Esse blog não é estranho a contar histórias de tragédias pessoais. Veja, ninguém acorda de manhã e decide "sabe o que mais? Eu vou fazer um jogo ruim, não, melhor ainda, eu vou fazer um jogo ruim pra caceta!", não é assim que funciona. Normalmente quando um jogo é ruim, ou pelo menos não tão bom quanto foi sonhado para ser, é pq várias coisas que podia dar errado de facto deram errado.
Um exemplo bem blatantes do que eu to falando que me veem a mente de imediato são a desgraça que é SPAWN: The Eternal, e outro que não é exatamente um jogo catastrófico mas também não é nem 10% do que deveria ter sido é AZEL: PANZER DRAGOON RPG.
Isso sendo dito, hoje nessa sexta-feira nublada e fria em que as pessoas fazem planos divertidos de ter amigos e aprontar todas enquanto eu contemplo minhas escolhas entre o vazio da solidão e um estado de embriagues, eu quero fazer o exato o disso. Hoje, eu vou contar uma história de sucesso em que sonhos se realizam e tudo que podia acontecer aconteceu da melhor forma possível. Essa é a história de Tenchu: Assassinos Furtivos.
Embora a capa japonesa seja obviamente mais bonita, eu tenho que dizer que acho a frase "live by honor, kill by stealth" muito maneira
Nossa história começa com um japonês de 26 anos de idade chamado Takuma Endo. Takuma, como muitos de vocês meninos e meninas, tinha um sonho e o sonho particular dele era fazer videogames. Entretanto, a dura realidade é que "fazer videogames" não é algo que simplesmente paga os boletos do mês (mesmo no Japão) e mais frequentemente sim do que não, esse sonho tem que ser arquivado - frequentemente, para sempre.
Por essa razão, como eu disse, Endo já estava nos seus 26 anos de idade e tendo terminado a faculdade trabalhava num emprego aleatório de TI. Ele não era um programador profissional nem nada, apenas gostava de brincar com isso como hobby e - como eu disse também - tinha o sonho de um dia ser um grande designer de videogames, algo que ele amava profundamente.
Mas sonhos são sonhos, né? Bem, porém eu disse que a história de hoje seria uma daquelas edificantes, e é claro que o sonho de Endo não seria um sonho por muito tempo. Isso pq no final de 1994 as coisas mudaram radicalmente no cenário dos videojogos: uma nova empresa japonesa entrou com os dois pés nesse campinho, a Sony e o seu Playstation estavam começando literalmente do zero nessa industria.
E assim sendo, o Playstation precisava de jogos urgentemente, afinal eles ainda não tinham franquias consagradas nas quais se apoiar. A Sony precisava construir seu império do nada, e nisso Endo viu uma oportunidade. Ora, a Sony precisava de jogos, ele queria fazer jogos, perfeito né?
Percebendo que seria a oportunidade de uma vida inteira, e que provavelmente não teria outra chance dessas para realizar seu sonho, Takuma Endo tomou banho, colocou seu melhor terno e foi bater na porta da Sony para se oferecer como desenvolvedor de jogos. E por isso eu quero dizer literalmente: ele caminhou até a sede da Sony no Japão e pediu pra falar com o RH. Afinal, a única certeza que temos na vida é que se você não fizer nada, nada acontece.
ESSA É UMA FORMA BEM INUSITADA DE ALGUÉM ENTRAR NA INDÚSTRIA, TENHO QUE DIZER
E é. Exceto que não foi. O pessoal da Sony explicou a ele que ficava feliz pelo seu interesse, mas apenas não é assim que as coisas funcionavam. Você não vira desenvolvedor de jogos mandando curriculo para a Sony (nem para a Sega ou a Nintendo na época, e nem para a Microsoft hoje), até pq começar eles só tratavam diretamente com empresas. Então o que ele tinha que fazer, antes de qualquer coisa, era deixar de ser uma pessoa física e abrir uma empresa, é assim que o mundo real funcionava.
Muitas pessoas teriam parado aí, já que Endo meteu a cara e a coragem e recebeu um "não é assim que funciona, bro". Porém nenhuma história que valha a pena ser contada para no primeiro desafio, e então foi exatamente o que ele fez.
Endo pegou suas economias e um amigo, e abriu sua própria empresa para desenvolver jogos, a Acquire Corp. Agora sim, com um CNPJ debaixo do braço, ele foi bater de novo na porta da Sony. Pq agora sim, né? Quer dizer, o que mais faltava pra darem orçamento pra ele fazer um jogo agora que ele tinha uma empresa?
Bem, eu sei que vai parecer uma ideia louca, mas olha só... não é assim que as coisas funcionam também. Okay, você abriu uma empresa, ótimo, mas a Sony (nem ninguém, na verdade) sai colocando dinheiro no primeiro que bate a sua porta dizendo que quer fazer um jogo. Não é assim que o mundo funciona, especialmente uma empresa recem formada que nunca tinha feito um jogo na vida.
Se ele já tivesse um jogo pronto (o que custa dezenas, talvez até centenas milhares de dolares para fazer) e quisesse publicar tudo bem, mas para a Sony financiar o seu jogo como publisher? Err, não ia rolar...
ACHEI QUE ESSA ERA UMA HISTÓRIA POSITIVA DE COMO ACREDITAR NOS SEUS SONHOS COMPENSA, SABE?
E é. O pessoal da Sony viu que Endo estava claramente determinado a seguir aquele caminho, e enquanto eles não podiam dar dinheiro pra ele apenas assim, havia algo que ele podia fazer: dali a alguns meses, em 1995, a Sony abriria um concurso para desenvolvedores terem o seu jogo publicado pela Sony Music do Japão. Eu não achei exatamente pq a Sony Music ia publicar um jogo, mas só posso imaginar que é alguma coisa relacionada a questão fiscal. Seja como for, teria esse concurso e se ele submetesse o seu jogo e vencesse, seu sonho seria realidade.
E foi o que ele fez. Endo e um staff de meia duzia de malucos criaram um joguinho e esse joguinho venceu o concurso de desenvolvimento da Sony! Yay!
E ENTÃO ESSA É A HISTÓRIA DE COMO TENCHU VEIO A EXISTIR?
Vê, a primeira versão de Tenchu era um hack'n slash em que um ninja ambientado no cenário moderno saia detonando tudo e aprontando altas confusões. Você sabe, meio que como NIGHTMARE CREATURES, só que com ninjas modernos e tal pq Endo adorava filmes de ninjas. E esse jogo, saiba você, chegou a ser desenvolvido o suficiente para que gravações dele existam.
Ao que Endo, obviamente, achou que o jogo tava:
Veja, não é como se a Sony Music tivesse uma grande equipe para dar para auxiliar ele com o jogo, eles deram meia duzia de estagiarios pra trabalhar em meio expediente e tá mais que bom, e também não é como se Endo fosse um programador profissional, ele era literalmente só um cara que amava videogames e que estava estudando e aprendendo enquanto fazia.
Fazer um jogo de ação para o Playstation, um BOM jogo de ação era algo mais complexo do que ele tinha recursos e conhecimento para faze-lo naquele momento.
VOCÊ ESTÁ EXAGERANDO, NESSE BLOG MESMO TEM COISAS QUE PARECEM PIORES DO QUE ESSE GAMEPLAY QUE TU MOSTROU AÍ.
De facto, jogos piores que isso foram efetivamente lançados para o PS1. Sim, PERFECT WEAPON, estou olhando pra você. Só que essa é a coisa, sabe? Endo não queria lançar um jogo na categoria "de todos os jogos já lançados, esse com definitivamente foi um deles". Não. Esse era o sonho dele, era o sonho da vida dele e ele entrou nisso para fazer um jogo que ele gostaria que existisse como jogador.
Então, a pergunta de um milhão de ienes e três passoquitas é... como você faz um bom jogo de ação sem recursos para tal?
É, normalmente não. Exceto que... bem, já havia sido feito uma vez e qualquer gamer que se preze conhece essa história. Felizmente, Takuma Endo era um gamer que se prezava. Em 1987...
ESPERA, ESPERA, VOCÊ VAI MESMO CONTAR UMA HISTÓRIA DENTRO DA HISTÓRIA QUE VC JÁ ESTÁ CONTANDO? VIROU EPISÓDIO DE NARUTO ISSO AQUI?
... caham... eu dizia que em 1987, Hideo Kojima estava tentando fazer um jogo de ação para o MSX e se deparava com um sério problema: o MSX tinha a capacidade de uma cafeteira molhada e sem filtro. Eu estou falando muito sério: se você colocasse mais que três inimigos na tela não conseguia colocar os tiros, é esse nível de limitação que eu to falando!
Então como você faz um jogo de ação diante de limitações técnicas tão severas? Bem, a solução que Kojima veio a ter na época foi não fazer um jogo de ação, e sim um de furtividade. Pronto, agora você podia desafiar o jogador com poucos inimigos na tela pq o desafio não era passar fogo em todo mundo e sim se infiltrar na base na maciota e coisas assim. Esse jogo, saiba você, veio a se chamar "Metal Gear" e enquanto isso é história para outro dia, é um fato que esse jogo se tornou bastante popular por praticamente inventar o genero de stealth.
De volta a nossa história, Endo então lembrou de um dos seus jogos favoritos, considerou que o seu personagem era um ninja e pensou...
As engrenagens na cabeça de Endo começaram a rodar aloucadamente. No dia seguinte, a primeira coisa que ele perguntou no escritório, antes mesmo de dar bom dia ou de tomar seu café com 4 gotas de limão, era perguntar aos seus programadores se seria possível fazer os inimigos terem um campo de visão. Você sabe limitar uma area de onde os bonecos "enxergam".
Sim, era possível. Não era muito comum nessa época (os NPCs normalmente ativavam por proximidade, se vc chegasse perto a uma distancia pré-determinada, aquele inimigo entrava no modo combate contra você), e daria um pouco de trabalho programar pra visão ser bloqueada por arvores e paredes, mas sim, podia ser feito.
Bom, bom, próxima questão, e essa era a parte que Endo estava particularmente orgulhoso da sua ideia: seria possível fazer com que os inimigos tivessem uma quantidade de pontos de vida MAS QUE ao serem atingidos sem estar no "modo combate" eles morressem instantaneamente com um único golpe?
Bem, sim, daria trabalho, mas sim, era possível. Mas pra que isso? Que diversão teria matar um inimigo com um único golpe? Essa era a dúvida que ninguém no escritório conseguiu entender muito bem, ao que ele pediu para programar rapidão um boneco assim na engine do jogo que eles já tinham pronto. E então todo mundo viu na prática a ideia de Endo:
E foi aí que todo mundo entendeu. Dizem as lendas que um dos funcionários olhou para ele com lágrimas nos olhos e disse "Eu sou a morte. Eu sou um ninja". Tá, eu inventei essa última parte, mas não é minha culpa que a versão da vida real não é tão interesante quanto a minha.
SEJE como for, eis como Tenchu funciona: é possível lutar contra os inimigos normalmente, eles tem barra de vida, vc tem um comando para defender e tudo mais. Só que os controles são meio duros e não é uma experiencia realmente divertida. Pior ainda, como os controles são duros e o seu personagem não é muito ágil, se você calhar de puxar briga com dois (ou mais) inimigos ao mesmo tempo... heh, boa sorte com isso, pq os controles lentos e travados definitivamente não estarão a seu favor.
MAS PORÉM TODAVIA CONTUDO, e essa é a real graça da coisa aqui, você tem a opção de - ao invés de lutar com os inimigos com toda a graça e sutileza de um neanderthal - você pode assassina-lo... como um fucking NINJA! Isso quer dizer que se você atacar ele sem ter triggerado a detecção dele, o inimigo morre com um único golpe. Mas calma que melhora!
Isso pq Endo e seus meninos e meninas magia perceberam que haviam se deparado com ouro puro nas mãos, e todo o jogo foi construído em cima disso. Por exemplo, o que é mais legal do que apenas assassinar um oponente com um hit? Eu não sei, e se, digamos, fizesse isso na distancia correta e isso triggerasse uma cena de FATALITY? Eu não to brincando, um fucking fatality!!!
Meu amigo... meua migo... MEU. AMIGO. Agora isso é assassinato pra caralho, isso é a coisa mais cool desde que inventaram o guarda-chuva com ventilador embutido, é pra momentos assim que jogamos videogames! Diabos, é pra momentos assim que o primeiro invertebrado se arrastou pra fora do mar em primeiro lugar, eu te digo!
Sério, eu não tenho palavras para descrever o quão satisfatório isso é. Vc analisa o terreno, as rotas de patrulha dos guardas, stalkeia sua presa e BAM! I become death, destroyer of NPCs. Com efeito, como eu disse, Endo e seu time perceberam o quão legal era essa mecanica que construiram todo o jogo em cima do conceito de vc ser um assassino invisivel.
E para isso o jogo te dá outras ferramentas, como comida envenenada que você pode deixar nas rotas que os guardas patrulham (e eles vão pegar do chão e comer, pq alguém aqui claramente não ouviu os conselhos da senhora sua mãezinha), ou - e essa é uma das coisas mais iconicas do jogo - vc tem um gancho com corda que pode usar para andar pelos telhados e maximizar sua ninjabilidade, afinal que ninja que se preza anda pelo chão COMO UM IDIOTA?
Esses adicione a isso ainda alguns itens de suporte como bombas de fumaça, granadas, shuriken, estrepes, minas terrestres e poções de cura, e temos a experiencia completa do NINJA SIMULATOR OF DEATH aqui.
E é assim que a Endo e sua turma conseguiram entregar um jogo imensamente cool contornando todas as limitações que eles tinham e na verdade tem no produto final: os controles são bem duros, o cenário é bem pequeno e o jogo não tem mais que 15 inimigos por nível. Em um jogo de ação normal isso seria a receita para o desastre, porém focar o jogo no stealth contornou a maior parte desses problemas com uma inteligencia que raras vezes eu vi em jogo.
Porém, repare-se que eu disse "contornou os problemas", não resolveu eles. Isso pq Tenchu tem, de facto, vários problemas quando vc olha ele mais de perto. Parte deles são culpa das limitações do time de desenvolvimento, parte são culpas das próprias limitações do Playstation.
Como por exemplo, o fato que seu ninja não pode ver mais de 6 metros em qualquer direção. O mundo e os inimigos simplesmente fazem pop diante de seus olhos. Eu entendo que o hardware limitado do PS1 restringe o tamanho da fase, mas a distância que os inimigos aparecem é praticamente igual ao seu alcance visual. Não é raro um inimigo aparecer e ver você instantaneamente, o que pode tornar a coisa meio injusta.
Jogos de furtividade posteriores resolveram isso colocando um sistema de radar que permite vc ter uma noção de onde os inimigos estão e para onde eles estão olhando mesmo quando eles estão fora da (limitada) memória RAM do PS1, mas sendo o primeiro do genero Tenchu não tem nada disso e vc literalmente so pode contar com os seus olhos (os do jogador mesmo)
Outro problema é que os controles do combate não são muito bons. Essencialmente você bloqueia até que haja uma abertura - o que é a descrição de como você luta nos primeiros Assassins Creed, okay. Só que aqui os controles são bem duros e isso não é uma experiencia divertida. Tá, eu sei que o ponto não é ser divertido pq o foco é matar com a furtividade, fazer o combate ser tão fluído quanto meio que tiraria a raison d'etre das stealth kills (pra que ser furtivo se só andar e matar todo mundo dá na mesma?).
Eu entendo isso, de verdade, e o combate ser troncho não seria um problema... se o jogo não te forçasse encontros de combate corpo a corpo, além de chefes que você é obrigado a enfrentar mano a mano. Se houvesse uma opção de matar furtivamente todos os inimigos, o jogo seria ainda melhor. De qualquer forma, qualquer combate que você puder fugir e tentar a furtividade novamente, faça. Sempre será melhor recuar e começar de novo.
Narrativamente, bem, é relativo dizer. Endo era um grande fã de filmes de ninja, mas sabe aqueeeeles filmes de ninja? Aqueles dos beeeeens ruins que passavam na Band? É bem desses que ele gostava. E é bem desses que Tenchu é.
Espere aqui uma história bem básica de ninjas fazendo missões, mas polvilhadas pelas piores cutscenes na história da humanidade. Quer dizer, se você acha que "what is a man" em CASTLEVANIA: Symphony of the Night é uma dublagem ruim, então me explica isso:
Cara, essa é a pior dublagem da história dos videogames e quer saber? Isso é absolutamente genial. Qualquer um, literalmente qualquer um pode ser parado no meio da rua, oferecido um Toblerone sabor menta e faria uma dublagem melhor. Só que a dublagem desse jogo é propositalmente uma merda para referenciar os filmes terríveis de ninja, e o bebê chorando ao fundo por absolutamente razão nenhuma (sério, é apenas um audio colocado aleatoriamente) é de uma ruindade tão profunda que dá aquele toque especial, a cereja no bolo de vitória. Genialidade absoluta.
Mas então, fabulosidade da dublagem a parte, o fato é que sim, o jogo tem limitações técnicas - na verdade, como eu expliquei o jogo nasceu POR CAUSA de limitações técnicas tanto do PS1 quanto da inexperiente e limitada financeiramente equipe de desenvolvimento que não podia/conseguia fazer um jogo com mapas muito grandes ou com muitos inimigos na tela.
Ainda sim, eu diria que mesmo os defeitos do jogo não serem desprezíveis, não tem como desconsiderar que Tenchu não apenas praticamente inventou um novo genero - o jogo de ação 3D focado em furtividade, como executa os seus temas de forma imensamente satisfatória. A facilidade em andar pelos telhados foi um toque de muita sagacidade, e para todos os efeitos e propósitos, você se sente um ninja trazendo a morte silenciosa - tal qual o nome do jogo promete.
O curioso é que a grande inspiração para esse jogo foi o Metal Gear do MSX, e mal sabiamos todos nós que em paralelo a Tenchu uma versão 3D de Metal Gear estava em desenvolvimento e seria lançada poucos meses depois. O que de certa forma foi bom, pq se fosse lançado depois Tenchu seria totalmente eclipsado por Metal Gear Solid como jogo de furtividade. Eu fico feliz que esse não foi o caso e Tenchu tem o reconhecimento que merece, sendo considerado com justiça um dos clássicos do PS1.
Uma última curiosidade: sabia que não existe um único registro de qualquer pessoa jamais ter sido assassinada por um ninja na vida real? Pra ver como eles eram bons.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES Edição 127 (Maio de 1998)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER Edição 050 (Maio de 1998)