[#811][MULTI] SUIKO ENBU: Outlaws of Lost Dynasty [lançado como "DARK LEGEND" nos EUA][Agosto de 1995]
Vocês estão de sacanagem comigo. Não, sério, vocês só podem estar de sacanagem comigo! Porque sério, eu já disse aqui que nessa época de 1995 era tipo uma corrida do ouro dos jogos de luta e todo mundo tentava a sorte pra ver se emplacava o seu grande hit no genero mais popular do momento - mesmo empresas que não tinham experiencia nenhuma com jogos de luta como a Sunsoft, Atlus ou a Data East. Era literalmente atirar na parede pra ver o que colava.
Bem, como você pode imaginar, nada disso colou realmente. Aí então o que nossos heroicos nepomucenos fazem? Desistem e focam no que eles são realmente bons? Claro que não, apenas tenta de novo porque AGORA VAI! ... spoiler: não foi.
Cara, como que eles não usaram a capa japonesa do jogo no mundo todo? O cara tá dando uma chave de braço EM UM TIGRE! O que isso tem haver com o jogo? Nada, mas ainda sim é choking a fucking tiger!
Então depois de não conseguir absolutamente nada com FIGHTER'S HISTORY exceto um processinho da Capcom por plágio de STREET FIGHTER II: THE WORLD WARRIOR, eles respiraram fundo e mandaram ver na gordiola pra emplacar um novo jogo de luta absolutamente esquecível. Lost Dynasty é tão esquecível, de fato, que eu sequer tenho o que falar do jogo - nem pra falar mal, pq não é um jogo ruim, só é um jogo... é um jogo, né?
Imagine o jogo de luta mais genérico de 1995 que você pode imaginar, um que não faça nada de particularmente certo mas também não faz nada de particularmente errado também. Golpes que você poderia esperar, hit detection okayish, desperation moves sem nada de particularmente notável, um elenco que é bem sem graça a menos que vc seja um nerd de história chinesa, o velho ruguru de sempre.
A história é contada em chinês, mas tem legendas caso alguém tenha perdido algum detalhe. Agora sim!
Então isso nos leva a pergunta que realmente importa nisso tudo: o que caralhas eu vou escrever sobre esse jogo? Sim, isso é o que importa aqui realmente. O que nos leva ao paragrafo inicial do texto: vocês obviamente estão de sacanagem comigo.
MAS se vocês acham que me quebraram e que eu estou derrotado, saibam o seguinte: eu tenho uma arma secreta! Aha, eu tenho... UMA MÚSICA TEMA INSPIRADORA DE PROTAGONISTA DE ANIME! AHA!
E vocês não podem me derrotar enquanto eu tiver a música do Narutinho, tá certo dattebayo! Então eis o que eu farei aqui: SE:OfLD é um jogo baseado no romance chinês "Margem da Agua". Escrito no século 14, Margem da Agua é um dos quatro grandes romance clássicos chineses.
Os outros grandes clássicos são a Jornada para o Oeste (mais conhecida por ser o livro que conta a lenda de Son Goku, e suponho que você já ouviu esse nome antes), o Romance dos Três Reinos (conhecido por ter sido a inspiração para Dinasty Warriors e as mais de 50 adaptações em jogos) e O Sonho da Camara Vermelha... o qual, eu vou ser sincero, esse eu nunca tinha ouvido falar na vida. Que foi, eu não posso saber tudo sobre todas as coisas, okay?
Esses livros são chamados de "grandes clássicos" da literatura chinesa de forma bem literal: eles são REALMENTE enormes. Só a Margem da Agua, por exemplo tem 365 MIL PALAVRAS. Isso é mais ou menos o tamanho da trilogia do Senhor dos Anéis inteira, com mais de 100 capítulos e pelo menos 200 personagens. Caraí biridim, os chineses não estão brincando quando falam em GRANDE clássico, heim?
Especificamente Margem da Agua fala sobre 108 foras da lei que tem uma base no monte Liang e que formam um exército antes de receber anistia pelo governo e serem mandado em campanhas de resistência contra invasores estrangeiros e operações de combate a forças rebeldes.
ESPERA... 108 FORAS DA LEI QUE FORMAM UM EXERCITO PARTICULAR E ACABAM NO FINAL LUTANDO PARA SALVAR O REINO? ISSO É SUIKODEN!
Sono toori, meu prosopopeico amigo imaginário. Os 108 foras da lei do monte Liang são uma grande inspiração em toda cultura oriental, desde a famosa série de jogos Suikoden (que serão abordadas mais pra frente), até os 108 Espectros de Hades em Cavaleiros do Zodíaco.
Com efeito, o primeiro capítulo se passa anos antes da história principal, quando o tolamente arrogante Marechal Hong ordena a remoção de um selo sagrado que mantinha preso 108 demônios, também conhecidos como 108 Estrelas do Destino.Esses espíritos são liberados e renascem décadas depois como 108 heróis que, através dos caminhos complicados do destino, se unem e formam uma fortaleza de bandidos em no pantano Liangshan (ou colocando de uma forma mais poética, "a Margem da Agua", daí o nome do livro)
Agora, a coisa mais interessante a respeito de ler um livro tão fundamental da cultura chinesa... é que eu não sabia absolutamente nada da cultura chinesa realmente. Eu nunca assisti nenhuma produção originalmente chinesa que não filmes de kung-fu, e definitivamente nunca conversei com um chinês na vida. Então meu conhecimento sobre a China é absolutamente zero.
Alias, menos do que zero porque não bastasse não saber, a gente ainda é bombardeado por propaganda contra ou a favor da ideologia do governo chinês, que distorcem a verdade em favor de vender suas proprias politicas. E qual a verdade, você pergunta? Bem, uma bastante chocante: chineses são pessoas iguais a qualquer outra.
Uau, por essa a internet não esperava, heim?
SPOILER: na versão original da Margem da Água, não tem ninguém realmente que luta usando uma stand de coelho alienígina. Infelizmente.
Porque não, sério, no fim do dia quando você deixa de lado o estilo da escrita chinesa, o que você tem é um conto sobre um governo opressor e um bando de foras da lei repleto de virtude que se opõe a ele. O que é a história mais velha do mundo, recontada por cada povo oprimido por um governo merda (ou seja, todos seres humanos na história), que as pessoas simples do povo contavam para ajudar a lidar com a vida. Os ingleses tinham Robin Hood, os japoneses tinham Ishikawa Goemon, os mexicanos tinham Zapata, e os chineses tem os 108 foras da lei monte Liang. É uma história bastante universal e relacionavel, ao contrário do que se poderia esperar.
A Margem da Água segue as aventuras de soldados, estalajadeiros, ladrões, camponeses, vagabundos, pescadores, caçadores que sofreram ou foram prejudicados de alguma forma na mão de funcionários publicos mesquinhos e da nobreza local. Pra vc ter uma ideia, o segundo capítulo narra a ascensão de Gao Qiu, um idiota inútil que se torna Grande Marechal porque o Imperador achava divertidas suas habilidades no futebol (ou seja, não é muito mais complexo do que como politicos distribuem cargos hoje em dia realmente).
Uma vez em uma posição de autoridade, ele abusa de seu poder para punir injustamente um instrutor de armas chamado Wang Jin, cujo único pecado foi ser filho de um homem que uma vez deu uma resposta atravessada pra Gao. Quando esse instrutor de armas foge da capital para se salvar que a cadeia de eventos começa a andar e a história se desenrola.
Outra coisa muito interessante de ler esse livro é ver o quanto a estrutura clássica chinesa é diferente do que nós entendemos como uma estrutura tradicional de literatura no ocidente: isso porque a narrativa segue muito mais a história do que os personagens e enquanto a história geral está sempre avançando, os personagens em si são relativamente descartaveis.
Como mencionado, o romance inicialmente segue Gao Qiu quando ele se torna o marechal Gao, mas quando Wang Jin foge, o foco da narrativa vai com ele. Ele eventualmente se torna o instrutor de armas de um jovem chamado Shi Jin, com quem fica por um tempo antes de sair. Quando ele sai, a narrativa centra-se em Shi Jin, abandonando completamente Wang Jin, e assim por diante. Embora a história faça sentido no geral, é um pouco dificil resistir a nossa tendencia de pessoalizar a história.
Assim a história é altamente episódica por natureza, pulando de um personagem para outro à medida que um enredo termina e surgem outros totalmente diferentes, lembrando muito mais o Silmarillion do que Senhor dos Anéis, por assim dizer.
Além disso, a extensa exposição de como os 108 heróis eventualmente se reúnem em Liangshan Marsh não é tratada em cinco ou dez capítulos, mas abrange cerca de metade do romance (que tem cerca de 100 capítulos). Muitas das cenas mais memoráveis e icônicas são na verdade apenas exposição: um personagem está contando para o outro o que aconteceu, não é uma cena de verdade. O que faz sentido, já que esse livro é uma coleção de contos populares da época, mas torna a leitura um pouco arrastada demais para a nossa sensibilidade moderna.
Dessa forma, embora seja difícil imaginar, todos os 108 heróis recebem suas próprias histórias de origem e aventuras, algumas mais completas do que outras. Pelo que eu pesquisei isso não é exclusivo desse livro, é o estilo clássico chinês mesmo - O Romance dos Três Reinos é igualmente difícil de ler por causa de um estilo narrativo semelhante, onde uma grande quantidade de personagens é apresentada dentro de uma narrativa repleta de dialogo expositivo. Pensando desse jeito, faz sentido que as adaptações televisivas chinesas existentes dessas obras tenham entre 40 e 100 episódios de duração.
Não é surpresa, portanto, que as adaptações em filme sejam basicamente impensáveis. O filme "The Water Margin" dos Shawn Brothers, por exemplo, tem duas horas de duração mas avisa no começo que é uma adaptação apenas dos capitulos 64 a 66 do livro. Sério, três capitulos dão um filme de duas horas e olha que é um filme sem encheção de linguiça, eu assisti e a coisa flui bem até.
Outra coisa bastante interessante nesse livro é que a concepção de moral é completamente alienígina para os nossos padrões modernos. Verdade seja dita, entender a cultura chinesa moderna já é bastante demandante para o nosso entendimento ocidental, agora imagina uma cultura que é alienigina até para os valores chineses modernos!
Em um dos capítulos mais memoráveis, em que um personagem chamado Wu Song se vinga de indivíduos que o prejudicaram. Sob a cobertura do luar, ele se aproxima de uma pousada onde um general, um comandante e um guarda do portão estão desfrutando de algumas rodadas. Ele espia na cozinha e ouve as garçonetes reclamarem de seus convidados bêbados. Ele então encosta sua alabarda na parede, saca sua espada, silenciosamente abre a porta e os mata com algumas estocadas concisas, abafando os gritos ao fazê-lo. Nice, boa ação stealth. Prossigamos.
Ele então esconde seus corpos e foge para o salão principal, irrompendo na sala onde seus três alvos estão desfrutando do vinho. Ele os despacha facilmente e os decapita deliberadamente, parando depois para desfrutar de quatro jarras de vinho. Wu então se esconde enquanto dois dos atendentes dos generais se aproximam para ver do que se trata a comoção. Ele rapidamente os mata, esfaqueando um pelas costas. Cena de ação supimpa até aqui, show de bola.
Neste ponto, Wu pensa consigo mesmo, e eu cito literalmente: “Eu poderia muito bem fazer isso completamente”. Ele então procura a esposa do general e a mata, com a intenção de decapitá-la, mas descobre que sua espada não é afiada o suficiente. Ele volta para a cozinha, recupera sua alabarda e retorna, apenas para encontrar uma empregada acompanhada por duas crianças, lamentando o cadáver de sua mãe. Ele rapidamente mata a empregada com uma facada da alabarda no coração e despacha as duas crianças do mesmo modo. “Um golpe de cada foi o suficiente.”, é tudo que ele comenta
“Finalmente estou satisfeito”, disse para si mesmo. “Agora eu posso ir!”
Agora eis a coisa: Wu Song não é um vilão. Na verdade, ele não é apenas um dos bandidos justos do pântano, mas um dos personagens mais famosos da literatura chinesa. Okay, o general, comandante e guarda do portão da história acima são funcionários corruptos que conspiraram para assassinar Wu Song e por isso ele queria se vingar, mas e a empregada? As crianças?
Você entende meu ponto quando digo que a moralidade apresentada em Water Margin é estranha para um público ocidental moderno. Se um herói moderno faz isso, você poderia argumentar que ele é um antiherói psicologicamente abalado ou algo assim, mas Wu Song não é nada disso. Ele é um herói justo e pleno na narrativa.
Porém, sejamos honestos, é exatamente por motivos como esse que é fascinanante ler o Water Margin. Que melhor janela existe para vislumbrar uma cultura que não existe mais e que é tão diferente da nossa? Como mencionado acima, Margem da Água é frequentemente comparado a Robin Hood por seu retrato de foras-da-lei que se rebelam contra uma burocracia corrupta, mas muitas vezes chega a ser engraçado de tão fora da nossa realidade que é quando um personagem realiza atos verdadeiramente hediondos e é aclamado por sua nobre bravura.
É tão alien, com efeito, que é até dificil classificar em bom ou ruim. As vezes é cansativo os backgrounds e histórias expositivas que não são tão interessantes, as vezes é interessante esse choque de uma cultura que não existe mais. Mas "bom ou ruim" são parametros modernos que não realmente se aplicam.
Mas bem, suponho que importa realmente é que no fim do dia eu aprendi alguma coisa nova e, mais importante ainda, eu consegui escrever mais de duas mil palavras falando sobre um jogo completamente esquecível como Lost Dynasy. Você pode argumentar que eu estou trapaceando, mas então eu tenho que dizer que não apenas esse é o meu blog como... porra véi, duas mil palavras sobre Lost Dynasty não dá, né?