terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

[#1409][Fev/2000] FEAR EFFECT


No silêncio do mundo em ruínas, ele vaga pelos restos esqueléticos do que antes fora uma cidade próspera, seu coração pesado de arrependimento. O peso de suas escolhas o oprimia como o céu cheio de cinzas acima. Ele tinha tido tanta certeza, tão arrogante em sua crença de que poderia controlar o incontrolável, que suas ações salvariam a  humanidade — não a destruiriam.

Mas o jogo que ele construiu, os sistemas que ele colocou em movimento, o dano que ele causara tinha se espalhado muito além de seu alcance. Agora, a terra estava estéril, o ar tóxico e os poucos sobreviventes espalhados e quebrados. Ele se ajoelhou na poeira, segurando um medalhão enferrujado — uma relíquia de uma vida há muito perdida — e sussurrou desculpas aos fantasmas de um mundo que ele havia condenado. Se ao menos ele tivesse ouvido, se ao menos tivesse visto as consequências, talvez essa desolação pudesse ter sido evitada. Mas era tarde demais. O mundo se foi, e ele foi deixado para viver com a culpa de ter feito o pior jogo de luta de todos os temos.

Pois ele trabalhara na Kronos Enterteinment, e fora um dos responsáveis por punir o mundo com a chaga que atende pelo nome de CRITICOM.


Nossa história de hoje começa nos úmidos porões do lugar mais aberrante dos anos 90: a Kronos Entertainment. Como já citado, essa infame desenvolvedora foi responsável pelo mais sarnento, pestilento, arruaceiro, gato polar jogo de luta de todos os tempos. Verdade que seu jogo seguinte, DARK RIFT, não era tão ruim assim e em alguns momentos era quase decente... porém uma mácula dessas é uma mancha que não se apaga.

Onde quer que eles fossem, neles estaria brandida a marca de "foram os caras que fizeram CRITICOM!". As pessoas jogariam frutas podres neles por onde eles passassem (o que me faz questionar a quantidade de gente que anda por aí com frutas podres "just in case", mas divago). Mães developers aterrorizariam seus filhos developers dizendo que, se não se comportassem, acabariam fazendo um jogo como  CRITICOM. Você sabe, o pacote completo.

Exageros meus a parte, é realmente importante que você entenda o que é CRITICOM para que eu possa chegar onde eu quero chegar. Então, apenas para o bem do argumento, imagine um jogo tão travado que faz dar de cara em uma parede parecer uma decisão tática. Os controles tão lentos, os gráficos parecem ter sido desenhados por alguém que nunca viu um ser humano, e a IA realmente parece se perguntar o que diabos ela está fazendo ali. É tão ruim que jogar CRITICOM é praticamente um rito de passagem para gamers masoquistas. Você não foi ao fundo do poço, você É o fundo do poço.


Agora, imagine que, apenas quatro anos depois, os mesmos caras lançam Fear Effect, um jogo que se tornou um clássico cult. Direção de arte arrojada, escolhas de design inteligentes — jamais você diria que foi feito pela mesma empresa. É como ir de servir burritos requentados no micro-ondas no banheiro de uma rodoviária a administrar um restaurante com estrela Michelin. Como eles fizeram isso? Magia? Um pacto com o diabo? Viraram o protagonista de Solo Leveling?

Infelizmente, talvez eu nunca consiga responder como eles fizeram isso. Mas, se não posso explicar o COMO, posso pelo menos explicar O QUE eles fizeram. E é aqui que entramos no Efeito do Cagaço.

A primeira coisa que chama atenção de quem olha esse jogo é que Fear Effect é um dos jogos mais bonitos do Playstation. Ué, mas como a Kronos conseguiu isso em um jogo que tem um orçamento de um Toblerone sabor morango e um "valeu, fera" de um morador de rua chamado Milton? Sendo incrivelmente espertos, é assim que eles conseguiram.

Veja, o Playstation 1 não é exatamente a melhor máquina do mundo para reproduzir a fisionomia humana. Não existem poligonos na tela o suficiente para fazer traços de fisionomia, roupas, acessórios, cabelos, a coisa toda. Isso quer dizer que mesmo os jogos AAA de maior giga produção (como FINAL FANTASY 8, por exemplo), no melhor cenário possível pareciam com isso:


A Kronos, no entanto, decidiu contornar essa limitação de uma forma muito inteligente. Em vez de tentar competir com os grandes estúdios na corrida por mais polígonos e detalhes realistas, eles tiveram outra ideia: "E SE, veja bem, E SE.... a gente desenhasse as paradas bonitinha em 2D e colasse nos bonecos 3D como uma textura?"

Isso se chama Cell Shading, e é verdade que a Kronos não inventou essa ideia. Em 1994 um jogo de 3DO (de todas as coisas!) chamado Doctor Hauzer usou uma forma rudimentar dessa tecnica, e em 1996, PARAPPA THE RAPPER aplicou o Cel Shading para dar mais fluidez aos seus personagens, que pareciam 2D, mas na verdade eram modelos 3D finíssimos.

Agora, pegar um jogo 3D que os bonecos deviam ter no máximo uns 6 poligonos e usar o Cell Shading para artisticamente fazer esse jogo parecer bonito pra caceta? Isso ninguém tinha feito ainda. Eles usaram sprites 2D — imagens pré-renderizadas — para os personagens, colando eles por cima de modelos 3D que iam parecer terrivelmente feios de outra forma. Isso permitiu que os personagens tivessem um nível de detalhe e expressividade que o hardware do PS1 jamais conseguiria alcançar com modelos 3D puros. 


O resultado foi personagens com traços faciais nítidos, roupas cheias de detalhes e expressões que realmente transmitiam emoção. Era como se eles tivessem trazido os quadrinhos para a vida, criando uma estética visual que era ao mesmo tempo única e impressionante. Como eu disse, foi uma solução muito esperta da Kronos, que tem como resultado fazer o jogo todo parecer com um episódio de Aeon Flux!

HÃ, EU NÃO ACHO QUE ALGUÉM LEMBRE DE AEON FLUX, SABE? E OS QUE LEMBRAM JÁ ESTÃO ENTRANDO NA IDADE DE TER ALZHEIMER, ENTÃO VAI SER POR MUITO TEMPO...

Hã, seja como for... Eles basicamente disseram: "Se o PlayStation não consegue fazer humanos 3D bonitos, então vamos fazer humanos 2D incríveis." E foi assim que Fear Effect se tornou um marco visual, provando que, a criatividade e a inteligência superam qualquer limitação técnica — ou orçamentária.


Se você parar pra pensar, tudo nesse jogo é barato: os gráficos cel-shaded são a forma mais barata de fazer o jogo parecer bonito, os cenários são bem mais simples do console processar que cenários 3D de verdade e os angulos de câmera fixos economizam dezenas de noites de sono dos produtores ao não ter que lidar com o controle da camera. Só que a grande sacada aqui é que a Kronos olhou o orçamento, deu de ombros, e dissee: "É só o que a gente pode pagar mas dane-se, vamos fazer isso parecer INTENCIONALMENTE barato." E funciona. Ah, como funciona.

Isso quer dizer que eles deliberamente um tema que casasse perfeitamente com essa estética mais kitsch - o que quer dizer que Fear Effect foi feito para parecer um filme B asiático ganhando vida. E isso é um elogio!


Os diálogos exagerados, as cenas cheias de violência gore, os personagens caricatos e a atmosfera noir com toques de cyberpunk - tudo contribui para essa vibe de "feito com pouco, mas com muito estilo". E é justamente essa escolha artística que faz o jogo se destacar. Em vez de tentar disfarçar as limitações, eles as transformaram em parte da identidade do jogo.

A atmosfera do jogo é uma mistura de Blade Runner com Resident Evil, mas com um toque de filme de kung fu de zero orçamento da Sessão da Kickboxing. É escuro, é sujo, e é cheio de personalidade. Os cenários são detalhados e cheios de vida (ou morte, dependendo do seu ponto de vista), e a iluminação é usada de forma brilhante para criar tensão. É o tipo de jogo que te faz sentir que está em um filme, mesmo que seja um filme que só passaria na TV a cabo às 2 da manhã.

A história de Fear Effect, seguindo o padrão até aqui, é puro ouro de filme B. Você controla um grupo de mercenários—Hana, Glas e Deke—navegando por um mundo de triades, demônios e nonsense sobrenatural. O diálogo é cafona, a trama é enrolada, e os personagens são tão exagerados que se encaixariam perfeitamente em um filme do John Woo. Mas aqui está o segredo: isso é uma coisa boa! Os temas maduros—traição, sobrevivência, moralidade — não são tratados com a maior profundidade, mas definitivamente são tratados com litros de sangue e muito tiroteio, e no dia que eu não tiver espaço no meu coração pra isso saiba que eu já os terei deixado

Hana Tsu-Vachel, a protagonista, é uma das personagens mais memoráveis da era PlayStation. Ela é durona, inteligente e tem um senso de humor ácido que faz você torcer por ela - especialmente em seu conflito de ter fugido de ser garota de bordel chinesa para tentar ser algo mais na vida, por mais bregas que as reviravoltas da trama sejam. Glas e Deke, seus companheiros de equipe, também têm seus momentos de brilho, com diálogos que variam entre o hilário e em algumas vezes bastante genuínos. E os vilões? Bem, eles são tão clichês que chegam a ser adoráveis. É como se a Kronos tivesse pegado todos os clichês de filmes de ação dos anos 90 e os colocado em um liquidificador. O resultado é uma história que, apesar de absurda, é cativante e interessante.

Mecanicamente, os controles de Fear Effect são tão suaves quanto uma massagem com lixa - definitivamente é onde a Kronos menos conseguiu esconder que eles eram pobre pobres de marré. Mas então, se existe um genêro que pode ser permissivo com controles mais frouxos, esse é justamente o survival horror. E olha só, não é que Fear Effect é um?

Então o combate é troncho, mas a proposta do genero é justamente te dar ansiedade por vc não ser o Rambo abatendo hordas de inimigos. Os puzzles são okay e a dificuldade é repleta de instadeaths baratos, mas então não é como se eles tivessem sido cuzões com a abundancia de save points, eu posso relevar isso. Pontos extras pelos finais alternativos, então mesmo que a jogabilidade seja o ponto fraco do jogo, muito espertamente eles escolheram um genero que comporta isso.

Sim, um jogo que a protagonista passa quase um CD inteiro lutando enrolada numa toalha é apelação e fan-service safado... mas então, esse não é meio que o ponto? Não é o que você esperaria ver em um filme de ação barato asiático? Eu realmente acho que funciona com a proposta

No fim do dia, Fear Effect é um jogo que tem perfeica ciencia das limitações de seus desenvolvedores - tanto tecnicas quanto financeiras e as usa a seu favor. Ele não tenta ser um jogo de tiro frenético ou um puzzle game cerebral porque sabe que não conseguiria ser isso — o que ele sabe que consegue fazer é ser um survival horror trash e abraça isso com todas as forças. E, apesar dos controles não serem lá essas coisas, a atmosfera, a história e o estilo visual são tão envolventes que você acaba perdoando as falhas mecânicas. 

E isso, convenhamos, é uma clareza de visão de game design e consciência dos próprios limites que eu honestamente não esperava dos mesmos caras que produziram o acidente de trem termonuclear que é CRITICOM. Quem diria que até os piores fracassos podem te ensinar alguma coisa e eventualmente te levar a grandeza com a mentalidade certa e um pouco de criatividade. 

Com efeito, eu estou tão surpreso com a evolução da Kronos que decidi dar uma segunda chance para CRITICOM. Vai que eu fui duro demais com o jogo? Vai que ele não é tão ruim assim?

MEU DEUS, É SIM! É TÃO RUIM ASSIM SIM, PRA QUE EU FUI FAZER ISSO! MEUS OLHOS! ELE QUEIMA!

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 144 (Outubro de 1999)


EDIÇÃO 150 (Abril de 2000)


EDIÇÃO 151 (Maio de 2000)


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EDIÇÃO 064 (Julho de 1999)


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MATÉRIA NA GAMERS
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EDIÇÃO 058 (Março de 2000 - Semana 4)