sábado, 7 de janeiro de 2023

[#1028][Set/96] SAKURA TAISEN (ou "Sakura Wars" no ocidente)


Em 1995, um evento daqueles que acontece apenas uma vez a cada geração aconteceu no Japão. Estou falando, é claro, da Tese do Anjo Cruel.


Eu precisaria de bem mais de um artigo para explicar todas as consequencias do impacto cultural de Neon Genesis Evangelion na cultura japonesa e por tabela no mundo, e é claro que Evangelion influenciou muito os videogames também - como eu já citei nos casos de SUPER MARIO RPG: Legend of the Seven Stars e FINAL FANTASY 7.

O episódio de hoje envolve ela, a mais bela e querida desse blog, ninguém menos que dona Sega Segolicia da Silva, que vendo os números avassaladores do sucesso de Evangelion pensou que deveria fazer o seu também.

VOCÊ QUER DIZER UMA OBRA SOBRE DEPRESSÃO E AS CONSQUENCIAS REALISTAS DE COLOCAR CRIANÇAS DE 14 ANOS PARA ENFRENTAR ABOMINAÇÕES LOVECRAFTIANAS EM UMA HISTÓRIA BASEADA NAS CABALAS PROTO-JUDAICAS?

Hã, não... eu só quis dizer uma história com robos gigantes e waifus. Não é sobre isso que Evangelion é?

... BEM, NÃO ESTÁ TOTALMENTE ERRADO...


Seja como for, o sucesso de Evangelion fez a Sega dar luz verdade a quem quer que tivesse uma ideia para fazer o seu anime de mechas para ela. E felizmente tinha alguns caras que já estavam trabalhando em algo do tipo desde 1994. O projeto já havia contratado o mangaka Kousuke Fujishima (de Oh My Godess) e o animador que havia trabalhado com ele na adaptação de anime do seu manga, Hidenori Matsubara, além do compositor Kouhei Tanaka (de Gunbuster). Era um timinho de responsa, devo dizer.

O projeto Sakura Taisen é, essencialmente, um combo de tudo que os meninos japoneses gostavam embalado na forma de visual novel: é sobre robos gigantes, waifus, super sentai e um RPG Tático ao mesmo tempo.


Eu sou um homem simples de gostos simples, eu vejo uma abertura que tem muito cara de abertura brega de tokusatsu falando sobre amor e amizade, meu olho enche d'água

Sakura Taisen se passa em uma versão romantizada de história alternativa da Tóquio dos anos 20 (e, nas continuações, de outras cidades do mundo). Nesse universo, após a Primeira Guerra Mundial, o Japão desfrutou de crescente importância e reconhecimento nos assuntos internacionais (como o que aconteceu com os Estados Unidos na nossa timeline real), e por tabela seus cidadãos urbanos tornaram-se mais prósperos, cultos, modernos, socialmente conscientes e cosmopolitas. 

A era Taishou (que foi o período entre a primeira e segunda guerra) é frequentemente vista pelos japoneses como a era antes das coisas começarem a dar errado para o Japão (vulgo segunda guerra mundial), e não por acaso existe toda uma literatura Taishou que explora essa possibilidade de que o Japão poderia ter sido o que os Estados Unidos foram no século XX


Tudo em Sakura Taisen é infundido com esse espirito da era Taishou. O texto na tela é escrito da direita para a esquerda, como era o costume da época. Os manuais do jogo são impressos com a lombada à direita, já que os livros com a lombada esquerda não entraram em voga até décadas posteriores. Todos os números, mesmo quando normalmente seriam escritos com os algarismos arábicos mais modernos, são escritos em kanji - novamente, como era o costume na era Taishou. Essa estética geral permeia o design, a tipografia, a música e até mesmo os pequenos elementos de interface do usuário na tela.

A era Taishou também é conhecida como o começo da ocidentalização do Japão (só lembrar da cena de Tóquio em Demon Slayer), e nada diz "ocidentalização do Japão" como um teatro de estilo ocidental bem no meio de Tóquio. A Teikoku Kagekidan é a trupe de teatro musical que serve como disfarce para nossas heroínas, enquanto elas secretamente são uma força de elite do exército japonês.


O que, se permitem dizer, é uma ideia BEM idiota. Não porque eu tenha algo contra um grupo musical ser uma força-tarefa secreta (com certeza já vi muito pior em tokusatsus), eu até acho maneira essa ideia, e sim pq saporra de secreta não tem nada. Quer dizer, saca só o aeromovel das minas quando elas partem em uma missão:


Quer dizer, sério gente, a "base secreta" de vocês acabou de levantar pelo menos uns 6 quarteirões aqui, eu acho que ela não é tão secreta assim... mas enfim...

Onde eu estava mesmo? Ah sim, a Teikoku Kagekidan é fortemente inspirada no Takarazuka Revue, uma trupe de teatro da vida real que se apresentava em Kansai no século passado. Ambas apresentam um teatro musical espetacular no estilo da Broadway, ambas tinham elencos exclusivamente femininos (com algumas mulheres se especializando em papéis masculinos) e, além disso, ambas também são divididos em sub-trupes, incluindo uma Hanagumi (“trupe de flores”) - que é a divisão a que pertencem as personagens principais. 

Japão CALMA


Esse tema floral permeia a série, com todas as personagens principais recebendo nomes de flores, imagens florais aparecendo na maioria das escolhas de design e até mesmo o título da série se traduz como "A Guerra das Cerejeiras".

Porém esse cenário não é apenas uma fantasia da era Taishou, é uma versão steampunk disso! Pq todos amamos steampunk, amirite? Então nesse 1920 temos todo tipo de veículos e tecnologias movidas a vapor, o que inclui é claro também mechas movidos a vapor. Vou te dizer que eu não sou tão fã assim dos designs dos mechas nessa série, eu acho eles meio feios, mas hey, ainda sim, mechas movidos a vapor!


Os mechas não são inteiramente movidos a vapor, entretanto, usando também energia espiritual. Pessoas que possuem energia espiritual para operar um koubun (que é o nome dos mechas aqui) são raras, e a imensa maioria desses casos são mulheres - é absurdamente muito mais raro um homem nascer com energia espiritual.

Então adivinha só, hoje é o seu dia de sorte amigão pq é um raros casos e seu premio será viver em um anime de harém com cocotinhas estereotipadas que no fim vão todas se apaixonar por você porque isso é basicamente um anime dos anos 90, afinal! 


Essa comparação não é por acaso, já que os jogos de Sakura Taisen são construídos mesmo como uma série de anime, cada um dividido em cerca de 10 episódios. Um episódio geralmente começa com alguma situação do dia-a-dia no teatro, apresentada em um estilo de cutscene que deve ser bastante familiar para qualquer um que tenha jogado um JRPG ou visual novel. As cenas diurnas são geralmente uma forma de conhecer o elenco do teatro como um grupo, a maneira como eles se comportam profissionalmente e como amigos. Depois disso vem uma vinheta de comercial (como em um anime mesmo, onde você também salvar o jogo)

Na segunda parte do capítulo, o jogador tem tempo para passear e conversar com a personagem específica daquele capítulo. Porque como em qualquer anime de harem que se prese, tem o episódio dedicado a Mariazinha, o episódio da Joaninha, etc.



Após a segunda metade do episódio onde vc tem um momento mais pessoal com a menina do dia, é garantido que algum tipo de crise ocorrerá e o esquadrão recebe ordem de entrar em ação. Você ganha outra vinheta de comercial, onde salvar seu jogo e verificar o yaruki (“motivação”) das membros do seu esquadrão. Essa estatística é baseada em quão satisfatoriamente o jogador tem escolhido as opções nas interações com as membros do esquadrão. 

Após a batalha (que funciona como um RPG Tático), há uma cena de vitória final, incluindo a pose de vitória absolutamente essencial em qualquer tokusatsu que se prese. 

Shouri no po-zu…Kime!”, (“Pose de vitória… Vai”)

Depois da pose de vitória vem o preview do próximo episódio. Sim, cada episódio tem um pequeno clipe de cenas do próximo episódio, com uma narração dizendo para você sintonizar no próximo episódio. A narração é fornecida por um dos personagens e termina com a frase de efeito “Taishouzakura ni roman no arashi!” (“Flores de cerejeira Taishou e uma tempestade de romance!”)

Esse padrão se repete, capítulo após capítulo, de modo que não é nenhum pouco exagero dizer que Sakura Taisen é um anime de harém na forma de visual novel. Só que a visual novel aqui funciona um pouco diferente do habitual dado que Sakura Taisen usa uma mecanica própria, o LIPS (Live and Interctive Picture System).


Você normalmente tem tres opções, uma dá um ponto de relacionamento com a personagem, outra faz você perder e uma terceira não acontece nada - isso tudo enquanto o timer limita o tempo que você tem para pensar na resposta. Obviamente, você nunca sabe qual é a resposta "certa" então você apenas responde de acordo com o que achar correto e no fim do 7o capitulo os pontos de relacionamento são somados (você nunca vê a soma desses pontos, o jogo faz a contagem secretamente).

Aquela personagem com quem vc tiver mais pontos de relacionamento se torna "especial" (não chega a ser um namoro pq, lembre-se, isso é um anime dos anos 90 e não tem essas coisas) e você ganha um ataque especial que pode fazer com ela no campo de batalha, além de cenas em anime exclusiva em dados momentos - além do final particular daquela garota, claro.


Ao longo da série, Sakura Taisen treina magistralmente o jogador para ter uma reação pavloviana a esses reforços positivos e negativos – todo jingle bom após uma resposta positiva com a garota é uma vitória, todo jingle ruim é uma tragédia. Um jingle ruim com sua heroína favorita? Suicidio é um dever. E claro, ocasionalmente o jogo te obriga a escolher entre duas opções que irá prejudicar seu relacionamento com uma personagem para melhorar sua posição com outra. Classsic visual novel stuff.

Se analisado pelo prisma de hoje, Sakura Taisen é um anime bem bobinho e casto. Mas então, todos animes de romance eram bobinhos e castos nos anos 90, definitivamente não é a libertinagem com a qual nos acostumamos hoje em dia. 

Anime has changed...

Porém se você considerar a época, Sakura Taisen entrega exatamente o que promete: um anime de romance água com açucar numa época em que água com açucar era tudo que existia... embora animes "jogaveis" no seu console, não. Isso quer dizer que as personagens são extremamente estereotipadas nos cliches de anime ao ponto que você consegue prever sobre o que o episódio do dia vai ser... mas então, para 1996 era okay. Quer dizer, era o que nós tinhamos, afinal, então não é justo cobrar do produto algo que não era comum naquela época.

Com efeito, o que Sakura Taisen entregava (uma visual novel com estrutura de anime) era tão suficiente para a época que se tornou um dos maiores sucessos da Sega no Japão até os dias de hoje. Mesmo na sua estreia, Sakura Taisen esgotou poucas horas após seu lançamento. A partir daí, gerou pilhas e mais pilhas de sequências e jogos paralelos, séries de anime, mangás, álbuns e livros - e como se as montanhas de mídia que essa série gerou não fossem suficientes, ainda houveram musicais de Sakura Taisen acontecendo julho de 1997 a agosto de 2006, e até mesmo um maid café dedicado a Sakura Taisen em Ikebukuro funcionou de junho de 1998 a março de 2008. 

Tenho que dizer que nem todos os cosplays das dubladoras ficaram perfeitos para o musical, mas... FODA-SE! Corra rápido como a luz, Trupe de Ataque Imperial, Divisão Floral!


Porra, se essa franquia não atendia o que os fãs da época estavam querendo, cetaloko, não sei quem atenderia.

Mas hoje, o que eu achei do jogo? Bem, eu vou te dizer que gostei. Ele é absurdamente simples? É, mas não tem nada de errado com isso realmente. Como disse certa vez um grande homem:


Por exemplo, o sistema de combate de RPG Tático é muito básico para os padrões de RPG de estratégia - mesmo para a época. Você tem duas ações por turno, então você pode andar e atacar, andar e defender, ou defender e atacar. Além de um ataque especial. Nada fora da curva, e o jogo não tem equipamentos, experiencia ou niveis. Então é basicão do basicão.

Só que de alguma forma, o combate aqui consegue se manter interessante com campos de batalhas cheios de obstaculos e as integrações dentro da história - embora mecanicamente não tenha diferença, narrativamente fica legal usar a personagem tema do episódio na luta. 


E sério, eu não senti falta da opção de trocar de equipamento ou subir de nível. Isso é algo que eu tinha sérias dúvidas antes de começar o jogo, mas Sakura Taisen se concentra na narrativa e simplesmente funcionm. Por mais brega (e até previsivel) que fosse, eu me manti prestando atenção em cada batalha e plot twist anos 90 da história. O jogo é muito mais envolvente do que vc poderia esperar ser.

Eu comcei esse jogo bastante cínico, esperando me entediar com o enredo datado e as personagens estereotipos de anime, mas não demorou muito para eu me sentir confortável. O sistema de batalha a princípio parecia terrivelmente limitado, mas esse julgamento também foi suspenso bem cedo. Sakura Taisen é um dos jogos mais charmosos da era 32 bits, e o que falta em opções e liberdade (mesmo para uma visual novel, as escolhas de dialogo não mudam realmente a história, só dão ou tiram pontos com a garota), esse jogo sobra em coração. 

Taí um jogo que eu pagaria um bom dinheiro para jogar...

É uma pena que nenhuma publisher tenha escolhido esse jogo para lançar no ocidente... embora eu consiga entender a razão, eu naõ colocaria o meu dinheiro para lançar uma visual novel no ocidente nos anos 90, não tinha publico pra isso ainda. O primeiro jogo de Sakura Taisen foi lançado no ocidente apenas em 2005, no quinto jogo da série - embora o anime do ano 2000 teve melhor sorte e até passou no Cartoon Network aqui.

De qualquer forma, apesar de tudo, eu ainda sim preciso lembrar que a Working Designs definitivamente testou a sorte com jogos muito piores que esse... 

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 114 (Abril de 1997)