Chegando quase a review numero 1150, se tem algo que podemos estabelecer nesse blog é que os anos 90 foram os anos dos protagonistas trevosos darki angustiados (quase)dumau. Eu literalmente já falei disso dezenas (até centenas?) de vezes aqui como tudo nos anos 90 pra ser cool tinha ser mega trevosão e depressivo. E qualquer coisa além disso era visto como coisa de bebezinho nhenhé.
Ou ao menos era assim que os americanos viam as coisas. Os japoneses não tinham, e ainda não tem hoje, vergonha de fazer o protagonista da sua obra ser um herói incrivelmente otimista, positivo e até mesmo ingenuo por acreditar demais nas pessoas. Algo que seria um fracasso comercial retumbante na trevosidade dos anos 90 americanos, no Japão é apenas comum.
Verdade que depois do sucesso pan-giga-poli-goli galacticto de Neon Genesis Evangelion cresceu muito a trope do herói com uma crise existencial, especialmente pq a Squaresoft era a maior produtora de RPGs fora do Japão e realmente amava esse anime. Como dá pra notar pelo seu mais bem sucedido jogo, FINAL FANTASY 7 (embora tambem tenham referencias em SUPER MARIO RPG: Legend of the Seven Stars pra vc ter uma ideia).
E pq eu estou falando disso? Bem, pq nesse grande afã de ambientações dark, trevosas, totalmente THE CROW: City of Angels e com protagonistas emocionalmente traumatizados ou algo assim, Grandia é frequentemente apontado como o "FINAL FANTASY 7 do Saturn"...
... e essa é a coisa mais imbecil que eu já vi em todos esses anos nessa indústria vital. Grandia não apenas não tem NADA haver com FINAL FANTASY 7 (exceto pelo fato de ser elencado como um dos melhores - se não o melhor - RPG do seu sistema), como é o exato oposto dele.
E não ajudou muito que para a versão americana do jogo, lançada apenas para PS1, a Sony abriu o seu catalogo de "imagens incrivelmente genéricas para RPG" na capa |
Com efeito, Grandia é um RPG absurdamente inocente e cheio de uma curiosidade positiva e energia tipicamente infantil, mas em um bom sentido. Grandia é um jogo sobre sair em uma grande aventura para conhecer lugares incríveis e fazer coisas espetaculares, e ele acredita com cada fibra do seu ser digital nessa premissa. Tanto que não é surpreendente que ele nunca foi lançado no ocidente no seu sistema nativo, onde seu otimismo e maravilhamento... não iam casar muito com o que os americanos esperavam de uma narrativa dos anos 90... e o port para PS1 só foi lançado por aqui muitos anos depois.
Sério, se você espera uma trama épica, opressiva de um mundo ricamente construído com questões existenciais... Grandia não é esse jogo. Na verdade, chamar como essa história começa de "despretenciosa" seria um garguantico eufemismo: Justin é filho de uma ex-pirata MILF e um aventureiro, sendo que seu pai desapareceu em uma aventura.
Por isso, Justin é obcecado em se tornar ele próprio um aventureiro como seu pai e sair explorando o mundo, e em especial o "Fim do Mundo", uma muralha colossal que separa o mundo em dois e ninguém sabe realmente o que tem do outro lado. E... é isso realmente. Justiniano da Massa só quer chegar ao Fim do Mundo e achar a civilização que a construiu só pela aventura mesmo. Não tem uma grande ameaça, ninguem morreu, não tem nada em jogo que senão sua vontade de ser um aventureiro.
Quer dizer, no caminho ele topa aqui e acolá com um império maligno do mal que quer também as tais ruínas, mas na real é tão eficiente quanto a Equipe Rocket, então eles estão ali mais pra ser engraçadalhos em sua incompetencia do que uma real ameaça mesmo.
Se for colocar na ponta do lápis, eu suponho, Grandia pode ser descrito como o tipo de RPG "vilazinha da semana"... que é uma estrutura de RPG que eu realmente não sou muito fã. Funciona assim: vc chega numa vila e ela tem um problema aleatório. Vc resolve o problema aleatório da vila e segue adiante, as vezes coletando um dos oito mcguffins que vc tem que coletar para impedir que o Deus das Pitongas desperte.
A diferença aqui é que Justiniano tem um objetivo, ele quer chegar ao Fim do Mundo e depois disso as ruínas da civilização perdida de Angelou, mas na prática ele vai de vila em vila resolvendo tretinhas. Como eu disse, não é algo que eu sou particularmente fã... exceto por uma coisa, um pequeno, quase imperceptível detalhe: esse é um jogo da Game Arts
DE QUEM?
Você sabe, os caras que são mais conhecidos hoje por um pequeno joguinho de Sega CD portado para o PS1/Sat chamado... LUNAR: The Silver Star Story. E isso faz toda diferença do mundo.
Veja, a coisa de LUNAR: The Silver Star Story é que ele pega uma história não tão lunática assim (viram o que eu fiz aqui? Hã? Hã? Eu não sou engraçadão?) e a faz interessante através do quanto carinho e atenção os desenvolvedores colocaram nos personagens e no mundo. Sabe aqueles jogos que são feitos com o coração? Então, LUNAR: The Silver Star Story é um desses e certamente Grandia é também.
Eu disse que a história beira o inexistente e mantenho o que eu disse, mas o que acontece é que o elenco realmente faz Grandia brilhar e dá vida a uma trama que de outra forma seria absurdamente esquecível. Justin, Feena e Sue são três dos personagens mais simpáticos que já encontrei em um videogame. Eles possuem uma combinação de humor, humanidade e entusiasmo que é rara em muitos RPGs.
Um exemplo que me vem a mente com bastante facilidade é quando Justin está se preparando para deixar sua cidade natal. Até este momento, o jogo estava bastante alegre. Justin e sua amiga de infância Sue estavam brincando com outras crianças, Justin teve a oportunidade de explorar algumas ruínas próximas, agora Justin conseguiu um passaporte para embarcar em um navio e começar sua jornada de verdade. Aos 14 anos, sem avisar a mãe.
Cara, ela tá tão na sua |
E então, pela manhã, aconteceu esse momento especial. Sabe a sensação de quando você acorda cedo para chegar ao aeroporto ou é pego por amigos para sair de férias ou em viagem de negócios? Se você já experimentou algo assim, é absolutamente essa sensação que Grandia passa quando Justin acorda cedo para ir embora de casa.
Quando Justin se levantou e saiu da casa de sua mãe, a cidade inteira estava envolta em neblina, com apenas algumas pessoas (como o carteiro) circulando. Não há música, apenas os sons de uma cidade de manhã bem cedinho. E então, quando Justin se aproxima do porto, o sol aparece e enche o porto com a luz do início do dia.
Justin então teve que entrar na fila e descobriu uma carta de sua mãe - então ela sabia o tempo todo. Depois que ele embarcou no navio, ele partiu e a câmera diminuiu o zoom para mostrar uma vista do porto enquanto o navio viajava em direção ao sol nascente.
É desse tipo de momento especial que eu me refiro quando digo que a Game Arts sabe escrever um jogo, sabe passar a sensação de aventura e deslumbramento, a sensação de partir para uma jornada do personagem é foi transportada para o jogador.
Esse não é um jogo sobre personagens sombrios e edgy que veem o mundo como um lugar cinzento e terrível, é sobre a inocencia e o otimismo de crianças ao descobrirem um mundo incrível e e repleta de um espírito contagiante de otimismo. Dito isto, assim como em Lunar, as interações dos personagens são algumas das melhores partes de Grandia. Alguns dos diálogos mais fortes vêm de cenas opcionais ou tangenciais, como aquelas que ocorrem quando acampamos ou fazem uma refeição juntos, nas quais Justin fala com cada personagem enquanto eles discutem suas vidas e suas dificuldades.
Até mesmo os NPCs são mais animados do que o normal, subvertendo a saudação cliche “Bem-vindo a Cidade!” com a maioria tendo não conversas completas com Justin mas que mudam cada vez que você fala com eles conforme coisas acontecem no mundo. Eu cheguei a contar quatro tipo de dialogos diferentes de um mesmo NPC dependendo de que parte da história vc está, mas é possível que hajam mais.
Então estruturalmente, imagine que a Game Arts pegou as premissas de LUNAR: The Silver Star Story e pensou "sabe do que mais? Não estamos mais fazendo um jogo de Sega CD e sim um de nova geração! Bora socar conteúdo como se não houvesse amanhã?". E foi exatamente o que eles fizeram.
Agora, você pode estar se perguntando da onde eles tiram tanta "aventura" pra preencher 60-70 horas de jogo... e a resposta é que não tiram. Eu achei que Grandia fica um pouco arrastado em partes e eu poderia usar uma enxugada de algumas horas.
Ainda sim, é interessante pq o tema do jogo é o amadurecimento do personagem. Justin sai da sua cidade uma criança (literalmente, todo mundo cita isso) e com o tempo vai amadurecendo, sua amiga de infancia volta pra casa e vc segue sem ela (pq esse tipo de coisa acontece na vida conforme vc amadure), Justin se apaixona e desenvolve um dos romances mais organicos já escritos em um RPG dos anos 90, que vai da infancia a descobrir o primeiro amor.
É muito comum dizer que um jogo é sobre "amadurecimento", mas nesse caso eu realmente senti o desenvolvimento de Justin de criança até o herói que salvou o mundo. E quando eu digo "salvou o mundo", eu que.ro dizer que o quarto final do jogo - quando todo o mapa do mundo já foi apresentado e os RPGs normalmente agora se dedicam a explorar as possibilidades - é sobre um fucking kaiju que está tocando o terror e Justiniano tem que reunir todos aliados e inimigos que conheceu durante sua jornanada para salvar o mundo do que é essencialmente uma Weapon de FINAL FANTASY 7.
(que alias tem uma cena muito parecida com a do canhão de Junon, nessa parte eu dou o beneficio da comparação pq parece mesmo).
Ainda sim, em um momento vc está brincando com seus coleguinhas da cidade, e dezenas de horas depois vc está num filme do Godzilla reunindo recursos e aliados para salvar o mundo de um kaiju em uma jornada que faz sentido no ponto de vista de desenvolvimento do personagem e das ameaças. Então, é, eu gosto da estrutura desse jogo.
A outra coisa que eu gosto nesse jogo é também sua mecanica pq ela é diferente de qualquer coisa que eu já tenha visto em um RPG, e uma bem interessante:
Essa barra de "WAIT" embaixo da tela vai movendo os avatares dos participantes na luta conforme o seu atributo de velocidade. Quando chega em "COM" o jogo para e o jogador pode escolher um comando, e quando chega em "ACT" o personagem o executa.
Até aí tudo bem, parece um ATB normal de RPGs que já vimos em vários jogos da Square, qual é a grande coisa? Bem, a grande coisa aqui é se o personagem for atacado entre ter sido dado o comando e ele agir (em algum ponto da barra COM e ACT), o ataque dele é cancelado e ele perde a rodada.
Então a pira da luta contra os inimigos é balancear causar dano, mas também escolher ataques e magias que calhem de acertar bem nesse timing de cancelar o movimento do adversário. Como dá pra imaginar, existe uma estratégia aqui e se você jogar suas cartas direito, consegue lutar com um chefe sem deixar ele atacar. Por outro lado, o contrário também é verdadeiro e o computador pode cancelar sua rodada, o que somado a todo caos no campo de batalha cria um sistema muito único e dinamico.
É um sistema perfeito? Não realmente, as ferramentas que você tem para acertar o timing dos seus ataques são meio rudes e eu gostaria de ter um controle maior sobre isso - algo que certamente será melhor polido em uma continuação, tenho certeza. Ainda sim, é um sistema bastante interessante que adiciona o elemento estratégia ao combate, algo que eu não posso dizer que a Game Arts teve sucesso quando tentou colocar controle de campo no elemento do gameplay de LUNAR: The Silver Star Story.
E eu diria que esse sistema de combate reflete bem a experiencia do jogo como um todo: podia ser melhor polido? Podia. Mas Grandia não está tão preocupado com isso, não nesse primeiro jogo pelo menos, e sim em tentar algo verdadeiro e genuíno. Ao contrário de LUNAR 2: Eternal Blue, eu sinto que ESSE jogo é a verdadeira sequencia de LUNAR: The Silver Star Story no sentido de que ESSE foi o jogo que a Game Arts verdadeiramente derramou seu coração e suas aspirações artisticas.
Então o resumo da ideia é que os gráficos obviamente não são tão bons quanto se via no Playstation (com efeito, não muito tempo depois a Square lançou Xenogears usando esse mesmo sistema de sprites sobre um mundo 3D e lavou o chão), a trilha sonora não é tão marcante e o combate cabia um polimento para explorar melhor suas ideias.
A única coisa que eu realmente gostaria que a Game Arts mudasse mesmo é aprender a fazer inventário de itens. Pq sério, o inventário de LUNAR: The Silver Star Story era terrível, ficou levemente menos pior (mas ainda ruim) em LUNAR 2: Eternal Blue e agora parece que piorou.
Mas esse é um jogo feito claramente feito com o coração e, no fim do dia, é isso que realmente conta. Especialmente em uma época em que a moda era ser o cinicão trevoso, definitivamente você não verá muitos jogos como esse.
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 048 (Março de 1998)
MATÉRIA NA GAMERS
Edição 018 (Maio de 1998)
Edição 022 (Setembro de 1997)
Edição 027 (Fevereiro de 1998)
Edição 028 (Março de 1998)