Existe uma expressão em inglês que eu gosto bastante, que é "take it for granted". O que seria mais ou menos traduzido como "presumir como garantido" e é sobre não dar valor a algo importante apenas porque isso é comum ou sempre presente. Jogando este jogo do Papa-Léguas me ocorreu que eu estava cometendo isso com a Sega.
Quando eu joguei o primeiro Sonic, eu disse que era um jogo de plataforma inovador para a época em alguns de seus conceitos, mas limitado em sua execução. De forma resumida, a Sega não sabia exatamente como fazer um jogo de plataforma ultra rapido (que por definição exige que o jogador tenha tempo suficiente para reagir ao cenário) e acabava por tropicar em seu própria ambição. Eu não acho que isso esteja errado nem quero rever o que eu disse, o meu ponto aqui é que eu não tinha considerado o quão bem a Sega conseguiu executar algo que é realmente muito dificil de por em prática.
Nestes anos eu joguei varios jogos que tentaram ser o "novo Sonic" e falharam abissalmente ao ponto de serem bostas injogaveis. O simples fato de que Sonic não é uma bosta injogavel já depõe bastante a favor da Sega.
Veja esse jogo do Papa-Léguas da Sunsoft, por exemplo. Tematicamente, a Sunsoft (nem ninguém, realmente) seria capaz de fazer um jogo mais fiel ao espirito dos desenhos animados do beep-beep. No começo de cada mundo, por exemplo, tem aquela clássica cena em que a camera para a corrida para mostrar nomes engraçados em latim.
Você controla o Road Runner e em cada fase tem que chegar até o final da fase, enquanto o Willy Coiote fica passando pelo cenário tentando te causar dano. O interessante é que em cada fase ele tenta uma geringonça diferente para te pegar, e todas as traquitanas que ele usa são tiradas dos episódios do cartoon e no final de cada fase o plano do Coiote dá errado de uma maneira diferente. Considerando que são 15 fases no jogo, e considerando que os cartuchos tem uma quantidade de espaço para informação limitadissimo onde sprites que forem utilizados uma única vez no jogo são uma dor no coração do programador, é realmente impressionante o quanto de uma variedade esse jogo tem.
E, apenas como cereja do bolo, o jogo ainda reserva dois botões (L e R) apenas e exclusivamente para fazer a linguinha iconica e o beep-beep do Papa-Léguas. Então, novamente, eu realmente acredito que tematicamente não é possível fazer um jogo mais fiel ao espírito do cartoon do que esse. O que podia ser feito, a Sunsoft fez. De verdade.
O problema é que toda essa maravilha temática não se reflete em boas mecanicas e enquanto esse jogo é lindo de se olhar como fã de cartoons dos Looney Tunes, como gamer (ou gamemaníaco, como diz a Ação Games) ele deixa muito a dejesar.
Conceitualmente, RRDVR tenta as mesmas coisas que Sonic: ser um jogo de plataforma onde seu bonequinho se move a um bazilhão de quilometros por hora. Combina com o personagem, isso tem que ser dito. O problema é que como tantos outros jogos que tentaram ser o "novo Sonic", a Sunsoft não teve a inventividade da Sega para fazer esse jogo funcionar como deveria.
Um dos grandes problemas desses jogos de plataforma onde seu personagem é rápido demais é que frequentemente você não enxerga onde está pulando ou para onde está indo - o que é chamado no mundo dos games de "salto de fé". Em Sonic, a Sega resolveu isso de duas maneiras: a parte rápida da fase não contem muitos buracos ou instakills de qualquer tipo, e o Sonic tem praticamente energia infinita (já que quando você toma dano basta recuperar a argola que perdeu, sendo que você só morre se tomar dano zerado de argolas).
Esse é o principal diferencial de Sonic para jogos como Bubsy, Global Warriors ou Papa-Léguas. Controlar seu personagem a uma caralhão de quilometros por hora sem conseguir saber para onde estar indo e tendo que se preocupar com buracos, one-hit-kills e tomar dano por esbarrar em inimigos apenas não funciona. Não dá, uma coisa é inversalmente oposta a outra: ou você se move como se estivesse correndo do Mike Haggar em uma praia de nudismo OU você navega sabendo para onde está indo e tendo tempo para reagir de acordo. Os dois ao mesmo tempo fisicamente não tem como.
Kudos para a Sega por resolver esse problema, isso tem que ser dito.
O outro problema intrinseco a esse tipo de jogo é que é muito dificil acertar o momentum da movimentação do seu persongem. O Mario, por exemplo, tem uma física de inércia perfeita e você consegue ter uma boa noção de como controlar o seu personagem, você sabe como esperar que ele reaja e de modo geral o personagem faz o que você quer que ele faça. Mas Mario não é um jogo muito rápido (embora o design das fases seja feito para parecer que as coisas são mais dinamicas do que realmente são, pontos para a Nintendo por isso), então isso é relativamente tranquilo de se fazer se comparado a um jogo onde seu personagem é muito rápido.
Quando seu personagem é mais rápido do que a Betina fazendo milhões, é muito mais dificil acertar a inércia do seu personagem. O quanto ele desliza? O quanto ele precisa correr para "pegar impulso" e fazer os saltos dificeis? Se você colocar controle demais e o personagem travar imediatamente, isso corta complemente a sensação de velocidade e a capacidade de projeção do jogador (já que nosso cerebro se desenvolveu para projetar coisas em um mundo onde inércia existe). Se você colocar de menos, passa a sensação que o jogo inteiro é uma grande fase do gelo.
Some a isso o fato que fazer level design para um jogo desse tipo é imensamente mais dificil do que para um jogo de plataforma comum. Com efeito, um dos maiores problemas de Sonic 1 é que o jogo claramente foi concebido como um jogo de plataforma comum e apenas em algumas fases é que você tem o espaço e o level design correto para gottagofast. Todo mundo lembra de Green Hill Zone que foi projetada para ser primeira e melhor fase (porque a primeira é a mais jogada), claro, mas pouca gente parece lembrar que quase metade do jogo são fases verticais. Pois é.
Road Runner tem esse mesmo problema e nenhuma Green Hill Zone. O personagem foi feito para se mover um paquidermilhão de quilometros por hora, mas o level design não. Na verdade mais da metade das fases são sobre conseguir subir e não sobre seguir em frente, e acho que você consegue enxergar o problema nisso.
Em resumo, Road Runner's Death Valley Rally é um jogo com boas intenções sobre como adaptar um personagem tão distintamente iconico dos cartoons, e se tem algum jogo que clama por ser um clone de Sonic seria um jogo do Papa-Léguas. Infelizmente falar é mais fácil do que fazer e as mecanicas para isso apenas não estão lá.
Mais uma vez lembrando que isso porque fazer um jogo desse tipo funcionar é muito dificil, então aplausos para a Sega por fazer isso funcionar. Sim, acreditem ou não eu estou elogiando a Sega. Aproveitem o momento, porque eu não sei dizer quando será a próxima...
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