Uma coisa que eu não esperava quando eu comecei esse projeto é que eu acabaria passando tanto tempo falando sobre desenhos animados, se bem que faz sentido quando você pensa sobre isso: videogames e cartoons compatilhavam o mesmo publico-alvo nessa época (embora não necessariamente competissem um contra o outro), logo é apenas natural que muitos cartoons tiveram sua adaptação videogamistica, mas o capitulo de hoje é particularmente importante.
Eu, mesmo quando criança, sempre fui muito sensível a quando alguém estava sendo condescendente comigo. Isso significa que eles pensavam que eu era estúpido. E como pouca coisa se aproveitava da minha aparencia, eu realmente odiava me sentir estúpido. Quer dizer, se eu não fosse inteligente então o que eu teria? Sim, eu não era um exemplo de saúde mental nessa época, eu sei.
SIM, MUITO DIFERENTE DE HOJE, NÉ?
Deveras, pequeno espectador ficticio que eu imagino na minha cabeça pq não tenho com quem dialogar. Ainda sim, por mais que eu adorasse desenhos animados, eu não conseguia evitar de sentir que muitos deles falavam conosco como se fôssemos estúpidos e isso que algo sempre me incomodou.
Picas coisas são mais anos 90 do que essa imagem |
Então, a esse ponto da história por volta da metade dos anos 90, os cartoons começaram a tentar uma coisa realmente insana - porém que os animes já sabiam a décadas: crianças não são idiotas. Quer dizer, elas são estúpidas pq são crianças, mas elas tem sim sua própria inteligencia e existe uma diferença entre uma criança de 12 anos de idade e uma de 5, algo com que a cultura puritana americana ainda hoje tem dificuldade em assimilar.
Seja como for, eu dizia que os cartoons começaram a arriscar coisas para um publico além das crianças em idade pré-escolar, dando origem a cartoons que são lembrados até hoje como os X-MEN da Fox e até hoje celebrado THE ADVENTURES OF BATMAN & ROBIN da Warner. Embora não sejam desenhos pesados ou violentos (você ainda vai ver muita gente arremessada pra ter conflito sem violencia), definitivamente é uma quebra de paradigma no sentido de respeitar a inteligencia das crianças.
E a Disney vendo que fazer cartoons mais sérios parecia que dava certo sim, decidiu dar a sua tenteada no ramo. E assim nasceu Gárgulas.
O mundo precisa de mais Hudsons, definitivamente |
Gargulas foi, de longe, a série mais profunda, progressiva e com cuidado no desenvolvimento do conceito e personagens que a Disney fez durante os anos 90. E honestamente, que qualquer um fez nessa época. Porque embora possa parecer superficialmente que é um desenho de ação bastante comum, Gargoyles provou-se a cada episódio como um programa com uma mensagem. Essa mensagem era simples, mas profunda em sua raridade entre seus pares. Ele tirou as luvas de pelica, colocou as duas mãos nos ombros do seu espectador e disse: “Eu não acho que você é um idiota”.
A história conta a história de espécie inteligente e noturna chamada Gárgulas, que vira pedra durante o dia e acorda à noite. Seu vínculo com os humanos era de proteção – eles viveram ao nosso lado protegendo castelos e famílias antigos por centenas de anos, até serem traídos por humanos em 994 DC e congelados em pedra por um feitiço mágico que só quebraria quando seu castelo “se eleva acima as nuvens".
Apenas a história de como isso aconteceu, exatamente, e como as Gargulas foram transformadas em pedra durante mil anos leva cinco episódios para ser contada e envolve mais personagens interessantes, plot twists e uma sequencia única de eventos do que você poderia esperar. Quer dizer, eles poderiam apenas fazer uma intro dizendo que os monstros foram transformados em pedra durante um milenio e acordaram em Nova York de 1994, mas não, tem toda uma história feita com interesse de como isso aconteceu. Não é o tipo de esforço que você costumava ver em cartoons, isso eu te digo.
Quanto ao conceito da série, a primeira coisa que eu pensei foi que não era algo muito interessante (embora esse desenho tenha passado no SBT, eu nunca assisti um único episódio e só assisti recentemente). Quer dizer, a coisa é que as Gargulas são monstros poderosos a noite e sua vulnerabilidade é que eles viram pedra durante o dia - e portanto podem ser destruídos facilmente por qualquer idiota com uma marreta sem muito esforço.
E porque isso não é interessante? Pq é óbvio que eles não vão usar essa premissa como ameaça, sério, um desenho da Disney de 1994 vai fazer o que? Genocidio de uma espécie enquanto ela dorme indefesa durante o dia? É, bem capaz mesmo...
HOLY CANELLONI! For realz?! Uau, eu totalmente não vi isso vindo...
Bem, enfim, todos o clã é assassinados, exceto 5 Gárgulas que não foram destruídas e que despertam na moderna cidade de Nova York de 1994... não tão moderna hoje, mas você pegou a ideia. Aparentemente os ultimos da sua espécie. Uau. Isso já é pesado para um cartoon da época, e Gargoyles estava apenas começando.
Não pra chocar gratuitamente a troco de chamar atenção, mas porque esta série tem algumas coisas a dizer. Gárgulas discute temas maduros usando arcos de história complexos (arcos de episódios não eram uma coisa realmente nos cartoons dessa época, era sempre "a aventura do dia que nunca mais será referenciada" a norma até então), tudo dentro de um desenho animado com boas cenas de ação.
you and me both, pal... |
Logo após o começo da série, que é um arco ao total de 5 episódios contando como as Gargulas se estabeleceram na cidade, tem uma série de episódios individuais sobre cada um dos membros do time para o publico conhece-los melhor. O episódio do Broadway (que é o mais infantil das Gargulas) é que ele está brincando com uma arma da sua amiga policial humana Elisa e acidentalmente atira nela pelas costas.
Episódios de desenho animado com lição de moral para crianças era algo bem estabelecido nos cartoons a esse ponto, mas definitivamente não da forma com que Gargulas fez: Elisa realmente ficou entre a vida e a morte e o médico descrevendo para a familia dela o estrago que a bala vez nos órgãos internos é uma coisa que deixou eu, com quase 40 anos de idade na cara, bastante perturbado. Não foi uma coisa bonita. Nenhuma criança que assistiu esse episódio nunca mais sequer cogitou brincar com a arma do pai encontrada em casa, isso eu posso te garantir.
Mas não para por aí: pelos próximos episódios Elisa ainda anda de muletas e com a saúde debilitada de quem quase morreu, e mais importante ainda, dali até o fim da série Broadway passou a nutrir um ódio genuíno por armas de fogo. Esse tipo de consequencia não era algo que acontecia normalmente com em um desenho animado da época.
E o vilão recorrente da série? David Xanatos foi uma das primeiras apresentações a vilões complexos já tentadas em um cartoon (embora o desenho do Batman tenha sua boa quota, isso deve ser dito), um para quem “vilão” talvez não seja a palavra certa para descrevê-lo com precisão. Após uma década de Dr. Robotniks, Destruídores e Esqueletos que eram maus como pica-paus apenas pelo prazer de ser mau e era isso, David Xanatos é um antagonista cujas motivações faziam sentido e cujo personagem é mais complexodo que você poderia esperar.
Sim, muitas vezes ele fez coisas terríveis apenas por lucro, mas as vezes ele fazia pelo progresso da ciência e mesmo pela segurança da sociedade. Xanatos é o conceito do Lex Luthor que o cinema nunca conseguiu executar com justiça: ele pode ser ganancioso e ambicioso, mas da forma dele o que ele tenta fazer não é mau realmente. Com efeito, em algumas ocasiões seria melhor pra todo mundo se ele tivesse sucesso. As pessoas “boas” nem sempre estão certas, e as pessoas “más” nem sempre estão erradas.
Mais importante que isso ainda é que Xanatos é um antagonista inteligente como poucas vezes se costuma escrever um personagem. Tão único era seu personagem que a TV Tropes nomeou um artigo em sua homenagem, “o gambito de Xanatos”, referindo-se à sua capacidade de fazer qualquer plano funcionar a seu favor, dessem eles certo ou não. Você luta comigo, eu te mato, eu venço; você luta comigo, você me mata, as pessoas te demonizam e eu ainda venço. Você revela meus planos e eu vou preso, eu te mostro como o sistema não funciona, eu ainda venço.
Isso é particularmente importante porque os Gargulas tem uma fraqueza muito grande para ser explorada (quer dizer, eles literalmente viram estatuas comuns e indefesas durante o dia), e um desenho menos bem escrito em embananaria com o pq o vilão apenas não apenas acaba com eles. Xanatos, nesse caso, tem um uso mais inteligente para os heróis do que apenas querer alimentar o papa-entulho.
Antagonista à parte, Gargoyles ainda apresenta continuidade no enredo, dilemas morais, até mesmo o show até introduziu um drama shakespeariano – literalmente – com Macbeth como um personagem integral e contínuo na série. Mas eu acho que você não me entendeu: não é apenas um cara chamado Macbeth. Não um episódio aleatório, escrito pelo prazer de fazer uma referencia em um desenho animado de ação. Não, este é literalmente o rei Macbeth de Shakespeare com toda sua tragédia shakespeariana e espiritualmente ligado à vida trágica de Demona depois que ela perdeu tudo o que alguém possivelmente pode perder – seu amado, sua família, sua cultura, sua fé – em uma relação de amor e ódio que se arrasta ao longo da história por séculos. Heavy stuff, dude.
Para além dos elementos de fantasia e referências a Shakespeare, a série discute de forma mais profunda questões sobre moralidade, xenofobia e racismo. Nos últimos episódios, há até um grupo de ódio chamado Quarrymen, que usa capuzes para a caçar e assassinar Gárgulas de todos os tipos. Hã, me pergunto se alguém já teve uma ideia assim no mundo real...
Nos aspectos tecnicos, a série tem valores de produção estelares. Se tem algo que os desenhos da Disney nunca mandaram mal - sejam eles bons ou não - é no quesito animação, e aqui não é exceção. Mas mais importante que isso, a dublagem do cartoon é espetacular com direito a Keith David esmerilhando com sua voz de deus grego como protagonista.
Para entender por que a série se destaca como uma das séries animadas mais ambiciosas dos anos 90, um bom lugar para começar é o episódio “Avalon Parte 2”. O segundo em uma narrativa de três partes da segunda temporada começa com uma iteração do vilão Arquimago perguntando a um doppelganger se ele tem certeza de que sabe o que fazer. Ao que o doppelganger responde: “Eu deveria… eu assisti você fazer isso.”
Esse dialogo não faz muito sentido até o final do episódio, quando as falas são repetidas para um público agora plenamente informado, que acaba de ver duas versões do mesmo personagem viajar entre os anos de 914, 984, 995, 1020 e 1995 para dar inicio a uma série de eventos que culminará com o Arquimago salvando seu eu passado da morte e levá-lo a ganhar poder imparável graças à ajuda de três bruxas etéreas inspiradas nas Irmãs Estranhas de Macbeth de Shakespeare.
E isso vindo de um canal que, até então, era basicamente conhecido por desenhos animados sobre patos.
Uou, é definitivamente... algo, não? Ma benne, como não podia deixar de ser, a série teve um jogo correspondente - dessa vez exclusivo para Mega Drive, que é o motivo de estarmos aqui hoje.