sábado, 16 de abril de 2022

[#861][MEGA] FÉRIAS FRUSTRADAS DO PICA-PAU [Outubro de 1995]

Eis aqui um jogo ruim, horrendo, catastrófico... que é diferente do que trabalhamos aqui habitualmente. Isso porque normalmente jogos ruins são feitos por caras que realmente estão pouco ou nada se fodendo para o jogo. O bom e velho "taca qualquer bosta que esses trouxas só vão perceber quando eu já estiver com o dinheiro no bolso" pelo qual a Ocean, por exemplo, é tão conhecida. Outra categoria de jogo ruim são os lixos europeus, mas isso é mais por uma limitação técnica já que os coitados tinham para trabalhar lixos termonucleares como o Amiga ou ZX-Spectrum. Enfim, esses são os tipos de jogos ruins que eu normalmente encontro por aqui, mas o de hoje não é isso.

O jogo terrível de hoje é um jogo que genuinamente estava tentando acertar, que queria muito acertar e não conseguiu por pura falta de conhecimento tecnico, de experiencia mesmo. Mas a boa intenção estava lá. Como eu sei disso? Bem simples, o jogo de hoje é o primeiro jogo para consoles feito 100% no Brasil em todos os tempos.

Por algum motivo, a intro do jogo só aparece rodando direto no cartucho original. A ROM que tem na internet não tem essa parte

Isso porque até esse momento, a Tec Toy (que era a representante da Sega no Brasil) volta e meia adaptava algum jogo com figuras nacionais (como ASTERIX AND THE SECRET MISSION que virou "As Aventuras da TV Colosso"), porém em 1996 eles foram audaciosamente onde nenhum huehuebr jamais havia ido: fazer um jogo do zero. Enquanto hoje não é incomum ver jogos nacionais de alta qualidade como Chroma Squad, Horizon Chase ou Blazing Chrome, foi aqui que tudo realmente começou.

E para esse começo, bem a escolha do titulo não é realmente ruim. Quer dizer, embora o Pica-Pau não seja um personagem brasileiro, ele basicamente só é popular no Brasil - então se brasileiros não fizessem um jogo do nosso amigo rachador, ninguém mais o faria.


O motivo para isso é bastante simples até: quando estourou a grande febre de que todos os estúdios iriam ter o seu mascote em curtas-metragens cartoon que acabaram virando os "desenhos clássicos" como Tom e Jerry (da MGM), Looney Tunes (da Warner) ou Mickey Mouse (da Disney), a entrada da Universal Studios nessa modinha foi com o Pica-Pau... que fez consideravelmente menos sucesso que seus pares da época.

Não que Pica-Pau seja inteiramente desconhecido no exterior, ou mesmo obscuro, mas definitivamente é um cartoon de segunda ou terceira prateleira junto com Gato Felix ou, sei lá, Betty Boop. Tanto que a Universal hoje tem uma area para o Pica-Pau no seu parque temático, mas os americanos são mais tipo "ah, isso existe, okay".


O projeto inicial era que o Pica-Pau fosse usado em um episódio do Andy Panda (a série principal da Universal até então) como antagonista. O que surgiu, então, foi aquilo que os brasileiros chamam de “Pica-Pau biruta”. 

De fato: ele era um completo psicopata, sem dentes, como se ele fosse o fugitivo de um hospício. Não era um personagem feito para agradar, mas para incomodar. Mesmo assim (ou melhor, justamente por conta disso), ele surgiu com tanta personalidade que ofuscou o próprio panda e se tornou o protagonista da série. Ainda sim o publico americano achou ele meio cuzão, então whatever.


Tipo o episódio que o Pica-Pau aterroriza o cara com uma navalha por razão nenhuma por três minutos inteiros. Sério, o cara não fez absolutamente nada pra ele, apenas o Pica-Pau é um psicopata maluco.

Já no Brasil a história é inteiramente diferente. Isso porque a primeira rede de televisão a existir no Brasil foi a TV Tupi, inaugurada em 1950. E em sua grade de programação estava qual desenho animado (que na época passava legendado)? Exatamente, o Pica-Pau foi o primeiro desenho animado a passar na televisão brasileira.

Então durante setenta anos o Brasil tem assistido esse desenho repetidamente (depois que a TV Tupi foi pro vinagre, o SBT assumiu o manto de reprisar o Pica-Pau a exaustão e depois disso a Record), ao ponto que o Pica-Pau é um patrimonio cultural brasileiro. Isso não é opinião só minha e sim da própria Universal: o único país em que o filme do Pica-Pau foi lançado no cinema, em todo o resto do mundo saiu direto pra DVD sem muito alarde... o mundo perdeu algo com isso? Não, mas esse não é o ponto aqui.

Seja como for... onde eu estava? Ah sim, então o Pica-Pau patrimonio nacional foi escolhido para ser o primeiro jogo nacional ever. O que é realmente legal, nota 10 pela intenção... pela execução, no entanto, meua migo...

Nossa história aqui é que Pica-Pau e sua turma estão dando um rolê de férias. Zeca Urubu, no entanto, ficou ofendido porque não foi convidado. Então, em um ato de retaliação completamente compreensível e nada desproporcional, Zeca Urubu sequestra todos os amigos do Pica-Pau e ameaça matá-los (especificamente citando que vai serrar o Andy Panda ao meio). 

Uau, nossa, realmente é uma surpresa incompreensível que ninguém te convide pros passeios, heim Zecão da Massa? Bem, seja como for cabe ao nosso pica-pau maluco salvar o dia.

A jogabilidade é o que você poderia esperar de um jogo da época: vá até a direita para terminar a fase, você pula e tem um ataque de bicada. De vez em quando, o jogo apresenta algumas novas ideias para deixar as coisas interessantes: no nível dois, a casa do Leoncio sonâmbulo, Pica-Pau recebe uma buzina que ele pode usar para assustar o mamífero adormecido. Os níveis posteriores incluem um passeio em uma lancha e (pelo menos no modo difícil) uma seção de esqui nos alpes.

O legal é que todas essas coisas são baseadas em episódios do Pica-Pau, como o próprio Leoncio sonambulo, ou o episódio do Pica-Pau esquiador. Um dos inimigos recorrentes do jogo, por exemplo, é o cachorro Alfinho - mais conhecido pelo clássico "Cachorro? Não, esse é o meu lanche... QUIETO LANCHE!"

BOCHICHOOOOOOOOORNIAAAAAA!!!

Então as ideias não são ruins realmente, o jogo tenta oferecer alguma variedade e definitivamente foi feito por pessoas que fizeram a lição de casa. Novamente, nota 10 pela intenção, já a execução...

Isso tudo seria muito bom se os controles não fossem horrivelmente quebrados. Os controles de pulo são a pior coisa que eu já vi na minha vida, incluído aí abominações como INDIANA JONES AND THE LAST CRUSADE do Master System. A forma mais honesta que eu consigo descrever essa atrocidade é que se o Pica-Pau estiver parado ele apenas pula para cima. 

Ele só pula para frente se estiver andando, só que se isso não fosse ruim o suficiente (porque a sensação de jogar é que tem uma ancora amarrada no pé do personagem), ele praticamente voa pela tela porque sua velocidade de salto é muito mais rápida do que sua caminhada padrão. Portanto, é praticamente impossível fazer um salto sem esbarrar acidentalmente em algo. 


Não que esbarrar nos inimigos seja a pior coisa possível porque... A BARRA DE ENERGIA AS VEZES CONSIDERA O DANO QUE VOCÊ TOMOU, AS VEZES NÃO. Eu já vi muita coisa na minha vida, mas um jogo que não mantém registro do dano é algo inédito. As vezes você pode tomar uns 20 hits e o jogo se embananar para descontar sua vida... caralho amigo, isso é o básico do básico de um jogo!

Além disso, sempre que o Pica-Pau recebe uma ferramenta extra (como a buzina acima mencionada ou, em outro nível, um pincel), ele só pode utilizá-la pressionando simultaneamente A+B. Isso é nem sempre funciona (obvio), mas o estranho é que o botão A não faz nada no jogo. Tipo, tem um botão sobrando que não faz nada, a única função dele é ativar o item se você apertar junto com B. Pq não simplesmente colocar o item no A? Pra que colocar ele num combo que o jogo nem sempre registra? Que estranho...

O level design consegue a façanha de ser ao mesmo tempo simplório e horrível. Apesar do jogo ser o básico do básico (praticamente só ir pra direita), os inimigos (especialmente os com ataques de projéteis, como esquilos arremessadores de nozes) geralmente são colocados de tal forma que, uma vez que aparecem na tela, você não pode evitar ser atingido por eles. 

E os que não arremessam ficam num lugar que não tem como você pular sem bater neles e tomar knockback pra um buraco - sério, o uso de buracos nesse jogo empalidece NINJA GAIDEN. Além disso, alguns inimigos (como os morcegos nos estágios dois e seis) de repente começam a spawnar do nada, apenas pq foda-se vc, apenas por isso. 

E quando o jogo não está sendo incrivelmente básico... vc desejaria que estivesse. Por exemplo, na segunda seção do estágio um, depois de passar por muitos buracos onde uma queda leva à morte certa (o que, devido à mecânica de salto terrível somada ao posicionamento dos inimigos com knockback, é muito comum), você chega a um beco sem saída. 

O que você tem que fazer é bicar uma árvore sem motivo nenhum em um pixel muito especifico (ela é apenas cenário, não tem nenhuma indicação disso e em nenhum outro momento do jogo nada parecido acontece), quando recebe uma dica: “O primeiro salto é o mais difícil”.

O que o jogo quer dizer com isso é que depois de ver essa mensagem uma seta vai apontar um buraco. Você precisa cair NO OUTRO. Assim... o que? Como? Mas... mas... sério Tec Toy, sério...

A placa aponta pra direita, mas o buraco certo é o da esquerda porque foda-se você

Na outras partes o jogo não tenta ser tão "criativo", mas não é realmente muito melhor. A parte de esqui, por exemplo, é apenas uma longa e chata ladeira, que desce em linha reta sem curvas, sem inclinações, nada. Você tem que pular para evitar rochas que causam dano ou cair em buracos, tudo em uma velocidade vertiginosa não encontrada anteriormente. E por aí vai.

Os gráficos também não são tão impressionantes. O jogo usa um estilo simples de desenho animado, o que não é ruim per se, mas não tem sem nenhum tipo de sombreamento ou efeitos especiais. O uso de cores é bem fraco, mesmo para os padrões já baixos do Mega Drive. Parece realmente que esse jogo foi desenhado no paint.


O som é a única coisa que eu não odiei nesse jogo, não apenas dá pra reconhecer a música tema do desenho como o som não machuca seus ouvidos. Vindo do chip de som do Mega Drive, qualquer coisa que não faça os ouvidos sairem sangrando como uma virgem em um pornozão underground alemão, eu to comemorando.

Enfim, gráficos abaixo da média, design de nível ruim, controles quebrados - esse jogo é o puro suco do jogo ruim, como se os seus desenvolvedores nunca tivessem feito um jogo na vida ou sequer tivessem alguém para quem perguntar... e é por isso que eu não consigo odiar esse jogo realmente. É um dos piores jogos já feito em todos os tempos e definitivamente um dos top 5 piores do Mega Drive? Definitivamente é.


Mas poxa, os caras tavam realmente tentando fazer um jogo do zero em uma metade do mundo que ninguém fazia ideia de como fazer isso, eles estavam literalmente tateando no escuro, aprendendo enquanto faziam. Se você é um desenvolvedor europeu, na pior das hipoteses vc pode pegar meia hora de trem e ir bater na porta da Rare tirar duvidas. Nos Estados Unidos idem. No Japão então... mas a Tec Toy tava só ela e Deus no sertão. 

E isso em um tempo que a internet era uma coisa artesanal ainda. Hoje qualquer coisa que você quiser fazer tem um tutorial passo-a-passo no youtube, até uma neurocirurgia tem um FAQ em algum lugar, mas em 1995 ... o sistema era bruto, amigo.


Então mesmo que mal, péssima, terrivelmente executado, você pode ver que muito pensamento entrou no jogo. Os programadores se esforçaram muito para não criar um jogo de plataforma padrão e comum, mas sim trazer uma nova variedade para o campo. O jogo pode ser difícil, pode ser quebrado, pode ser – em uma alusão involuntariamente ambígua ao seu próprio título – imensamente frustrante.... mas eles certamente erraram tentando acertar!

De boas intenções ...

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 108 (Outubro de 1996)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 022 (Janeiro de 1996)