sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

[#1405][Ago/1999] SHADOW MAN

Este blog está repleto de histórias de terror sobre empresas especializadas em serem... bem, um amontoado de executivos de videogames que executivavam executivamente—sem a menor conexão com o público para quem vendiam ou com os desenvolvedores com quem trabalhavam. Sabe aquele executivo satirizado em WAYNE'S WORLD? Pois algumas dessas empresas pareciam compostas inteiramente por legiões desses caras.


Como eu disse, já dediquei ALGUMAS horas da minha vida relatando os perrengues que LJN, Ocean e Electronic Arts me fizeram passar com suas decisões executivescas. Mas se existe uma empresa tão ruim quanto essas, talvez até pior, e cuja história de ascensão e queda eu nunca explorei a fundo, essa empresa é a Acclaim. E poucas histórias ilustram tão bem tudo o que havia de errado com a Acclaim nos anos 90 quanto o verdadeiro conto de terror que foi a produção de Shadow Man.

Spoiler: deu muito, muito errado.

Meu PTSD com Simpsons é culpa da Acclaim, o que eu sofri na mão desses caras...

Nossa história começa em 1994, quando a Acclaim estava no topo do seu jogo. Depois do sucesso inumano dos ports caseiros de MORTAL KOMBAT e MORTAL KOMBAT 2, seguido pelo outro estouro de vendas que foi NBA JAM, a empresa estava nadando em dinheiro—literalmente sem saber o que fazer com tanto lucro entrando. Isso, claro, atraiu ainda mais investidores, como a Telecommunications Incorporated, que despejou ainda mais grana na festa.

Então, com cofres transbordando, a Acclaim fez o que qualquer empresa inteligente e financeiramente responsável faria: torrou tudo como se não houvesse amanhã.


Agora, gastar uma fortuna que parecia infinita exigia um certo nível de criatividade. (In)felizmente, se tem uma coisa que nunca faltou à Acclaim, foi criatividade para fazer caquinha. Na época, os quadrinhos ainda estavam em alta, e um comitê da alta administração teve uma brilhante ideia: investir pesadamente nesse mercado. E por "pesadamente", eu quero dizer 75 milhões de dólares pela Valiant Comics.

POR QUEM?!

Exatamente meu ponto. Setenta e cinco milhões por uma editora da terceira ou quarta prateleira da cena dos quadrinhos não é uma decisão que qualquer um tomaria sem pensar muito bem... a menos que você fosse a Acclaim. Provavelmente, eles teriam comprado a DC ou a Marvel se tivessem caixa para isso—mas nem Mortal Kombat vendeu tanto assim..


Só que, como a incompetência atrai azar, a Acclaim escolheu o pior momento possível para investir em quadrinhos. Não muito depois da aquisição... a bolha dos quadrinhos estourou.

Já contei essa história em mais detalhes antes (vide minha review de THE DEATH AND RETURN OF SUPERMAN para o drama completo), mas, resumindo, a bolha dos quadrinhos dos anos 90 foi um fenômeno de especulação onde colecionadores e investidores compravam HQs em massa, acreditando que elas se tornariam raras e valiosas no futuro.

Era comum a mentalidade de "vou pagar a faculdade do meu filho com essa edição especial de Homem-Chumbrega daqui a 20 anos". Editoras como Marvel e DC alimentaram essa ilusão lançando capas variantes, edições especiais e tiragens absurdamente altas, criando uma falsa sensação de exclusividade. Mas, eventualmente, os investidores perceberam que ninguém ia ficar rico se todo mundo tinha cinco cópias da mesma HQ guardadas no armário. Quando os preços não se valorizaram como esperado, a bolha estourou, levando à falência de muitas lojas e atingindo até gigantes como a Marvel, que declarou falência em 1996.(que só não fechou as portas porque vendeu os direitos dos seus personagens para os estúdios de cinema, embora essa história seja bem mais conhecida)


Voltando a nossa história, então, sim, a Acclaim não iria de forma alguma recuperar o dinheiro investido na Valiant, porém nem tudo estava perdido. Ao menos eles ainda tinham em mãos um catálogo bastante rico de personagens de quadrinhos para basear futuros videogames.

A primeira dessas empreitadas foi uma relativamente até bem sucedida: TUROK: Dinosaur Hunter. Quer dizer, eu não sou o maior fã do mundo desse jogo, mas não posso negar que ele foi bem recebido pelos fãs de Nintendo 64 secos por um FPS no seu console. Enquanto isso, a Acclaim não parava de gastar dinheiro e continuou fazendo outras aquisições no mundo dos jogos, como a Optimus Software - uma empresa que honestamente não fez muita coisa além de QUATTRO ARCADE  e uma porrada de jogos para o Amiga.

Porém, uma vez que a Acclaim os comprou, eles foram colocados para trabalhar ajudando a Iguana com ports de BATMAN FOREVER (o arcade insano, não o jogo terrível de PS1) e a versão de FORSAKEN para N64... sim, aquele da capa mais famosa que o jogo. Eles foram então renomeados como Acclaim Teesside e receberam a oportunidade de iniciar seu próximo projeto, que se imaginava que seria o próximo Turok. O que não foi bem o que aconteceu.

A Acclaim mandou um monte de quadrinhos da Valiant para o estúdio e pediu que escolhessem algum título para transformar em jogo. Os caras da Acclaim Teesside acabaram escolhendo Shadow Man—o que fazia todo o sentido. O protagonista era estiloso, a história sombria e violenta combinava perfeitamente com videogames, e, convenhamos, Shadow Man era basicamente o "SPAWN do homem pobre". Numa época em que o Soldado do Inferno era a coisa mais quente nas bancas, isso queria dizer alguma coisa.


VIU? A ACCLAIM NEM ERA TÃO RUIM, ELES ATÉ DEIXARAM O ESTÚDIO ESCOLHER NO QUE TRABALHAR!

Certo... exceto que, quando levaram a ideia para a Acclaim, os executivos adoraram a ideia de um jogo de Shadow Man—mas como uma IP para competir com Resident Evil.


Os caras da Teesside, obviamente, ficaram no "what the actual fuck?!?". Fazer de Shadow Man um survival horror não era bem o que eles tinham em mente... mas boa sorte tentando argumentar com executivos que só enxergavam gráficos de popularidade em 1996.

Independentemente de como começou, a Teesside abraçou a proposta, vendo em Shadow Man a grande chance de deixar seu nome na história dos videogames. Não é todo dia que se tem a oportunidade de trabalhar em uma IP nova, financiada por uma grande publisher—e ainda por cima baseada em uma história excelente, escrita por um cara absolutamente fora da curva como Garth Ennis.

O mano tem estilo, isso não pode ser tirado dele

Em qualquer publisher minimamente sã, esse seria o final feliz da história. Mas estamos falando da Acclaim, então... claro que não.

A empresa decidiu que, enquanto a Teesside trabalhava em Shadow Man, eles também deveriam iniciar a pré-produção de outra adaptação de quadrinhos da Valiant. Porque, obviamente, tudo o que um estúdio pequeno precisa é ter seu time dividido em dois da noite para o dia—o que poderia dar errado?

E assim, além de Shadow Man, a Teesside também teve que começar o desenvolvimento de um jogo de Bloodshot. Porque, por algum motivo, a Acclaim acreditava que havia uma demanda gigantesca por um jogo do homem pálido com um alvo vermelho no peito que atira com armas—além do Vin Diesel comprando todas as HQs sozinho, claro.


Seja como for, a ideia é que Bloodshot seria um jogo de PlayStation e Shadowman estava originalmente sendo projetado apenas para o PC, já que a Acclaim sentia que precisava de mais produtos exclusivos para essa plataforma. Só que com com o sucesso de Turok no Nintendo Ultra 64, a Acclaim de repente mudou de ideia e decidiu um port de Nintendo 64 à carga de trabalho da Teesside. 

Isso, é claro, exigiria que parte do time (que já havia sido dividido) teria que parar de trabalhar no jogo original adaptar o jogo para rodar na "fun machine" da Nintendo - que tem uma arquitetura de programação totalmente própria. Então o pequeno time da Teeside havia sido dividido duas vezes, trabalhando em três projetos diferentes ao mesmo tempo... e calma que fica pior ainda.

Em algum momento no final de 1998, a Acclaim decidiu que uma versão para Dreamcast seria uma ótima ideia, já que o lançamento do último console da Sega se alinharia bem com o cronograma de Shadow Man. Assim, a equipe foi dividida mais uma vez para tocar o quarto projeto simultâneo.


Agora, justiça seja feita: a arquitetura do Dreamcast era mais parecida com a de um PC, o que tornava a adaptação menos traumática. O problema? Ninguém da Teesside - ou no planeta Terra - tinha experiência com programar para o console, então levaria tempo e mão de obra—duas coisas que já estavam em falta.

Ao menos, para compensar, a Acclaim deu à equipe tempo extra para garantir que esses ports saíssem em boas condições. O jogo original para PC estava praticamente pronto, então a decisão foi… segurar o lançamento indefinidamente até que as versões de N64 e Dreamcast avançassem o suficiente para um lançamento simultâneo. Sim, você leu certo. O jogo pronto ficou na geladeira por meses.


Normalmente, o processo funciona diferente: um estúdio trabalha na versão principal e lança quando ficar pronto, enquanto equipes menores fazem os ports porque um jogo parado sem vender é dinheiro que não está entrando. Mas, como estamos falando da Acclaim, é claro que eles escolheram a abordagem mais caótica possível.

Ainda assim, apesar de toda essa insanidade, as coisas estavam indo relativamente bem para a Teesside. Até que deu uma merda federal, no mundo real dessa vez.


Em abril de 1999, o Massacre de Columbine aconteceu, e políticos (e outros idiotas) rapidamente culparam os videogames pela tragédia. A Acclaim, que já tinha seu nome atrelado a jogos violentos por causa de Mortal Kombat, virou um dos principais alvos. Seu então CEO, Greg Fischbach, chegou até a ser convocado para uma audiência no Senado. Sob pressão, a empresa revisou sua lista de lançamentos futuros e tomou algumas… decisões drásticas.

A primeira vítima foi o jogo de Bloodshot para PlayStation, que foi simplesmente cancelado—violento demais, armas demais, polêmica demais. Já Shadow Man, que estava praticamente pronto, teve que voltar para a prancheta e ser quase inteiramente refeito em poucos meses. A violência e o sangue foram reduzidos drasticamente para tornar o jogo mais fantasioso e, assim, evitar problemas com a Associação das Mães Desocupadas da América.

Com o jogo de Bloodshot cancelado e nada planejado para o PlayStation, e com Shadow Man voltando para o desenvolvimento para edições, a Acclaim decidiu que essa era a oportunidade perfeita para transformar Shadow Man no jogo de ação e tiro em terceira pessoa que Bloodshot deveria ter sido... o que significava que um novo port seria feito, dessa vez para PS1. Bota mais um na conta da Teeside.

Só que foi pior do que apenas fazer o terceiro port diferente do jogo, porque algum executivo que nunca escreveu uma linha de código na vida achou que era "só" fazer algumas adaptações para mudar o gênero do jogo e fazer de Shadow Man o jogo de tiro em terceira pessoa que Bloodshot deveria ter sido —porque, claro, é só trocar uns botões aqui e ali, né?

Obviamente, não funciona desse jeito.

A essa altura, a equipe da Teesside já tinha abandonado luxos supérfluos como dormir ou ter uma vida. Nos meses seguintes, eles se mataram para transformar Shadow Man em um jogo de tiro enquanto tentavam corrigir bugs nas novas linhas de código como se suas vidas dependessem disso - além de retrabalhar os ports de N64, Dreamcast e criar um port para PS1. Qualquer um com o mínimo de noção de programação sabe que seria mais fácil começar do zero do que remendar um jogo já praticamente finalizado, mas tempo era algo que eles definitivamente não tinham.


Um exemplo claro desse pesadelo foi a quantidade de cortes apressados que tiveram que fazer para conseguir lançar o jogo. Dos 600 efeitos sonoros originalmente criados, apenas 90 chegaram à versão final—não porque os outros eram ruins, mas porque simplesmente não havia tempo para comprimir e implementar todos no novo código. E isso foi só uma das muitas dores de cabeça técnicas que a equipe teve que resolver na base da gambiarra.

Por tudo isso que eu contei até aqui, então se Shadow Man merece ser lembrado por alguma coisa, é provavelmente por esse jogo sequer existir. Considerando o caos absoluto de seu desenvolvimento, o fato de que este jogo pelo menos sequer inicializa e não explode em bugs é quase um milagre. Mas isso o torna um bom jogo? Bem... não exatamente.

Em sua essência, Shadow Man é um Metroidvania 3D com alguns elementos leves de ação. Você corre, pula, nada, escala e aperta interruptores para desbloquear novas áreas. Tudo isso é bem padrão, mas o que não é padrão é a completa falta de um mapa no jogo. Em um gênero que vive e morre por retrocesso, não ter um mapa significa que você vai se perder. Muito. E não ajuda que o jogo se recuse a lhe dar qualquer tipo de lista de objetivos ou orientação para onde ir além de dicas vagas.


O enredo — supondo que você consiga segui-lo — é baseado na série de quadrinhos Shadow Man, mas se você não estiver familiarizado com o material de origem, boa sorte para juntá-lo. O jogo apresenta o mundo de Deadside, Liveside e serial killers que precisam ser parados, mas faz isso com o mínimo de explicação, assumindo que você já sabe o que está acontecendo e principalmente quem são aquelas pessoas.

Falando em confusão, Shadow Man adora jogar você em desafios para os quais não está nem perto de estar preparado. Um ótimo exemplo disso são os retratores — itens usados para abrir os cadáveres dos serial killers em Deadside. Você pode encontrá-los logo no início e seguir direto para Liveside, acreditando que já pode enfrentar os bosses. Quer dizer, você achou o item que os torna vulneráveis, então é só ir lá e meter pipoco, certo?

Então… não. Sem antes realizar um ritual para se tornar completamente o Shadow Man, suas armas não causam dano algum. Só que o jogo não só deixa de avisar que esse ritual existe, como também não dá qualquer pista de que você precisa realizá-lo. Passei 15 minutos descarregando balas em um dos serial killers sem efeito, até recorrer a um detonado e descobrir que precisava encontrar três itens essenciais para desbloquear meus poderes de vodu. Shadow Man simplesmente presume que você vai adivinhar isso sozinho.


A jogabilidade em si é... okay? Não tem nada particularmente errado sobre a mecânica, o level design ou o combate, apenas... não tem nada particularmente interessante também. As armas não são tão empolgantes, e enquanto a atmosfera é apropriadamente sombria e a vibe do jogo é única, a jogabilidade real momento a momento parece vazia e repetitiva. Ele nunca faz nada errado por si só, mas também nunca faz nada particularmente certo.

Então, qual é o veredito final? Shadow Man é, de muitas maneiras, um milagre. Dado seu desenvolvimento absolutamente desastroso, o fato de que ele funciona como um jogo jogável é impressionante. Mas é aí que os elogios terminam. É uma experiência funcional, mas sem inspiração — um jogo que simplesmente existe, sem muito para realmente se destacar. Se você é fã de quadrinhos muito underground ou tem nostalgia pelas estranhezas do final dos anos 90, pode valer a pena dar uma olhada. Mas para todos os outros, Shadow Man é pouco mais do que um testemunho interativo dos desastres da Acclaim — um jogo mais propenso a te deixar perdido do que entretido.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
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