quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

[AÇÃO GAMES 014] DESERT STRIKE: Return to the Gulf (Mega Drive, 1992) [#178]


O subtitulo "return to the gulf" me fez achar que era uma continuação quando eu era criança. E 30 anos depois também.

Aqui vai uma pergunta filosofica a todos vocês que usam boinas enquanto bebem cafés desnecessariamente caros: uma boa ação é realmente boa mesmo que feita por motivos mesquinhos? 

Esse é um debate realmente profundo na filosofia, e para jogar um pouco de luz em tão complexa questão com um estudo de caso: Saddam Hussein foi um dos piores seres humanos que a nossa espécie vergonhosamente já conseguiu produzir. Os números exatos de pessoas mortas pelo seu regime ditatorial no Iraque jamais serão conhecidos, mas apenas as covas coletivas descobertas apontam que meio milhão de pessoas ao longo de trinta ano não é um número exagerado, sendo que muitas dessas pessoas tiveram mortes realmente horríveis e dolorosas sob o uso de armas químicas.

Por isso quando a família Bush (primeiro com o pai em 1991 e depois com o filho em 2003) tomou como cruzada pessoal dar fim aos desmandos desse monstro, isso é uma coisa inexoravelmente boa, não é?

Bem, é mais complicado que isso. Honestamente, o governo não podia estar se fodendo mais para o regime de desaparecimentos, tortura e genocídio do Iraque, mas estava realmente se importando com os 20% da produção mundial de petróleo que a região oferece. Quase 50 mil pessoas morreram porque o litro da gasolina não podia chegar a 5 pila, né?

Então, uma boa ação realizada por motivos mesquinhos ainda é uma boa ação?

Como eu disse, essa é uma questão delicada que exige um complexo debate. Ou podemos fazer um videogame sobre isso, é, acho que isso serve também.


Armado até os dentes com mísseis Hydra e Hellfire, para não mencionar um canhão automático com balas de 30 mm, o helicoptero o Apache AH-64 é uma das peças mais mortais de equipamento militar dos anos 90. Com uma capacidade de ataque igual a 20 tanques e como uma centena de vídeos no YouTube podem testemunhar, é melhor você não estar no lado errado desse helicóptero quando os pipocos começarem a estourar.


AMERICA FUCK YEAH!

Agora imagine tentar encaixar essa máquina assustadora em um jogo convincente, armado com apenas um punhado de cores e pixels. Foi isso que a Eletronic Arts tentou fazer com Desert Strike, um jogo baseado na primeira guerra do golfo que, quando o jogo foi lançado, tinha terminado a menos de um ano atrás. Vamos ver mais de perto como isso foi feito:


Nossa história começa quando um terrível líder terrorista, o General Kilbaba invade uma próspera nação dos Emirados Arabes que totalmente não é o Kuwait. Para mostrar que Kilbaba não está para brincadeira, o "louco" (como o jogo se referirá a ele daqui para frente) dá uma amostra do que faz com aqueles que discordam dele na questão Biscoito vs Bolacha:


Na versão de Mega Drive, para qual o jogo foi originalmente criado, o prisioneiro é cozinhado vivo/derretido no ácido/comido por piranhas/recebe um agradavel banho quente. E o soldado não apenas faz isso bem lentamente como dá um sorrisinho de satisfação no final. Uau, realmente pesado, caras!

Como você pode imaginar, a versão do SNES tem algo bem mais família:


Muito mais gratificante. Eu gosto especialmente de como eles fizeram uma jaula que fica bem no meio do corredor, trancando a passagem. Imagino que deve ser porque as celas estão lotadas, o que ainda sim torna esse sistema melhor que o sistema carcerário brasileiro.


Enquanto isso, temos general Kilbaba, o louco, fazendo discursos na frente de mapas de países fictícios e ameaçando seus subalternos mais próximos porque é o que um general do mal faz, afinal. Incidentalmente, ele parece menos com o Saddam Hussein do que eu poderia esperar.

Muammaar, entretanto, tem outras ideias:

Num bate no Prince!

Considerando a cena que abre essa intro, podia ter terminado bem pior para você, Muammaar.

De qualquer jeito, um tapa foi tudo o que realmente precisou para convencer Muammaar a esquecer o futuro de seus filhos e voltar a organizar a Terceira Guerra Mundial. Eu não o culpo, já que ele não é o primeiro Muammaar a ter estado nessa posição (e certamente não será o último). 

 Mas se Kilbaba, o louco, está planejando uma terceira guerra mundial, nada tema! Pois do outro lado do ringue, o sábio presidente George Bush (pai) tem essa situação devidamente contingenciada:


Mandar um único piloto sozinho para resolver a parada. Honestamente, essa é a parte mais realista do jogo, realmente parece uma ideia saida da cabeça de um Bush.


Assim, o nosso herói e o seu co-piloto sobem na mais sinistra máquina de guerra do exército americano a época  em sua missão de derrotar o mal e espantar o temporal. Enquanto isso, aquele cara ali de óculos escuros só quer que o helicoptero desocupe a pista de pouso para ele voltar a estender sua cadeira de praia. Prioridades, homens, prioridades!

Bem, essa foi a introdução. Passada ela, o jogo finalmente nos brinda com a ela inicial e seu fantástico míssil com capacidades elásticas!


Ao começar o jogo de verdade, tem mais uma cena onde seu superior te passa a missão enquanto você toma um café com seu bro:


Eu realmente gostaria de saber o que pode ser pior que a terceira guerra mundial. Das duas, uma: ou esse cara é extremamente imaginativo, ou deve ter um senso de prioridades muito zoadas. De qualquer maneira, em todas as quatro fases do jogo você tem uma lista que podem ser cumpridas em qualquer ordem, embora seja recomendável cumprir na ordem que o jogo que dá porque ao completar um item da lista os inimigos do próximo ficam mais fáceis. Por exemplo, na primeira fase as missões são essas:

  1. Destroy the radar sites.
  2. Blow up the power plant.
  3. Bomb the airfields.
  4. Hit the enemy command centres.
  5. Find and rescue the secret agent.
Teoricamente eu posso ir direto bombardear as pistas de pouso, mas os inimigos serão muito fortes e vão te abater em poucos tiros. Porém se você destruir os radares e a usina de força antes isso vai enfraquece-los. Existe uma lógica narrativa nisso e uma mecanica suportando essa narrativa, o que é uma coisa boa e inesperada para a época, veja só.

Outra coisa muito boa é que a tela de menu do jogo é ultra intuitiva e mesmo sem manjar muito de inglês (como quando eu joguei quando era criança) é fácil entender o que você tem que fazer:


O seu helicoptero Apache é controlado um pouco como um helicóptero de verdade. Isso quer dizer que se eu não apertar nada ele ficará feliz em pairar no mesmo lugar até que o combustível se esgote (embora o combustível não gaste em cima do oceano, por algum motivo), mas se eu pressionar para cima ele inclinará seu nariz para baixo e acelerará para frente. Do mesmo modo, para baixo ele vai dar ré na direção que estiver virado. 

E, tal qual um helicoptero de verdade, ele sofre uma certa inércia e escorrega um pouco para manobrar - como esperado de uma troncha de metal de 2 toneladas, que pode ser desativada se você for algum tipo de lunático que odeia a física. 


 A coisa tem um número ridículo de ângulos para um sprite 2D, especialmente quando você considera que ele se inclina quando acelera e recua quando você dá ré. É incrível o quão suave os sprites 2D são, até parece um modelo 3D de verdade! 

Hoje eu sei que esse foi um modelo 3D digitalizado como sprites, mas era bastante impressionante na época. Na verdade, ainda é hoje em dia. 

Porém, enquanto pilotar o seu helicoptero é bastante gostoso e você sente que ele tem o peso que um helicoptero deveria ter (ao menos na minha imaginação, não é como se eu saísse dando roles de helis por aí pousando em monstros e tal), o mesmo não pode ser dito da mira do jogo. Vê, o jogo tem uma mira semi-automática pq mirar manualmente em alvos pequenos em 3D seria um pesadelo, mas a inteligencia artificial dela não é a melhor. Eu sei que isso depende do co-piloto que você escolhe, mas nenhum é absolutamente satifatório realmente.

Não, sua anta, atira no tanque atirando em mim, não no radar inofensivo!
Bem, agora que eu já expliquei como controla o helicoptero e quais são os objetivos, então vamos falar de como o jogo é. A este ponto, você poderia esperar um jogo de ação de matar tudo que estiver em seu caminho com sangue e trovão because AMERICA FUCK YEAH, certo?

Bem, não. Surpreendente, Desert Strike é muito mais um jogo de estratégia do que um jogo de ação.

De certa forma, pensando sobre isso agora, ele me lembra um pouco Dark Souls. Você pode, é claro, ir para cima dos inimigos como um boi brabo e descobrir que mesmo o mais comum dos inimigos pode te derrubar em uma luta 1x1. O que o jogo espera que você faça, contudo, é otimizar seus recursos: você tem combustível limitado, munição limitada e armadura limitada para o seu heli.

No mapa existem tanto os objetivos que você que destruir ou resgatar, quanto recursos espalhados (alguns dentro de construções, que precisam ser destruídas primeiro). O segredo do jogo é descobrir uma rota otimizada para pegar seus inimigos por trás (quase todos os inimigos demoram muito para virar), cumprir seus objetivos e pegar recursos de reabastecimento no mapa.

O que significa que, apesar do jogo ter só 4 fases, você só vai conseguir fechar qualquer uma delas depois de morrer muitas e muitas vezes até descobrir um caminho ideal. Considerando que principalente o combustível disponível no mapa é contado na unha para completar a fase, serão realmente muitas tentativas até saber como fazer o combustível ser suficiente.

E mesmo depois que você saber o que fazer, não quer dizer que executar seja uma tarefa trivial. Esse é um dos jogos mais dificeis que eu já vi no Mega Drive.

Tinha um feladaputa com um lança missil escondido dentro do galpão que não tem como desviar BECAUSE FUCK YOU, THAT'S WHY!
Por outro lado, quando você sabe o que fazer E as coisas dão certo, explodir os inimigos como um anjo da morte nascido da furtividade é altamente satisfatório:


Desert Strike pode ser uma ótima experiência quando as coisas estão dando certo e você consegue fazer os inimigos em pedaços com dois foguetes para cada. O Apache se parece muito mais com um objeto real do que o seu típico sprite de avião de 16 bits, com seu momentum e seus 3 bilhões de quadros de animação, e é divertido apenas voar por aí. Bem, quando você não está tentando evitar um missil nas suas fuças, de qualquer maneira.

Meu deus para de atirar na areia, como tu erra um avião parado?!?


Mas a mira semi-automática pode facilmente te levar a loucura, tornando um jogo já MUITO dificil em mais dificil do que ele precisa ser. Do mesmo modo, o combustível disponível no mapa é muito pouco para terminar a fase - se ao menos você voltasse com o tanque cheio quando morresse, mas nem isso. Não fosse o suficiente, ser capaz de explodir acidentalmente o combustível ou munição disponveis no mapa é definitivamente algo que eles poderiam ter deixado de fora, já que não serve para nada senão te deixar frustrado e exigir que você decore o que tem em cada prédio

Tinha uma caixa de munição dentro desse prédio. TINHA.
 Cara, esse jogo adora soltar um "AHA, te peguei!" Opa, tinha um cara com um lançador de foguetes dentro daquele prédio que você destruiu, você perde vida. Ops, você acabou de matar o comandante que sabe onde seu agente está, que é quase igual a todos outros inimigos no jogo, você perdeu o jogo. 

Não existe uma chance justa de passar por um nível em sua primeira tentativa, você precisa continuar atacando várias vezes e aprendendo o que esperar. E depois do primeiro nível fica muito mais complicado do que isso. Entendo que é um estilo de jogo que funcionava nos anos 90 quando uma fita tinha que durar a vida toda porque não tinha promoção na Steam dali a três meses, mas hoje em dia é dificil apreciar esse tipo de coisa.

Isso posto, tenho que reconhecer que esse é um jogo diferente de qualquer outra coisa feita até então, que tenta coisas novas e entrega muito bem o que pretende fazer. Objetivos faceis de entender, helicoptero gostoso de pilotar que parece ter o peso adequado, até coletar itens e resgatar pessoas é satisfatório.

Quando você se aproxima de um recurso ou alguém resgatavel o helicoptero baixa um gancho/escada de corda para efetuar a recuperação. Porém isso só acontece se você estiver em baixa velocidade, o que deve ter sido um pesadelo de programar mas ficou muito bom.
Tem uma última coisa que eu quero falar sobre esse jogo, antes de encerrar. Na última fase você, obviamente, enfrenta o general Kilbaba e impede que ele comece uma guerra nuclear - o que é bom. Só que antes disso, seu primeiro objetivo na fase não é esse. A prioridade número um do exército americano é que você recupere um campo de petroleo, só depois que você deve se preocupar em salvar o mundo. Caso você acidentalmente destrua a refinaria no meio do fogo cruzado, o jogo te exibe a seguinte mensagem:


Jogando os jogos da Ação Games, eu já vi muita coisa. Mas cutucada em uma situação real da atualidade da época (lembrando que esse jogo foi lançado menos de um ano depois da guerra do golfo), essa foi a primeira vez. Cool, huh?


MATÉRIA NA EDIÇÃO 021: