quarta-feira, 19 de julho de 2023

[#1138][Out/97] FALLOUT: A Post Nuclear Role Playing Game

Quase duas semanas sem postar aqui, porém é por... bem, eu ia dizer "bom motivo", mas isso não é necessariamente verdade. Se mudar quando você mora sozinho definitivamente não é uma experiencia que eu posso rotular como "boa", então tem isso. O outro motivo pelo qual eu estou tanto sem postar, entretanto, é bem mais interessante e o motivo do post de hoje: é que a guerra... bem, a guerra nunca muda.

Mas vamos começar do começo...

A ideia de fazer transportar o RPG de papel e caneta, dados e mesa para os videogames não é exatamente nova. Desde que os primeiros computadores cairam na mão dos primeiros nerds no final dos anos 70 isso tem sido tentado... com variados graus de sucesso. A encarnação mais famosa dessa ideia, é claro, foi quando os japoneses incorporaram as mecanicas de rolagem de dados e turnos para dentro da mecanica do jogo e sobre isso criaram a sua própria coisa, o que hoje é conhecido como o jRPG. Mas... 


... isso não parece muito com o RPG como o conhecemos, né? Não, não muito.

Mas então comofas? Bem, existe um genero de jogos chamado cRPG - que significa justamente "classical RPG" que busca justamente fazer essa ponte do RPG de mesa para o videogame e enquanto uma conversão que você diga "minha nossa, não existe diferença de ter um DM mestrando uma partida de RPG" - não enquanto as IAs não evoluirem mais pelo menos, bem, definitivamente a experiencia é mais perto do que podiamos esperar. Especialmente nos anos 90.


Até então, o unico jogo do tipo que eu joguei nesse blog tinha sido DIABLO... mas enquanto DIABLO certamente usa a estrutura de outros cRPG, ele certamente foca muito mais no G do que no RP. O que quer dizer que a parte de personagem nesse jogo é basicamente inexistente, temos apenas as mecanicas tiradas diretamente do RPG de mesa.

Mas E SE, veja bem, E SE um jogo tentasse fazer a parte do RP que Diablo não faz? Você sabe, ter um personagem de verdade, interagir com o mundo, resolver as coisas criativamente e não apenas na porrada e todas as outras coisas legais que um RPG de mesa permite você fazer?

Pois é, se você imaginar um jogo assim... você começa a entender o que é Fallout, o jogo que tentou colocar o RP de volta no RPG de videogames. E quando eu digo que Fallout é um RPG de mesa adaptado para videoames eu não estou brincando, originalmente o jogo deveria usar GURPS como sistema de jogo. Com efeito, a forma que o criador do jogo descreveu sua inspiração foi:

For example, if the GM said, "There are two bandits ahead of you.", there would always be a variety of actions from the players. "I sneak into the bushes to lay an ambush." "I take cover and ready my bow." "I approach to parley." " I run up and intimidate them into giving me their money." "I run past them shouting, 'Oh god, it's right behind me! Run!'" It was rare that players in a paper-and-pencil game would just say, "We attack them."

A minha experiencia é um pouco diferente da do Tim e "eu ataco" não é uma frase tão rara assim em RPG de mesa. Mas de qualquer forma, isso levou a uma das regras de design de Fallout: várias decisões seriam possíveis para superar qualquer obstáculo. E como GURPS era um jogo repleto de skills, muitas vezes haviam skills inúteis para o jogo proposto. Como tal, a equipe de design decidiu que não haveria habilidades inúteis. Outros elementos adicionados ao jogo foram o humor negro (mas não pastelão) e a equipe também planejou que todos os atributos fossem valorizados, desde a força bruta até a esgueirar-se e a fala rápida. E, finalmente, a equipe de design decidiu que todas as ações deveriam ter repercussões, incluindo a violência contra crianças.

As coisas estavam indo bem, com uma interface completa que conseguiu capturar a complexidade do GURPS... tanto quanto era possível para um jogo de 1997... Então tudo deu errado. O que deu errado? A abertura do jogo.

Sim, o problema foi o que eu considero até hoje uma das melhores e mais brilhantes aberturas de todos os tempos de todos os jogos. Infelizmente, Steve Jackson (o homem forte do GURPS) achou violento demais e não queria que o seu RPG ficasse associado com violencia. Eu meio que entendo o ponto dele, vc ter o seu sistema adaptado para uma midia de massa como videogames acaba passando uma imagem, mas... bem, vamos dizer que no fim das contas GURPS saiu perdendo mais com a quebra de contrato do que Fallout.

A Interplay essencialmente mudou apenas o minimo necessário do sistema de GURPS pra não tomar um processinho e mandou bala assim mesmo. E assim nascia Fallout.

As revistas na época do lançamento, como NEXT Generation, compararam Fallout a outros jogos baseados em turnos, como X-COM: Terror from the Deep, poém afirmando que:

As peças individuais de Fallout têm “o potencial de mudar a face do RPG de computador para sempre”.
E foi exatamente o que acontceu. Mas o que Fallout faz de tão especial, afinal?

Bem, pra começar, tem o cenário. Videogames não são estranhos a cenários pós-apocalipticos, então como Fallout se diferencia de todos os outros jogos que se passam em terras arrasadas? Em uma palavra: retrofuturismo. Você sabe, aquele estilo de arte baseado em como as pessoas achavam nos anos 50 que o futuro seria.


Isso por si só já chama atenção, é uma escolha artistica diferente. Porém uma vez que o jogo conseguiu se destacar e chamar sua atenção, ele não a desperdiça e vamos a segunda coisa que faz Fallout ser interessante: a criação de personagem.

Essa é a parte do jogo que mais permaneceu fiel a GURPS e tem atributos, pontos de perícia e talentos. Porém o que torna esse jogo interessante é que - diferente do que normalmente acontece até mesmo hoje - ele leva em consideração seus atributos na hora de estabelecer os dialogos do jogo.

Por exemplo, se você tem inteligencia normal e se aproxima de uma máquina de caça-níqueis, o jogo te descreve que é uma máquina de caça-níqueis. Agora se você dumpou a inteligencia e seu personagem não é mais esperto do que alguem que discute política no Twitter, bem...


Com efeito, se vc tiver speech alto o suficiente e escolher as opções de dialogo corretas, é possível derrotar o último chefe apenas através do dialogo. Essa é, de longe, a melhor caracteristica de Fallout e a que mais parece um RPG de mesa: a capacidade de escolher o caminho que vc quer que a história siga. Se vc quiser ser mau e matar todos em seu caminho, vc pode. Ou vc pode resolver as coisas na conversa. Ou ainda ser o master ladino e roubar seu caminho para a vitória debaixo do nariz deles e obter o mesmo resultado.

O que por si só já é interessante, mas aí a Interplay foi e adicionou mais uma camada de complexidade ao jogo: o mundo de Fallout tem sua própria agenda. O jogo tem um relógio interno e certos eventos acontecem em determinadas datas, não antes, não depois. Por exemplo, em determinada vila a filha do chefe pode estar lá, já ter sido sequestrada por saqueadores (lá por volta da metade de janeiro isso acontece) e se vc só ir pra vila dos saqueadores muito pra frante, ela já vai ter ido de base.


Isso faz com que o mundo de Fallout pareça muito dinamico e vivo ao jogador, e que definitivamente não gira ao redor dele - que é uma coisa comum nos RPGs de videogame, os eventos "esperam" o jogador.

Isso faz de Fallout um dos jogos mais ambiciosos de todos os tempos, especialmente uma vez consideradas as limitações tecnicas da época. O que nos leva a pergunta que realmente importa: e aí, a Interplay conseguiu entregar toda sua ambição almejada nesse jogo?


Eeeeeeentãaaaao... Fallout 1 tem intenções celestiais, mas a execução não é tão estelar assim. O principal problema do jogo é que enquanto no papel ele pode ser todo resolvido gambiarristicamente, na prática não. Inúmeros combates são obrigatórios (quer dizer, vc não é obrigado a atirar de volta, mas certamente isso não vai parar os inimigos), e não ajuda muito que o combate tem várias coisas altamente questionáveis.

Não apenas pq o jogo exige build especifica voltada para o combate - o que é um tiro no pé a proposta de RPG aberto, mas enfim - como o combate em si é todo clunky. Não espere aqui a fluídez em tempo real de DIABLO e nem a precisão tática de X-COM: Terror from the Deep. O jogo meio que parece tentar fazer as duas coisas ao mesmo tempo, e para surpresa de ninguém, não é realmente incrível em nenhuma delas. Fallout não é um jogo de ação, mas tenta ser, e também não é exatamente um RPG Tático, mas meio que tenta ser também. 


E não ajuda muito que a dificuldade do jogo assume que você vai ter companheiros te ajudado, só que o problema você não pode controlar seus companheiros, o que é compreensível nas lutas em tempo real encontradas em Fallout 3 e além, mas não faz sentido em um sistema baseado em turnos. Seus companheiros fazem manobras de combate altamente ineficientes e não há absolutamente nada que vc possa fazer a respeito. Isso resultou em mais do que algumas mortes desnecessárias e facilmente evitáveis.

O combate pode não ser ótimo, mas e a jogabilidade não-violenta mais baseada em quebra-cabeças? Beeeeeem... também é altamente questionável. Muitos dos puzzles, que às vezes podem ser extraordinariamente complicados, são fortemente inspirados nos point'n click da velha escola, onde as soluções mesmo quando fazem sentido (não tome isso como garantido) ainda sim exisgem uma linha de raciocinio mais cumbersome possível. 


Tá, tudo bem, eu entendo que naquela época os jogos eram intencionalmente complicados e vagos pq o jogador LITERALMENTE não tinha nada melhor pra fazer com o seu tempo, mas não posso dizer que eu amo jogos que vc precisa jogar com um walkthrough ou passar três meses tentando todas as coisas possíveis para ver o que funciona, pq a sequencia e a ordem das coisas que você tem que fazer não é exatamente... intuitiva.

Tenho outra pequena queixa em relação aos companheiros, mas desta vez tem a ver com os quebra-cabeças do jogo. Veja bem, ao chegar a um determinado local do final do jogo, o jogador deve se aventurar além de um certo ponto sozinho se desejar ir para a solução não violenta, e isso seria perfeitamente bom se todos os seus companheiros pudessem ser dispensados ou instruídos a esperar em algum lugar. Só que um dos seus companheiros é um cachorro e não pode ser instruído a fazer nada, então a única maneira de fazê-los parar de te seguir é matá-lo. Não sei se foi uma decisão de design intencional because dark humour ou apenas erro na programação, eu não posso endossar um jogo que você precisa matar o seu doguinho.


Mas enfim, no fim do dia você ainda precisa considerar que Fallout é um jogo de computador de 1997 e tem vicios de jogos de computador de 1997. Se você puder aceitar isso, é um RPG incrívelmente ambicioso que estabeleceu a atmosfera característica de Fallout, seu sistema flexível de criação de personagens e sua liberdade de mundo aberto que permite explorar o deserto e descobrir seus segredos do seu próprio jeito. E o fato de que você pode atirar em qualquer um a qualquer momento, ou criar um personagem com pouca inteligência e abrir caminho durante toda a história, ou se tornar tão inteligente que pode convencer o vilão a se autodestruir, fala muito sobre sua ambição e porque esse jogo se tornou tão iconico.

Eu, pessoalmente, vou colocar o mesmo que eu coloquei sobre o primeiro DIABLO: a ideia é boa, mas eu vou esperar um tapa na jogabilidade e aquela polida gostosa para trazer tudo que esse jogo se propõe a fazer a tona. Fallout 2, estamos todos contando com você!

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 046 (Janeiro de 1997)