quarta-feira, 26 de maio de 2021

[MEGA DRIVE] CRYSTAL'S PONY TALE (Novembro de 1994) [#692]

Um procedimento que eu faço nesse blog é, sempre que eu posso, falar não apenas dos jogos mas do contexto que levou aquele tema em particular - como no jogo do - STARGATE eu falei sobre o filme também, ou no jogo do THE INCREDIBLE CRASH DUMMIES eu falei de toda história sobre como bonecos de teste de colisão se tornaram uma linha de brinquedos e portanto um jogo. É algo que eu gosto de fazer porque eu sempre aprendo coisas novas que eu não sabia.

SIM, ESSA É A DEFINIÇÃO DE APRENDER. ISSO É UM PLEONASMO.

Viu só? Acabei de aprender isso também!

Mas bem, nesse sentido o jogo de hoje foi a oportunidade de pesquisar algo que eu sempre tive curiosidade de saber: hoje até que isso não é realmente muito uma coisa mais, ou pelo menos não deveria ser em lugares civilizados, mas até os anos 2000 tinha muito forte essa vibe de “poneis são coisa de meninas”. Eu acho tosco isso de “coisa de menino” e “coisa de menina”, mas é assim que as coisas eram.

E isso é algo que eu sempre achei curioso, porque cavalos não é algo que você associa com as outras “coisas de menina” socialmente estabelecida. Eu entendo pq a sociedade incentiva meninas a brincar com bonecas e de “casinha”, e princesas e coisas fofas e adoraveis e delicadas assim. Não é realmente necessário ser um genio pra entender como a nossa sociedade é estruturada com base nas coisas que é dito ser “certo” uma criança brincar.

Eu não concordo, mas entendo a razão. Agora... cavalos? Sério, tu já viu um cavalo de perto? É um bicho muito forte ao ponto que você não consegue sequer lutar contra um cavalo se não tiver uma arma, e mesmo que você tenha uma espada ou algo assim as chances ainda vão estar do lado do cavalo - não é por acaso que ainda hoje a polícia usa cavalos em ambientes urbanos. 


Eu já fui em estádio de futebol que a policia soltou os cavalos e é uma coisa aterrorizante. Não porque ele pode te atacar, como você teria medo de um cachorro ou algo assim, mas porque você sabe que ele pode pisar em você, quebrar sua perna no meio e sequer percebeu que fez isso.

Sério, cavalos são muito grandes e fortes, o que os torna uma adição bem estranha as “girly things”. Eu até entendo que poneis são versões cute dos cavalos, mas isso é apenas uma variação da trend principal. Na maioria das áreas relacionadas a cavalos, as mulheres são maioria do que os homens. Tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha, mais de 90% dos proprietários de cavalos são mulheres. Três em cada 4 alunos matriculados em escolas de equitação na Europa são mulheres. 4 em cada 5 veterinários eqüinos graduados nos EUA são mulheres.

Então a pergunta que eu sempre tive é: pq? Não que seja errado nem nada, apenas me pareceu bem aleatório especificamente cavalos ser algo relacionado desse jeito. Então eu comecei a pesquisar, e a resposta mais obvia é que é uma profecia auto-realizavel. Se estabeleceu que isso era verdade, e por ser dito que é verdade repetidas vezes as gerações cresceram acreditando que isso é verdade.

Isso é verdade, da mesma forma que se repetiu tantas vezes que “rosa é cor de menina e azul é cor de menino” que a partir de determinado ponto as pessoas cresceram acreditando nisso e nunca se perguntaram o pq, na verdade passaram a defender isso em um nível primitivo. É estúpido, mas é como seres humanos rolam e na imensa maioria do tempo as pessoas não sabem pq acreditam nas coisas que acreditam.

Mas isso explica como isso se manteve, não a origem desse conceito social. Então da onde isso saiu? Após passar algum tempo lendo achismos das pessoas na internet (e eu li todo tipo de coisa bizarra, desde que meninos não gostam de equitação porque esmaga seus testiculso a mulheres gostarem de cavalos porque eles tem um bilongão enorme... internetz, enfim), eu encontrei uma resposta que me parece satisfatória.

Existem alguns estudos escritos sobre este assunto, o mais recente sendo “Horse Crazy: Girls and the Lives of Horses”, de Jean O'Malley Halley pela Universidade da Georgia.


A base para a aceitação social do amor pelos cavalos por meninas em particular começou, entre outras coisas, com o sucesso de um gênero literario chamado “poney books” - que como o nome sugere, eram livros sobre a amizade entre uma menina e seu cavalo. Sim, isso não apenas é um genero como fez muito sucesso no começo do século XX.

O precursor disso é o livro seminal “Black Beauty”, um romance de 1877 da autora inglesa Anna Sewell - um dos livros mais vendidos de todos os tempos. Black Beauty é mais ou menos um “Marley e eu” de cavalos, um livro que conta a vida do cavalo Black Beauty desde seus dias de potrinho, sua vida na cidade puxando cabs até seus últimos dias em uma fazenda já idoso.

O livro teve um grande impacto no movimento contra a crueldade com os animais; e foi um dos pilares que tornou-se mais socialmente aceitável ver os cavalos não como mero transporte, mas como seres com direitos. Os movimentos pelos direitos animais no começo do século XX eram majoritariamente participados e liderados por mulheres, de modo que começou a se fazer essa associação. Eu não sabia que os movimentos pelos dos direitos animais e o sufragismo são praticamente irmãos, mas agora eu sei e saber é metade da batalha.

E é claro que a Disney comprou os direitos para fazer um filme, o que é que a Disney não compra hoje em dia? Eu to aqui a venda dona Disney, alias

Quando Black Beauty foi escrito os cavalos ainda eram o principal meio de transporte - e sendo condenado a ser um cavalo de carroça um destino realista. Porém nos anos seguintes essa realidade mudou, o uso de cavalos como meio de transporte estava em declínio, sendo substituído pelo automóvel - de modo que os livros que tentavam surfar na onda de Black Beauty, como sempre acontece quando um livro bomba, deixavam de lado a critica social sobre o tratamento que os cavalos recebiam na cidade (que não fazia mais sentido na realidade urbana) e focavam na coisa do relacionamento com o cavalo.

Foi assim que surgiu o gênero “pony book” e foi assim que realmente nasceu essa coisa de “uma garota e seu cavalo”. Esses livros foram expressamente dirigidos às meninas e marcam o verdadeiro ponto de inflexão - onde os cavalos se tornaram, no Ocidente, uma “coisa para meninas” (embora nunca tenham deixado de ser uma “coisa para meninos” também, vide que ainda hoje “cowboys” são uma coisa ainda).


Agora explicado esse conceito, não é realmente surpresa que quando a Hasbro queria uma marca para vender brinquedos para meninas da mesma forma que vendia GI Joe para meninos criou a marca “My Little Pony” - cavalinhos coloridos amigaveis em bonecos realmente baratos.

UAU, TODA ESSE TEXTO FOI APENAS UMA DESCULPA PRA POSTAR MEMES DE MY LITTLE PONY, NÃO FOI?

Eu não sei do que você tá falando, Jorge, da onde tu tirou a ideia de que eu sou Brony ou alguma coisa assim...

É, NÃO FAÇO IDEIA DA ONDE EU POSSO TER TIRADO ISSO...

 

NENHUMA IDEIA MESMO...

Hã... então... mas seja como for, não é realmente surpreendente alguém pensassem em traduzir o grande sucesso de My Little Pony dos anos 80 em um videogame... exceto que licenças custam dinheiro e algumas pessoas são muito apegadas ao seu dinheiro e preferem não gasta-lo sempre que possível. Verdade seja dita, não foi o primeiro a pensar em como ganhar um dinheiro com poneis sem dar um centavo para a Hasbro, e certamente não será o último.


Esse tem alguém que não tem vergonha de chupinhar licenças na cara dura, esse alguém certamente é a Sega. Quer fazer um jogo de Robocop mas sem gastar com isso? E-SWAT: CITY UNDER SIEGE Conan, o Barbaro tá na moda e você quer economizar? GOLDEN AXE

Assim, quando a Sega quis fazer um jogo de My Little Pony mas sem realmente pagar por isso nasceu Crystal Pony Tales. Mas que tipo de jogo são esses contos dos poneis de cristal? Um surpreendemente decente, já que jogos infantis não tem a melhor reputação do mundo. 


Essa... é a tela mais açucarada da história dos videogames. Estudos comprovam que assistir essa abertura cura cancer, resolve a disputa no Oriente Médio e faz o Vasco jogar bem. Esse é o poder da paz e harmonia que essa abertura exala.

Você pode perceber que nunca houve uma guerra mundial após 1995, ano que essa abertura foi criada. Coincidencia? Pois é, acho que não.


A história do jogo é que Crystal é a mais lentinha do herd, tanto que ela chegou atrasada para a festa de poneis e não estava presente quando o maligno executivo da Hasbro usou o raio de direitos autorais para desponizar o mundo, além de fazer Ponyland secar e explodir.

A primeira parte está no manual, a segunda foi um aprimoramento da minha parte. Hasbro, manda um zap pra gente conversar sobre ideias para a G6 *twink twink*

Ser dono de um barco parece um desejo estranho para um pássaro, mas ei, todo mundo tem que ter um sonho

Mas falando sobre o jogo, a primeira coisa que você nota é que foi feito por pessoas dignas e decentes. Não é algo que eu digo tão frequentemente sobre a Sega, mas kudos onde kudos são devidos, é o que eu sempre digo.

VOCÊ ESTÁ FALANDO ISSO PORQUE DÁ PRA CUSTOMIZAR AS CORES DO SEU PONEI, NÉ?


É um jogo que você pode jogar com a Fluttershy! Flutter-fucking-shy, aí sim eu vi valor caralho! 

ESSA É UMA DAS FRASES MAIS ESTRANHAS DESSE BLOG, TENHO QUE DIZER ISSO

Mas falando sério, a coisa de poder customizar as cores do seu ponei é um belo drible para não poder usar a licença de My Little Pony, agora você pode fazer o seu ponei favorito e tudo certo. Hã, digo, se isso for a sua coisa, claro, eu não saberia realmente dizer...

Para libertar os pôneis, Crystal precisa recuperar as joias e isso é feito interagindo com o cenário. Não é muito diferente de BARNEY'S HIDE & SEEK GAME, com a diferença de que para conseguir as joias você precisa fazer pequenas quests. Nada muito complexo, na medida certa para uma criança jogando seus primeiros videojogos.


Existem um total de quatro telas no jogo, e uma vez que você pega o cristal tem que soltar o ponei correspondente em outra tela. Então isso exige que a criança trabalhe a memória e introduz elementos básicos de quests dos videogames - o que é muito mais do que eu esperava que esse jogo fosse fazer. 

Isso foi a coisa que mais me surpreendeu no jogo, é que ele é um jogo de verdade. Ao contrário do jogo do Barney que é só uma coleção de coisinhas bonitinhas interativas (embora esse jogo tenha interações bonitinhas sem proposito maior que ser bonitinhas também), esse é um jogo mesmo que introduz conceitos básicos de videogame para as crianças.

Um jogo sobre cavalos psicodélicos e amor

Para trocar de mapa , Crystal tem que passar por um portão e “pagar” uma taxa de cinco ferraduras pelo serviço. Essas ferraduras estão espalhadas por todo o nível e são fáceis de encontrar e acumular, de modo que ter o suficiente nunca é um problema - mas é o conceito que importa. 

Falando de conceito de jogo para crianças pequenas, Crystal também nunca pode realmente morrer. Se tocada por um inimigo, ela simplesmente perde algumas de suas ferraduras e segue em frente. Se todas as ferraduras acabarem (o que é muito dificil, mesmo para uma criança), ela será simplesmente levada de volta ao início da fase para tentar novamente.

Mas o foco do jogo não é o combate; os inimigos são todos bastante simples e a maioria deles pode simplesmente ser pulada ou esquivada. 

Os poneis dizem qual jóia precisa para serem libertados ao interagir com eles, de modo que a criança tem que fazer a associação

Eu também fiquei surpreso com o áudio: o relinchar e o som dos cascos dos cavalos se destacam como sendo especialmente bons. A música, infelizmente, é um tanto rígida e sem emoção devido às a placa de som do Mega Drive ser composta por um saco de aipim rolando escada abaixo, mas a escolha da trilha é o que me impressionou: Dolly de Fauré, 4ª Sinfonia de Brahms, Salão do Rei da Montanha de Grieg, Dança da Fada dos Confeitos de Tchaikovsky e Voo do Abelha de Rimsky-Korsakov. 

O que torna especial é a forma que essas músicas foram incorporadas ao jogo: ouvimos Flight of the Bumblebee quando uma abelha aparece na tela. A Dança da Fada dos Confeitos, de Tchaikovsky, é famosa pelo uso de um instrumento chamado celesta, que produz um som característico de sino (é por isso que a música soa desse jeito). No local onde esta música toca, uma das coisas que Crystal deve fazer é tocar um catavento que soa exatamente como uma celesta.


Mais uma vez, é uma quantidade de pensamento que eu não esperaria em um jogo infantil da Sega. Porra, a gigantesca maioria dos jogos hoje não tem esse nível cuidado com o seu audio. Não ironicamente impressionado.

Como um adulto jogando o jogo, eu poderia facilmente reclamar que é muito curto, mas suspeito que o desafio é adequado para seu público-alvo. Crianças tem uma grande tolerancia a repetição, então seria fácil para a Sega se atirar nas cordas e contar com isso, mas eles realmente tentaram colocar a maior quantidade de conteúdo com qualidade. 

Se você sempre quis um jogo sobre poneis com barba por fazer, eis aqui seu sonho estranhamente especifico realizado

Esse game foi feito com tanta boa vontade e atenção que na matéria sobre ele a Ação Games sequer mencionou que "é um jogo para meninas", como seria esperado de uma revista dos anos 90 - e como ela já fez mais de uma vez, como na infame matéria de BEAUTY AND THE BEAST: BELLE'S QUEST.

A única outra vez que eu vi algo assim foi na matéria de BARBIE SUPER MODEL onde aquele jogo é tão ruim, tão ruim, tão ruim que a ruindade do jogo fez o orgulho gamer sobrepujar o sexismo blatante das revistas da época. Nesse jogo o efeito é o mesmo só que contrário, esse jogo é tão redondinho na sua proposta que nem parece um texto dos anos 90. Não consigo pensar em um elogio maior.


MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 079