domingo, 19 de maio de 2019

[AÇÃO GAMES 015] TOP GEAR (SNES, 1991)[#224]



Quando se fala do Brasil no cenário internacional, dificilmente é algo positivo. No cenário dos games então, é um circo de horrores. Do país onde a pirataria é considerada um "direito", pouca coisa que dá orgulho nasce. Estou escrevendo este texto, porém, na noite da véspera de natal e por isso eu queria fazer algo diferente. Algo positivo, algo bom.

Esse será um texto sobre aquela vez que os brasileiros foram fodas pra caralho.

Isso porque, saiba você, pouca gente no mundo lembra de um jogo obscuro da mais obscura ainda Gremlin Interactive (cujo maior legado para a história dos videogames foi ter adquirido a DMA Design, que viria a se tornar a Rockstar North e implodir o mundo dos games com seu GTA) chamado Top Gear. A maior parte dos livros "jogos indispensáveis de todos os tempos" ou "1001 jogos para jogar antes de morrer" dificilmente citará esse joguinho de corrida.

Exceto no Brasil.

No Brasil, se você colocar um sintetizador no meio da rua e deslizar a mão sobre o teclado, praticamente todo mundo que foi jovem durante os anos 90 não vai parar para se lembrar da sua infancia ao som dos primeiros acordes de Mad Racer. Top Gear era insamente popular, era um dos jogos que fazia o SNES valer a pena, sendo colocado no mesmo patamar que Super Mario World, Donkey Kong Country e International Superstar Soccer. Eu não estou te sacaneando, Top Gear era grande assim.

Agora, o mais bizarro disso tudo é que isso só acontece no Brasil, no resto do mundo Top Gear dificilmente é lembrado, e jamais colocado como um dos gigantes.

Quando a Video Games Live (o grande concerto com os clássicos dos games) veio para o Brasil, o produtor Tommy talarico ficou surpreso do quanto as pessoas pediam para ele incluir Mad Racer na playlist do show. Na verdade, mesmo sendo um apaixonado por games, até vir para o Brasil, Tommy sequer havia ouvido falar de Top Gear!


Mas e aí, Top Gear é isso tudo mesmo ou os brasileiros que são lesados mesmo?

Bem, vamos começar falando do óbvio: a trilha sonora de Top Gear é outro nível. Eu não acho que algum jogo de corrida tenha conseguido montar uma playlist original de trilha sonora tão boa até hoje, embore eu gosto muito dos jogos com trilhas de músicas licenciadas como Rock'n Roll Racing e Need for Speed Underground (tulundundam, to the window! To the crowd!), em trilha sonoras originais não tem nada que possa competir com isso.

A trilha sonora de Top Gear é tão boa que em 2015 um estudio brasileiro lançou um jogo de corrida fortemente inspirado em Top Gear, Horizon Chase, e a grande atração da produção é que a trilha sonora foi criada pelo próprio Barry Lynch.

Horizon Chase é uma série de jogos para celular inspirados em Top Gear, criado pelo estúdio porto-alegrense Aquiris Game. Em 2018 o estúdio lançou uma versão completa para PC e PS4, em breve para Nintendo Switch
Então, a trilha sonora é simplesmente ours concours, Ok, certo, mas e o jogo?

Bem, quanto a isso, Top Gear faz algumas coisas incrivelmente certas também. Veja, quando um jogo é feito em 3D, o videogame constrói um mundo virtual na memória do videogame e a camera pode mostrar qualquer coisa desse cenário. Assim, adicinar um segundo jogador é relativamente simples: basta colocar outra camera e pronto.

Um jogo 2D é bem mais complicado do que isso. Como os gráficos do jogo tem que ser confeccionados manualmente, adicionar um segundo jogador quer dizer que o videogame tem que processar um segundo jogo do zero! E fazer esse segundo jogo conversar com o primeiro, é um pesadelo fazer isso direito!

É por esse motivo, por exemplo, que F-Zero não tem um modo para dois jogadores porque quando eles testaram a possibilidade de ter dois jogos rodando ao mesmo tempo, o processador do SNES se sentiu uma colegial virgem de um hentai. Alguns anos depois eles tiveram que baixar muito a velocidade do jogo para conseguir fazer um modo de dois jogadores que não implodisse o processador do SNES. Baixaram tanto que o jogo de corrida teve que virar um modesto joguinho de kart... e foi assim que Super Mario Kart nasceu.

Alias é por isso que alguns jogos tem a tela dividida mesmo quando você joga sozinho, porque a arquitetura do jogo foi criada para trabalhar com dois jogadores e é mais fácil não mostrar nada (como em Mario Kart) ou mostrar um jogador controlado pela CPU (como em Top Gear) do que criar uma arquitetura de programação do nada.

E porque eu estou falando disso? Porque Top Gear consegue fazer o que a NINTENDO (a porra da CRIADORA DO CONSOLE não conseguiu fazer!) e tem um modo de tela dividida que passa uma sensação absurda de velocidade. Como eles conseguiram fazer o SNES passar essa sensação sem causar blackout nas três cidades vizinhas é algo que exigiu mais truques de programação e ilusões de ótica do que o Barney Stinson tem de cantadas, mas eles totalmente conseguiram puxar esse coelho da cartola.

Então, é, Top Gear é o jogo que fez o que a NINTENDO não conseguiu fazer.


Ainda no gameplay, algo que eu gosto profundamente nesse jogo é a fisica dele. Não porque ela seja absurdamente realista, mas porque ela é consistente. O jogo estabelece um dialogo com você e você sente que está no controle do carro o tempo todo.

Muitos jogos de corrida se perdem mais do que completamente ao tentar imprimir uma sensação de velocidade, e seu carro é apenas jogado para cima e para baixo sem que você tenha controle do que está acontecendo. Top Gear controla isso muito bem, e você tem o carro na mão o tempo todo, você entende a física daquele mundo proposto e quando acelerar e desacelerar.

Falando em física, a detecção de colisão com outros carros nesse jogo não é perfeita e muitas vezes é dificil entender qual é a hitbox do seu carro. Top Gear seria um jogo muito melhor se tratasse disso com mais cuidado, porém esse fato é compensado pelos excelentes efeitos sonoros que tornam as fechadas nos adversários algo extremamente satisfatório, e as batidas nos retardatários em algo enfuriante - como é suposto ser em um bom jogo de corrida.

Um problema que todo jogo de corrida que se preze deve tentar evitar é a repetitibilidade, e a última coisa que um jogo pode se permitir é que você sinta que está fazendo a mesma coisa o tempo todo, só virando em curvas diferentes. Quanto a isso, Top Gear tem algumas boas ideias sobre esse assunto.

Em primeiro lugar, Top Gear te mantém permantemente acordado adicionando retardatários a equação. Não é como em Mario Kart que depois que você assume a liderança mais nada está no seu caminho exceto uma eventual casca de banana. Em Top Gear você tem que prestar atenção o tempo todo em carros em quem você já está dando uma volta.

Agora a maior adição a isso é a administração do combustível. O jogo oferece quatro carros diferentes, inspirados em carros reais porém sem as licenças para usar as marcas, e o grande diferencial entre eles é que eles tem velocidades diferentes e consumos de combustíveis diferentes.

Ferrari Testarossa (vermelho), Ferrari GTO (branco), Jaguar XJR (roxo) e Porche 959 (azul)
Isso adiciona um elemento de estratégia a corrida que mantém o jogador preocupado e interessado. O carro roxo é o mais rápido, mas ele gasta mais combustível e precisa parar para reabastecer em corridas onde o branco não precisa, por exemplo. Algumas pistas mais longas existem até duas paradas para reabastecimento dele. E uma vez parado, quantas barrinhas de combustível você espera colocar antes de saír. Vai ser suficiente? Por outro lado a corrida não para e cada segundo parado... bem, é um segundo parado em uma corrida, né?

Definição de nervousor nos anos 90 em uma imagem
Adicione a isso três nitros para serem usados por corrida e temos algo com varias variaveis ocorrendo aqui, fazendo com que as corridas nunca fiquem chatas ou previsiveis. O sistema de pontos para avançar para o próximo país do jogo também é um charme que funciona graciosamente.

Maldito seja, Ritchie, maldito seja!
A propósito, o eterno algoz Ritchie vem do nome de um dos programadores chefes do jogo, Richie Brannan.
Damn you, Richie!
A última coisa que eu gostaria de falar sobre esse jogo é a caracterização dos países. A estrutura do jogo é que cada país tem por volta de 6  pistas (um número bastante grande), e você precisa terminar o campeonato entre os três primeiros para avançar para o próximo.



Top Gear faz a caracterízação básica de cada local (a pista de Roma tem o Coliseu ao fundo, a do Rio de Janeiro tem o Corcovado), mas também uma caracterízação mais personalizada também, como os obstáculos da pista de Bordeaux serem estatuas de uvas gigantes porque a região é conhecida pela qualidade dos seus vinhos, ou na pista da Amazonia serem placas de "salve a floresta tropical". Agora, a parte REALMENTE interessante disso é que shennanigans visuais a parte, cada região tem um estilo de traçado bastante único a ele



As pistas da Escandinávia, por exemplo, tendem a terem curvas de 90 graus fazendo traçados quadrados, as do Japão são conhecidas por alternar entre vias largas de 6 faixas e estreitas com entulho na pista. O que eu quero dizer é que existe um padrão, um estilo no design atribuido para caracterizar cada conjunto de pistas mais do que apenas spritezinhos genéricos. Esse é um trabalho de atenção que poucos jogos de corrida se deram ao trabalho de fazer.


As pistas da escandinávia tem traçados retos como seus Legos e seus celulares Nokia, as pistas do Japão representam o bo designe e a falta de espaço que é uma constante na vida niponica, e as da América do Sul alternam entre asfalto e trechos de chão batido porque provavelmente o governo superfaturou a obra e embolsou o dinheiro ao invés de concluí-las.
Em resumo, Top Gear é uma obra prima que acerta 90% do que tenta fazer.  Um casamento sublime de velocidade, acessibilidade e profundidade faz um jogo de corrida emocionante e envolvente que é um dos melhores da sua geraçã. A coisa das colisões podia ser melhor trabalhada, mas como o jogo acerta o prego em martelada só em todos os outros aspectos é algo com o que se pode viver.

Na época do seu lançamento, a recepção do jogo foi de morna para bastante negativa. A, geralmente otimista, revista britanica Super Play disse: “O consenso geral, aqui no escritório, é que é um pouco simples demais. Um pouco antiquado e você pode fazer muito melhor ”. Eles não estão sozinhos nessa opinião. Analisando um pouco mais a Internet, encontrei o  "Super Nintendo Buyer's Guide" publicado no Canadá, cujo único objetivo era aparentemente vender jogos da Nintendo. Mesmo eles tinham poucas coisas elogiosas a dizer sobre Top Gear. “Top Gear não é um dos jogos mais emocionantes que se pode jogar”, eles escreveram. "Não há nada excitante ou estimulante o suficiente para instilar um senso de admiração aqui".

Até este dia, não é muito claro porque Top Gear é popular apenas no Brasil, mesmo o criador do jogo Richie Brannan já disse em entrevistas não fazer ideia do porque isso aconteceu. Mas, independente de qual seja o motivo, fico verdadeiramente feliz que tenha ocorrido. Seria terrivelmente injusto que um jogão da porra como Top Gear jamais tivesse o reconhecimento que merece e pelo menos em UM país do mundo ele é tratado da forma que merece. 

Que por acaso acontece de ser o Brasil, vai entender essas coisas da vida...