa (cof, FANTASIA para o Mega Drive, cof), mas no geral eles são bem cautelosos com isso. E por isso mesmo, para garantir as boas graças da casa do seu Valdisnei que a SEGA foi extra atenciosa com este jogo aqui - as duas pessoas e um peixinho dourado que me acompanham sabem o quão critico eu sou quanto a falta de polimento e cuidado que a Sega costuma ter em seus produtos.
Quackshot foi feito especificamente para capturar essa essencia de aventura e caçada ao tesouro dos quadrinhos de Carl Barks do Pato Donaldo, e para isso eles tiveram uma ideia assaz genial. Claro, eles poderiam fazer um bom e velho jogo de plataforma, seria uma opção sólida e segura, mas ao invés disso eles tentaram algo que eu não lembro de ter visto até hoje em jogo de plataforma exceto talvez pela série Shantae muitos anos depois.
Funciona assim: no começo o jogador tem três fases para escolher. Patópolis, México ou Transilvânia. Cada uma dessas fases tem obstáculo que só pode ser superado com um item que você consegue na outra. Tipo em Patópolis termina em um muro que só pode ser escalado com um item que você consegue no México, só que para entrar na piramide do México você precisa de um item que o Pateta te dá na Transilvania.
Ficar indo e voltando nas fases poderia ser um saco e um truque bem safado para alongar artificialmente o jogo, mas a Sega teve um bom senso bastante raro de ser ver nessa empresa: no final de cada fase tem um "checkpoint" para o qual você pode voltar diretamente.
Então ao conseguir o item para chegar a segunda parte de Patópolis você não precisa jogar a fase inteira de novo, apenas continuar da onde parou. Isso transforma a experiência em uma caça ao tesouro divertida, não um dever de casa modorrento.
Assim que você resolve as três primeiras fases, outras três surgem: Polo Sul, India e Navio Viking. Mesmo procedimento. Como eu disse, a coisa toda emana muito bem essa sensação de gincana/caça ao tesouro das HQs clássicas de Carl Barks.
Claro que nada disso adiantaria patalhocas sem um bom jogo para se jogar, e nisso a Sega teve uma boa inspiração ao escolher a arma do pato Donald: uma arma de desentupidores de pia. Claro, porque quando você pensa em parto Donald você pensa em desentupidores de pia. Óbvio.
A coisa é que a arma não mata inimigos, apenas os paralisa. O que isso tem realmente de especial é que a arma pode ser upgradeada para outras funcionalidades como transformar os desemtupidores escalaveis e até mesmo grudar nos inimigos voadores para assumir o controle deles e dar uns roles de passarinho por aí. E você achando que Super Mario Odyssey era super inovador por ter uma arma que permite possuir os seus adversários, pff...
Isso dá uma dinamicidade ao jogo de plataforma que vai muito além de atirar e pular, e torna Quackshot uma experiencia bastante única.
Falando em experiencia única, outra coisa que a Sega aproveitou das obras de Barks é essa coisa que a Disney sabe fazer tão bem que é usar um estereótipo de uma localidade sem ser ofensivo. Então, sim, a fase do México se passa no deserto de Atacama e a música dá vontade de gritar "ai ai ai caramba!", a fase da India se passa no palacio de um Maraja e parece um bando de figurantes vai invadir a qualquer momento para começar um musical WTF e por aí vai. Mas eu não digo isso de uma forma negativa, e sim interessante, quase turística, com o padrão Disney de qualidade.
Como eu não sou elegante como a Disney, é claro que eu não ia perder a chance de colocar a coisa mais indiana da internet, porque claro que sim como não?
Isso dá uma dinamicidade ao jogo de plataforma que vai muito além de atirar e pular, e torna Quackshot uma experiencia bastante única.
Falando em experiencia única, outra coisa que a Sega aproveitou das obras de Barks é essa coisa que a Disney sabe fazer tão bem que é usar um estereótipo de uma localidade sem ser ofensivo. Então, sim, a fase do México se passa no deserto de Atacama e a música dá vontade de gritar "ai ai ai caramba!", a fase da India se passa no palacio de um Maraja e parece um bando de figurantes vai invadir a qualquer momento para começar um musical WTF e por aí vai. Mas eu não digo isso de uma forma negativa, e sim interessante, quase turística, com o padrão Disney de qualidade.
Como eu não sou elegante como a Disney, é claro que eu não ia perder a chance de colocar a coisa mais indiana da internet, porque claro que sim como não?
Se você viu o video acima (o do jogo, não o do Rivaldo) percebeu também que a Sega cortou um dobrado para cobrir aquele que costuma ser o ponto mais fraco do Mega Drive: seu processador de som. As músicas desse jogo são incrivelmente ótimas, melhor que elas apenas a qualidade da animação que eleva ao máximo todo o carisma dos personagens da Disney. Eu diria até que Quackshot é o jogo mais visualmente bonito com os personagens clássicos da Disney que eu consigo pensar.
Tirando a jogabilidade que não te dá tanto controle do personagem quanto você poderia desejar, não tem muito mais a desejar de Quackshot. Você pode discutir se Quackshot ou Ducktales (do Nintendinho) é o melhor jogo da Disney de todos os tempos, mas só o fato de você estar fazendo essa discussão já diz muito sobre a qualidade do jogo.
Seu Carl ficaria orgulhoso pelo que fizeram do trabalho dele.
DETONADO NA EDIÇÃO 012