domingo, 22 de janeiro de 2023

[#1036][Nov/96] PHANTASMAGORIA: A Puzzle of Flesh


Quando se fala dos famigerados jogos com cenas filmadas, os famigerados FMV, algumas palavras vem a mente... sendo que "qualidade" não é uma delas. Usualmente esses jogos são filmados com o orçamento de um Toblerone de morango e dois pistaches, e mesmo quando tem uma graninha sobrando eles são assolados por um mal gosto na produção que deixaria um filme da Troma ruborizado.

Por exemplo, SUPREME WARRIOR tem locações realmente muito bonitas na China, mas as atuações variam entre pessoas aleatórias que eles ofereceram um pastel de palmito para recitar algumas falas na frente da camera a pessoas que eles ofereceram um pastel de queijo. THE DEADALUS ENCOUNTER, por outro lado, tem uma atriz de verdade no elenco (Tia Carrere), mas meio que é só ela e o resto da produção foi gravada no quarto dos fundos de um youtuber.

Como dá pra ver, jogos em FMV não é algo que dá pra colocar a mão e dizer "uau, isso é BOM"... e com certeza o primeiro Roberta Williams' PHANTASMAGORIA não é exceção a essa regra, oh bom mediano e mau deus, como esse jogo não é...

Quem não lembra da infame cena em que nossa heroína tenta seduzir o seu marido... com uma atuação de alguém que não faz a mais remota ideia de como seres humanos se comportam perto de outro da sua espécie? Então realmente me desculpem se eu não prendi o folego esperando Phantasmagoria 2, no máximo seria outro daqueles FMV candidatos ao premio "tão ruim que é bom" e olhe lá.

Porém, e é aqui que as coisas ficam interessantes, sabe quem mais se sentiu do mesmo jeito? Lorelei Shannon. Ela era escritora da Sierra naquela época, e enquanto escrevia dialogos para o bilhonésimo oitavo KING'S QUEST, ela pensou que totalmente conseguiria escrever algo melhor do que aquilo.

O que, convenhamos, não é uma barra tão alta quando acontece ISSO com a protagonista...

... e ainda sim ela continua deitando em toda cama que encontra pq, hey, o que são umas mãos do capeta transdimensionais te apalpando, né? É, escrever algo melhor que isso não era realmente impossível.

E com efeito, toda produção do jogo foi tomada por um espírito de "hey, E SE, vejam bem, E SE a gente não fizesse a parte onde essas produções são uma tosquice risivel? Tentar fazer a coisa ser boa, eu quero dizer, genuinamente boa, sabe?"

E essa é a coisa a respeito desse Phantasmagoria 2: ele é realmente okay. Não "é okay para um videogame, então vou dar uma colher de chá", não é okay tipo okay mesmo. As atuações são decentes, os cenários são decentes, a iluminação claramente foi feita por profissionais dessa vez, a história é decente. Se fosse um filme, totalmente passaria no Super Cine (para todas as  pessoas que ainda lembram disso) sem causar vergonha.

Veja, eu não estou dizendo que é uma puta mega produção que deveria ter ganho 147 Oscars nem nada, apenas que as cenas filmadas com atores de verdade (não os melhores do mundo, mas pelo menos profissionais de verdade), os cenários são bem feitos (apesar das locações serem poucas, as poucas que tem são redondinhas) e a história é interessante. Hã, olha só...


Nossa história aqui acompanha as aventuras de Curtis Craig, um homem que ama três coisas na vida: sua rata de estimação (chamada de "Blob"), sua namorada Jocilyn e camisetas de bolso cinza porque ele nunca troca sua T-Shirt mesmo que o jogo se passe ao longo de vários dias. Vivendo o sonho americano, eu te digo! 

Ah sim, suponho que eu também deva dizer que nosso campeão suburbano que trabalha em um daqueles clássicos cubiculos de empresa americana... também saiu de um hospital psiquiátrico há um ano, embora ele não tenha realmente certeza se saiu mesmo. E então as pessoas com quem ele tem desavenças no dia-a-dia começam a aparecer brutalmente assassinadas e Curtis não pode afirmar com certeza que não foi ele que entrou em um surto psicótico do qual ele não lembra e mandou todo mundo pra Roraima. Você sabe, a vida comum do homem trabalhador.

Agora o interessante aqui é que essa é realmente uma história bem contada, e que começa com dicas muito sutis que Curtis pode estar perdendo a sanidade... ou apenas acha que está. Isso porque boa parte dos primeiros capítulos são dedicados a mostrar o cotidiano de Curtis para que quando algo estranho acontece, isso ter algum impacto.


Por exemplo, Curtis tem uma namorada adoravel, fofuxa e apaixonada, e em seu relacionamento normal com uma garota normal, Curtis parece um pouco... desconfortável. Então quando sua colega de trabalho começa a dar em cima dele e propor umas paradas mais apimentadas (e por isso eu falo coisas tipo um clube de BDSM mesmo), Curtis inicialmente nega pq é o que se espera de um cidadão americano de bem e respeitador dos valores familiares, mas... não tem como reparar bem discretamente que ele parece muito mais confortável e confiante nesses momentos, como se ele fosse uma pessoa "esquisita" que lutasse muito para parecer "normal" na sociedade, mas aqui e ali escapa uma brecha de quem ele realmente é.

Ou quando seu colega de escritório é brutalmente assassinado no local de trabalho e todos (incluindo ele) ficaram muito abalados por algo tão horrível acontecer no local de trabalho deles com alguem que eles conheciam, após muitos outros tópicos e um bom tempo de conversa ele finalmente revela para sua psicologa que ele na verdade não sentiu nada a respeito disso. Ele sabe que DEVERIA sentir algo (horror, medo, pena que fosse), mas ele não sentiu nada e isso não é "normal".

E eu tenho que te lembrar que, especialmente nos anos 90, ser "normal" é o ponto fundamental de toda cultura americana - só assistir qualquer coisa sobre high school ou Friends, são séries dedicadas inteiramente a estabelecer o que é "normal" e como é "muito louco" quando alguém age fora dos padrões da sociedade.

Claro, novamente, Phantasmagoria 2 não é exatamente Catherine, nem é um tratado muito profundo e complexo da natureza humana ou algo do tipo, mas é um jogo que tem seus temas bem definidos e os executa com competencia. E é justamente por isso que suas cenas de gore e ueum-tchucutum-paaaaum são tão boas, porque elas estão dentro do tema e tem uma função narrativa, não estão ali apenas because gore e ueum-tchucutum-paaaaum.

Bem, claro, esse é um jogo de 1996, sim, então as pessoas paravam sua analise em apenas "oh! Tem gore e ueum-tchucutum-paaaaum, é tudo que vamos falar sobre esse jogo!", mas eu apenas queria apontar que não é gratuíto, existe um proposito narrativo em ir revelando as camadas de quem Curtis Craig é, literal e metaforicamente.

Infelizmente, entretanto, eu sou obrigado a apontar que Phantasmagoria 2 não é um filme e sim um point'n click da Sierra, e isso não vem sem um preço. Eu já comentei isso antes, mas eu realmente não gosto do estilo da Sierra de fazer a venda casada do seu point'n click com um hintbook (vendido pela própria Sierra) já que seus "puzzles" são intransponíveis sem ter um walkthrough. Não é nem que é dificil, é um non-sequitur que foi feito na cara dura pra vender os livrinhos de detonado da empresa. 


Eu estou falando de coisas tipo o jogo só progredir depois que você esgotar todas as possibilidades do cenário, o que inclui adivinhar o password do computador de uma pessoa baseado apenas no poder do walkthrough. Porra Sierra, me ajuda a te ajudar!

Mas bem, eu teno que dizer que no fim do dia eu sou tendencioso com os videogames que tentam construir um ponto narrativo e na imersão do jogador na atmosfera do que pelos elementos reais de "jogo", de modo que eu posso perdoar A Puzzle Of Flesh por algumas de suas falhas mais flagrantes 

Especialmente pq, na metade do jogo, fica claro que haverá uma grande reviravolta sci-fi em tudo isso - envolvendo nada menos que um universo alternativo, um sistema de troca ilegal com alienígenas misteriosos, uma substituição de identidade e um final bizarro e confuso em que Freud, Stephen King eEd Wood foram todos convidados para a equipe de desenvolvimento. Eu posso respeitar isso. 


Na verdade eu realmente acredito que se A Puzzle Of Flesh fosse um livro de verdade (e é estranho que Shannon, que viria a se tornar uma escritora profissional e frequentemente publicada, nunca tivesse tentado uma novelização), teria se tornado uma mistura de gêneros, uma obra-prima do horror sci-fi. O fato de ter que ser um jogo, e um jogo da Sierra ainda por cima com tudo que isso implica, diminui o impacto da coisa.

Antes de encerrar, eu ainda preciso ressaltar o quanto o jogo é bem atuado e escrito acima do que você poderia esperar para um jogo de 1996. Naturalmente, Shannon não é nenhuma Tarantino quando se trata de revelar os aspectos transcendentais do mundano, mas isso aqui ainda é um tipo de diálogo que você nunca, jamais testemunhará em qualquer outro jogo de aventura da Sierra On-Line ou mesmo dessa época:

CurtisHey, bud. How was your second date with the mysterious Jay, huh?
TrevorA dud. Big time. I mean, once I got past the sexy eyes, the gorgeous cheekbones, I saw the squid beneath the skin...
CurtisOh, what a drag.
TrevorYou’re telling me! He spent half the evening picking apart Bela Lugosi’s acting, and the other half staring at his own bad self in the bathroom mirror!
CurtisHe doesn’t like Bela?
TrevorMmm-hmm.
CurtisWell piss on him, then!

Esse é um ótimo diálogo extraordinário que mudou a literatura? Nem um pouco. Mas esse é o tipo de diálogo que você esperaria ver em um jogo de 1996? Nem remotamente. É o tipo que duas pessoas normais teriam? Pode apostar. Especialmente se ambos forem fãs de Bela Lugosi ... e, talvez, um pouco de Pulp Fiction. 

Mesmo hoje, em 2023, não é tão comum asso, (pra não dizer que eu não consigo lembrar de nenhum exemplo) uma obra retratar um cara conversando com seu amigo gay como dois seres humanos normais conversariam, imagina então em 1996!

Tá, ESSA cena foi padrão FMV como esperavamos

Apesar de toda a coisa de sci-fi pulp que Shannon joga para nós, A Puzzle Of Flesh é surpreendentemente realista em seus momentos de menor escala: o cotidiano de um escritório, os detalhes do procedimento policial e até mesmo um retrato não estereotipado da comunidade BDSM (na qual Shannon estava aparentemente bastante envolvida). 

Eu realmente acho que é o caso das ideias certas na mídia errada, se tirassemos as necessidades de ser um point'n click da Sierra (mesmo que um mais gentil nisso, vc não perde seu jogo de 5 horas pq não adivinhou que tinha que clicar no pixel 57A na segunda tela do jogo) e dessemos espaço para as qualidades da narrativa respirassem teria sido algo bem mais marcante.    

Phantasmagoria: A Puzzle Of Flesh. É um "jogo" bastante pobre, mas é um "romance interativo" bastante aplicado, mesmo que pareça muito que ele tenta morder muito mais do que pode mastigar de uma só vez. Ainda sim, nenhum jogo de 1996 estava tentando morder esse pedaço.

Apesar de todos os seus defeitos, não tem como negar que esse jogo foi um dos esforços mais fortes, se não o mais forte, da Sierra On-Line, para sair da sua zona de conforto e encontrar outro nichco dado que os point'n clicks caminhavam para o definhamento a essa altura. 

Pode-se reclamar que eles não foram longe o suficiente (especialmente quando comparados a títulos verdadeiramente desconfortáveis ​​como "I Have No Mouth and I Must Scream"), mas o fato é que o jogo tentou levar o gênero de aventura para o próximo nível de seriedade e, apesar de todas as suas falhas, é mais do que suficiente para eu perdoar o jogo da maioria de seus pecados.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 115 (Maio de 1997)