Existem dois tipos de pessoas neste mundo: aqueles que jogaram Total Annihilation de 1997, um dos RTS mais famosos decada, aqueles que como eu, conheceram a franquia através de Total Annihilation: Kingdoms de 1999 — um spin-off bizarro e quebrado, e aqueles que não sabem como usar números em uma enumeração.
Bem, seja como for, vamos colocar assim: se Total Annihilation é um RTS polido e refinado para dar ao jogador uma experiencia bastante satisfatória na ambição de competir com os grandes títulos dominantes do mercado (WARCRAFT 2: THE DARK SAGA e COMMAND AND CONQUER RED ALERT), seu spin-off é o protótipo em que alguém derramou café antes de sair para o trabalho.
ESSAS TUAS COMPARAÇÕES ESTÃO FAZENDO CADA VEZ MENOS SENTIDO, SABIA DISSO?
Ainda fazem mais sentido que o balanceamento desse jogo, acredite. Vamos a isso então.
Diferente do jogo original, que é um jogo de guerra futurista em que robôs lutam entre si, esse spin-off é ambientado no mundo de fantasia de Tuxedo Mask Darien, Aniquilação Total: Reinos segue quatro reis-feiticeiros que também são irmãos. Naturalmente, por serem parentes, eles devem se resolver através de uma guerra total até a morte - o que ainda é mais civilizado do que uma ceia de natal em que alguém começa a falar de política.
Pense em um Warhammer reverso, onde a versão futurista high tech veio antes da fantasia medieval. Seja como for, o que importa é que existem então 4 reinos, cada um com seu campeão de habilidades únicas - vamos conhece-los mais de perto, sim?
Elsin é o garoto-propaganda da fantasia medieval: um cavaleiro nobre de queixo largo que tem a magia definitiva: atirar uma pedra com muita força. Seus inimigos se encolhem diante do poder todo-poderoso da geologia. Seu reino é Aramon, que representa os humanos medievais clássicos.
Sua principal estratégia de combate é construir trebuchets e dispare do outro lado do mapa. Esses monstros de longo alcance podem atacar de tão longe que você frequentemente vencerá batalhas antes mesmo de ver seu oponente. É como jogar um FPS com um sniper rifle que atira através de paredes.
Kirenna comanda a facção aquática e é a orgulhosa dona do livro de feitiços mais inútil da história do RTS. Imagine uma rainha onipotente cujo melhor truque é virar uma sereia feia e falar com peixes. A cruza de Ariel da Shopee com Aquaman é a predadora mais mortal do oceano, senhoras e senhores.
Seu reino é Veruna, a facção naval, que domina batalhas aquáticas — até que eles encontram Zhon, cujas unidades podem andar debaixo d'água e socar navios até a morte. Isso mesmo, Veruna não é derrotada por poder de fogo, mas por monstros marinhos que literalmente dão socos nos seus navios.
Lokken, o velho e senil, é o governante do fogo e da escuridão, o que seria impressionante se ele não tivesse a habilidade única de desaparecer aleatoriamente — assim como seu pai quando foi comprar cigarro 25 anos atrás.
Seu reino Taros é a facção de vilões malignos do mal que odeiam o bem. Nossos camaradas que compõe 98,97% da Sonserina não se importam com conceitos triviais como "misericórdia" ou "ética". A estratégia principal deles consiste em tacar fogo em tudo que veem pela frente, salgar a terra, invocar demônios e bloquear a visão da tela com um engarrafamento de tapetes voadores.
Thirsha comanda as forças aéreas e é, francamente, a única personagem divertida de se jogar: ela bombardeia inimigos, aterroriza tropas terrestres e, o melhor de tudo, não é a Kirenna.
Seu reino é Zhon, a facção sem construções, apenas um exército de furries e lagartos correndo soltos pelo mapa. Eles jogam como um ataque de guerrilha sem fim, constantemente invocando mais pesadelos antropomórficos enquanto você questiona suas escolhas de vida.
Por último, literalmente, temos Creon - a facção de expansão. Eles são um bando de robôs steampunk e, embora sua estética seja fantástica, eles têm apenas cinco unidades únicas. Seu líder está morto, mas, de alguma forma, eles ainda são mais bem administrados do que as forças de Kirenna.
Como dá pra ver, cada líder comanda uma facção com habilidades únicas, sendo que tudo nesse jogo funciona a base de mana, que é coletada da terra. Parece um conceito simples, mas você ficaria surpreso em como esse jogo consegue quebrar de tal maneira com uma ideia tão básica por um motivo bem simples: toda sua mana vem de um único cristal, se você perder acesso a ele você perdeu o jogo.
Isso não parece tão terrível até você entender o que isso representa na prática: imagine um RTS onde todos seus recursos vem de uma única mina. Se por qualquer motivo o inimigo matar seus peões entrando e saindo nela, você perde acesso a todos os recursos do jogo. Game design campeão, chapas.
Adicione a isso que, para um jogo que se baseia apenas em um único recurso, a UI consegue ser incrivelmente pouco intuitiva, desorganizada e confusa - especialmente se comparada aos outros RTS da época.
Vamos então deixar uma coisa bem clara: se você está procurando uma experiência RTS equilibrada e intuitiva, Total Annihilation: Kingdoms não é nada remotamente como isso. A mecânica do jogo varia de levemente irritante a totalmente sádica. Embora a ideia de quatro reinos distintos com estilos de jogo únicos seja uma ideia atraente, o equilíbrio entre elas é pavorosa. Coisas como os trebuchets de Aramon conseguem snipear qualquer lugar do mapa ou as unidades navais de Veruna não conseguirem contraatacar os monstros de Zhon socando seus navios meio que configuram na categoria "uau, eles ao menos testaram esse jogo?"
Não fosse isso agravante o bastante, o Pathfinding é uma piada: suas unidades ficarão presas nos terrenos, objetos, outras unidades e até mesmo nelas mesmas. Você pode comandar seu exército para avançar, apenas para vê-los tentar passar por um espaço estreito como se fosse alguém tentando chegar na saída do buzão das 18:30 antes da sua parada chegar.
E se as unidades se movimentam mal na terra, saiba você que as unidades aéreas têm a manobrabilidade de um pombo bêbado. Se eles errarem um alvo, eles não vão apenas dar meia volta ou vão tentar manobrar como alguém são faria, claro que não: elas vão cruzar uma cadeia de montanhas inteira, voltarão em um ângulo completamente inútil e finalmente atacarão novamente — nesse ponto, seu alvo provavelmente já morreu de velhice. E provavelmente vão errar de novo.
A IA trapaceia tão descaradamente que nem tenta esconder. O computador pode ver o mapa inteiro o tempo todo, o que significa que nunca precisa de batedores. Enquanto isso, você estará spammeando papagaios para tirar o Fog of War do mapa — papagaios que, devo acrescentar, gritam em um volume tão alto e tão agudo que foi concebido por alguém com 5 tipos de ódio por canais auditivos.
Apesar de todas as suas falhas de jogabilidade, Kingdoms tem uma trilha sonora legitimamente fantástica. A trilha sonora orquestral é épica demais para o que é, uma tech demo glorificada para escolhas de design ruins. A dublagem também é estranhamente boa, o que é uma pena porque a maior parte dela é abafada pelos sons de pássaros gritando e soldados morrendo em agonia.
Este jogo é o que acontece quando alguém tem uma ideia brilhante, mas esquece a parte da "jogabilidade" do game design. É uma experiência enigmática, desequilibrada e frequentemente irritante que existe no estranho limbo de ser totalmente quebrada e estranhamente hipnótica por ver o quão ruim realmente pode ser. Você não joga Total Annihilation: Kingdoms para vencer — você joga porque, no fundo, sabe que o sofrimento constrói o caráter.
TA:K funciona para quem tem um amor masoquista por jogos RTS, uma alta tolerância ao caos ou traumas de infância não resolvidos, com certeza. Se você prefere um jogo de estratégia justo e bem projetado... então talvez você deveria jogar literalmente qualquer outra coisa.
A relevancia cultural de TA:K vem mais do fato que esse era um DAQUELES jogos que vinham de brinde toda hora das revistas CD Expert da vida, de modo que para muita gente esse jogo não é apenas um jogo. É um lembrete de uma época em que as coisas eram mais simples — quando éramos jovens, ingênuos e dispostos a suportar qualquer coisa só para jogar algo diferente. E um dia, quando tudo o que resta de nossas memórias for uma vaga lembrança de papagaios gritando e exércitos presos em árvores, olharemos para trás e sorriremos. E então desligaremos nossos alto-falantes, porque esses papagaios ainda gritam agudo pra caralho.
Nota final do jogo: "O estúdio decretou falência logo após o lançamento"/10
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 066 (Setembro de 1999)