domingo, 9 de maio de 2021

[SEGA CD/PS1/SAT] SNATCHER (Novembro de 1988) [#683]


Uma coisa que eu digo frequentemente aqui é que videogames são a mais complexa das midias narrativas, no sentido que existem mais camadas na produção dela do que em qulquer outra midia. Isso é bom porque é o que torna videogmaes únicos, afinal, porém tem o downsize de que ser uma midia complexa acaba se tornando engessada pela sua própria natureza.

É tão dificil apenas fazer o jogo funcionar sem que ele imploda em uma pilha de bugs, e em fazendo ele funcionar existem tantas variaveis tão completamente discrepantes umas das outras que videogames frequentemente não se permitem ser autorais. Não tem como fazer "um código de programação na mão, uma ideia na cabeça", não é tão simples assim fazer um jogo para passar sua visão artistica de alguma coisa.


Hoje os grandes jogos são feitas por cem, duzentas pessoas com prazos muito apertados (porque tudo isso é muito caro de se fazer), então um diretor de um jogo não pode simplesmente fazer o que ele tem vontade. Mesmo que ele queira falar sobre um tema, mesmo que ele queira contar uma história (o que nem sempre é o caso tb), existem muitas variaveis que ele não controla - e como eu disse, videogames tem mais variaveis do que qualquer outra midia.

É por isso mesmo que eu admiro profundamente criadores de jogos que, apesar de todas as dificuldades, conseguem transformar o jogo em seu statement sobre um tema. Como Toby Fox e o seu Undertale, ou Eric Barone que passou quatro anos fazendo literalmente sozinho seu Stardew Valley.

Embora ninguém se importe com o PC Engine CD, eu tive que colocar essa capa aqui porque o jogo se chama "Snatcher CD-ROMantic". É por esse tipo de breguice que eu pago minha internet, Kojima!

Algo mais raro ainda, e que eu admiro ainda mais portanto, é quando um diretor tem um traço autoral reconhecivel através de suas obras. Assim como alguns filmes você pode saber o diretor só de bater o olho no estilo do filme, de igual maneira você consegue reconhecer um jogo do David Cage a milhas de distancia, ou um jogo desenhado pelo John Romero em qualquer realidade.

E dentre os diretores autorais de videogames, acho que é consenso absoluto que nenhum é mais único e reconhecível do que Hideo Kojima. Tanto que chega a ser uma ferramenta de marketing, seus jogos tem "A Hideo Kojima Game" estampados com orgulho na capa e as pessoas querem jogar porque é um jogo do Kojima, saber sobre o que é não é o mais importante


De certa forma, Kojima é o mais perto que os videogames tem do Tarantino, não apenas porque as pessoas também assistem os filmes do Tarantino por ele ser o Tarantino independente de sobre o que for, mas porque o processo criativo deles é bastante parecido.

Tarantino é um cinéfilo que quando jovem trabalhou como balconista de uma locadora e passava a tarde assistindo filmes completamente aleatórios que as locadoras sempre ficavam exibindo em seus ambientes. Hoje seu trabalho é repleto de referencias a todos os filmes, mesmo referencias cinematográficas que os grandes diretores normalmente cagam solenemente como de filmes trash e cinema blaxploitation. Mas não é apenas socar referencias, Tarantino junta todas as coisas que ele gosta e cria um universo único que opera por regras próprias.

Okay, já pode maneirar na breguice, brother...

Kojima trabalha de uma forma parecida: você consegue ver a influencia de todas as coisas que ele gosta se fundindo para criar um universo único que opera por regras próprias. Hoje, sendo um diretor com decadas de experiencia, não é tão simples assim identificar as influencias com as quais Kojima trabalhou para criar o seu universo - no caso especifico de Death Stranding, eu só posso dizer que envolvem grandes quantias de drogas lisérgicas, provavelmente vencidas.

Já no começo da carreira (e em especial, quando ele tinha que prestar contas a seus superiores e não podia dizer "o jogo vai ser isso pq eu sou o fucking Kojima, caralho!") as referencias eram bem mais fáceis de identificar.


Snatcher, por exemplo, é uma mistura de Blade Runner, Terminator, Invasion of Body Snatchers, Akira, Wicked City e Alien, tudo isso com o estilo de escrita verborrágica do Kojima e sua romances anime-like. O que acontece quando você junta tudo isso, sacode bem e enche de referencias a Metal Gear? Ora o que, é claro que é A HIDEO KOJIMA GAME!

Para começar, Snatcher é uma visual novel por um motivo muito curioso: Kojima não é exatamente um programador, e no seu jogo anterior (o lendário Metal Gear) ele teve dificuldades em comunicar suas ideias para os programadores porque... bem, suas ideias são diferentes, vamos dizer assim. Por isso ele pediu a Konami que o seu próximo jogo fosse mais simples para que ele pudesse participar diretamente na programação do jogo e nada pode ser mais simples em termos de jogo do que uma visual novel. Como esse é um genero bastante popular no Japão, foi autorizado e é isso que esse jogo é.

Kamen Rider e Alien no happy hour assistindo uma ruiva de biquini dançando no palco, realmente teria sido dificil explicar isso para os programadores

Nossa história começa na futurista data de 6 junho de 1996 (esse é um jogo de 1988), quando um centro de pesquisa próximo a Moscou chamado Chernoton, explodiu e liberou uma arma-biológica no ar chamada "Lucifer-Alpha". O que totalmente não é uma referencia a Chernobyll, que tinha acontecido alguns meses antes desse jogo ser produzido. 

Lucifer Alfa foi liberada pelo ar e levada pelas monções, se espalhou muito rápido por toda Eurásia, posteriormente atravessando o Atlantico e no fim matando mais de 80% da população mundial. Esse evento ficou conhecido como "A Catástrofe" e ninguém sabia como ocorreu a explosão ou quem foi o responsável.



50 anos depois, em uma região montanhosa próximo a megalopole de de Neo-Kobe (antiga Tóquio) aconteceu um acidente de avião com muitas vítimas, só que no meio disso foi encontrado no meio dos corpos carbonizados das vitimas um esqueleto mecanico estranho nos destroços.

Foi a primeira vez que se ouviu falar desse tipo de inteligencia artificial, mas subitamente começaram a ser encontrados mais desses seres mecânicos com inteligência própria e que por algum motivo eles matam suas vitimas para poder depois copiar suas peles e aparencia, assumindo sua identidade na sociedade. Por essa razão de sequestrar pessoas e assumir o lugar delas, esses biodroides (que é como são chamados os robos que são feitos de partes organicas, como em Battlestar Galactica) foram chamados de "snatchers"

Um snatcher sem a pele sintética é basicamente um Terminator. E eu realmente acreditaria mais no "it won't be moving again" depois demais 5 tiros de segurança na cabeça, apenas dizendo

Há um clima de paranóia em Neo Kobe, nunca se sabe se o seu vizinho ou mesmo seu marido não foi substituído por um snatcher. Em resposta a isso, o Governo dá início à criação de uma Força Tarefa para caçar snatchers, os policiais dessa força tarefa ficam conhecidos como "Junkers" (porque é o trabalho deles transformar os snatchers em junk) e é esse o cenário que o jogo começa.

Nosso protagonista é Gillian Seed, um homem que foi encontrado sem memória junto com a esposa também sem memória, e encaminhado pelo governo para se tornar um junker. Pq? Como todas essas coisas estão relacionadas? A resposta é: A HIDEO KOJIMA GAME.

Seed vendo uma jovem de 18 anos tomando banho ... sendo que no original japonês ela tem 14 e não tem a cabeça dele na frente :-))

Mecanicamente, bem, Snatcher é uma visual novel de 1988 e por isso é como o Naruto: pode ser um pouco duro as vezes. A interface não é o que eu chamaria de ideal: em cada tela do jogo você tem um menu de opções para explorar, e muitas dessas opções são redundantes.

O pior ofensor nesse sentido são as opções "look" e "investigate" que fazem basicamente a mesma coisa, já que o look dá uma descrição do item enquanto o investigate... dá uma descrição do item também mas habilita a opção de interagir com ele se for possível. 

Pode parecer uma coisa pequena, mas que se torna em algo incomodo ao longo de horas de jogo: você tem que entrar em look e selecionar um item. Então entrar em investigate e selecionar o mesmo item. Repita isso que cada tela tem por volta de 5 itens e você pode realmente se perguntar porque essas coisas não apenas juntadas numa só.


E enquanto a progressão do jogo na sua imensa maioria seja intuitiva e funcional (para conseguir avançar faz sentido quais os investigate/look/ask que você tem que selecionar), em alguns momentos o jogo engasga e te pede uma sequencia bastante especifica dos menus que você tem que selecionar. Não é algo que estrague o jogo nem nada, mas definitivamente é algo que não seria feito hoje em dia.

Porém suponho que ninguém jogue uma visual novel do Kojima pelas mecanicas e sim pelo design do jogo em geral, e é aqui que Snatcher está em seu melhor elemento.

Aquele momento constrangedor que você volta de férias e lembra que esqueceu seus filhos trancados em casa. Awkward.

Aproximadamente 90% do seu tempo no jogo fazendo sua investigação sobre o que os snatcher são, o que eles querem, onde é sua base e como derrota-los. Você faz isso vasculhando a cidade, questionando as pessoas, reunindo informações, reunindo evidências, investigando cenas de crimes cometidos pelos snatchers ou de pessoas que possam saber algo a respeito deles.

Isso funciona realmente bem, e você realmente sente que esta fazendo uma investigação. O jogo não diz claramente para onde você tem que ir a seguir, as pistas que você descobre "dizem" e isso é tudo que eu posso esperar de um jogo com essa proposta. Você realmente sente que está crackeando o caso. 

Kojima, o que nós tinhamos combinado a respeito da sua breguice?

Eventualmente o jogo exige algum puzzle para prosseguir, e eu gosto que eles não são obscuros demais para se resolver entretanto se você continuar errando o jogo te dá dicas para te ajudar. Uma personagem por exemplo exige que você lembre de informações pessoais dela para provar que você não é um snatcher. Se você errar algumas vezes a resposta, o Metal Gear (seu sidekick robozinho) te dá uma dica de onde conseguir essas informações. 

O que o jogo alias aproveita e, como um clássico jogo do Kojima, Snatcher freqüentemente quebra a quarta parede e se dirige a você diretamente. Soluções para quebra-cabeças são sempre encontradas por meio de evidências ou do ambiente do jogo. Algo tão simples como um pôster ao fundo pode conter uma pista integral. E se você simplesmente procurar a solução em walkthrough o jogo vai saber que você trapaceou. Por exemplo, Metal Gear pode mencionar que você de alguma forma resolveu o quebra-cabeça sem acessar as informações necessárias dentro do jogo.

Tem que ver essa conjuntivite ae, jovem

Então Snatcher tem uma trama kojimesca, a investigação funciona no sentido de você sentir que está realmente avançando numa investigação e tudo mais, mas nada disso adiantaria em uma visual novel se o texto fosse o ponto fraco da coisa toda. Felizmente, nada poderia ser mais longe da verdade.

Cyberpunk não é um genero conhecido pelas suas cores e felicidade. Hã, quer dizer, é conhecidor por suas cores mas não metaforicamente... você entendeu. Com robos assassinos matando pessoas e tomando o lugar delas, seria fácil tornar esse jogo um noir depressivo onde a vida não vale nada e uma grande cidade do futuro devora sonhos. Entretanto esse jogo não é Cyberpunk 2047 e o Kojima equilibra um tema pesado onde mais da metade da população mundial morreu (e a outra metade pode ser morta por menos do que um sorvete de pistache) com personagens coloridos e interessantes, como usualmente é o caso dos jogos dele.

Are you feeling lucky, puuuuunk? Well, are ya?

Nosso protagonista é um detetive... exótico, vamos dizer assim. O que significa que entre estar resolver um caso bastante sério, ele aproveita a oportunidade para dar em cima de todas as mulheres que conseguir encontrar com a mesma taxa de sucesso  de um protagonista de anime shonen 

O que frequentemente é lembrado por seu sidekick robo que ele deveria parar de fazer isso não porque ele já é casado, mas porque as rejeições que ele leva na lata are kind sad to watch. A parceria entre Gillian e seu pequeno robo sidekick Metal Gear Mk. 2 é algo que torna o jogo mais leve e genuinamente divertido. Talvez ter uma câmera de segurança glorificada como parceiro não soe tão empolgante no papel, mas à medida que o relacionamento se desenvolve, as trocas entre eles se tornam facilmente entre as mais agradáveis dos videogames. Os dialogos entre Gillian e Metal Gear frequentemente fornecem um alívio cômico bem-vindo para instâncias que de outra forma seriam muito mais sombrias.

GILLIAN: Fale ou eu estouro seus miolos, seu miseravel! Por que você não fala? 
METAL GEAR: Gillian, mesmo que ele fosse o nosso homem não acho que ele conseguiria falar nada enquanto você estiver com uma arma na boca dele

O Kojima tem um talento muito único para incluir personagens bizarros em situações sérias sem esculhambar a coisa toda, fazendo parecer organico e exótico - ao invés de apenas aleatório e preguiçoso - e Snatcher faz isso muito bem mesmo sendo um dos primeiros trabalhos do cara.

Snatcher conta uma história séria durante a transição perfeita de uma conversa importante por videofone de Gillian com sua esposa para um dialogo entre Gillian e Metal Gear. Em um momento, você pode desfrutar de uma visita tranquila ao centro de Neo Kobe, com uma versão eletrônica de Jingle Bells tocando ao fundo. Cinco minutos depois, você está enfrentando o medo de ser deixado sozinho em um necrotério repleto de snather desativados, os quais você imagino que estão prontos para destruí-lo. Encontros com snatchers em si até que são poucos e espaçados, mas todos são tensos e inesperados.

Então, sim, eu diria que Snatcher é de fato uma obra-prima. A maior parte das coisas funciona nesse jogo, mesmo a dublagem que na época costumava ser atroz é bastante boa - especialmente a dublagem do Metal Gear, é a minha segunda voz de robo favorita na história dos videogames (atrás apenas de você sabe quem, a menos que você seja gordo e adotado então provavelmente não vai saber mesmo).

Pra vender o jogo mais facilmente no ocidente, ele tem sessões de tiro. Quatro telas ao longo do jogo todo mais precisamente, mas que obviamente foi vendido pelas revistas como "um jogo de ação" por causa disso.

Clicar em vários menus e ler uma abundância de texto pode não ser do gosto de todos (definitivamente visual novels não são o genero mais popular do ocidente), mas depois de jogar posso dizer que é uma das histórias cyberpunk mais cativantes que já experimentei. Para traçar paralelos, é como assistir Blade Runner mas com uma história que tem algum propósito e personagens que não estão com saco cheio de tudo.

Snatcher é um jogo cheio de personalidade, tom e detalhes que fornecem um vislumbre dos projetos que o Kojima viria a desenvolver (alguns dos efeitos sonoros e fontes utilizadas inclusive são reconheciveis como tendo sido utilizadas em Metal Gear Solid, quase uma decada depois). Mais do que uma investigação cyberpunk, Snatcher é uma carta de amor do Kojima ao cinema de ficção cientifica fazendo desde já o que ele faz de melhor até hoje: cozinhar um milhão de referencias para criar o seu próprio universo único e distinto.

E de qualquer forma, com Kojima e cyberpunk não tem como errar. Melhor que isso só se fosse produzido pela CDPR e tivesse o Keanu Reeves.


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