Oh não.
O suor frio escorria de minha testa, minhas mãos tremiam, meu coração palpitava em terror... e eu sequer tinha encaixado a fita de "Batalha Ogra 64: Pessoa de um Calibre Senhorio" (belo nome, isso tem que ser dado a ele) no Nintendo 64.
Isso porque antes mesmo que eu ligasse o videogame, fui bombardeado por memórias de OGRE BATTLE: The Marsh of the Black Queen como um sobrevivente de guerra que acorda com flashbacks terríveis no meio da noite, gritando em puro horror.
Como um cadaver mal enterrado nas minhas lembranças, se arrastaram para a superficie lembrança de horas intermináveis gastas tentando descobrir como o sistema de alinhamento funcionava, apenas para ter minha reputação inexplicavelmente despencando porque ousei libertar uma cidade em vez de ocupá-la. Lembrei da frustração de gerenciar unidades com uma interface que parecia ser uma piada interna da equipe de desenvolvimento que eu claramente não estava pegando lembrei da exaustão total das missões que pareciam durar para sempre, sem nenhum feedback claro de progresso ou realização.
O jogo de SNES era um jogo que punia você por não entender suas regras enigmáticas, oferecia pouco para explica-las e menos ainda em capacidade de perdoar os erros que você nem entendia que estava cometendo. Era um jogo que exigia perfeição, mas não dava nenhuma das ferramentas para alcançá-la.
ESTOU PEGANDO A SENSAÇÃO QUE VOCÊ NÃO GOSTA MUITO DE OGRE BATTLE: The Marsh of the Black Queen
O que te deu a deixa? Mas tá, verdade seja dita, apesar de tudo isso eu não posso ignorar completamente o fato de que tem boas ideias enterradas sob toda a frustração. Algo que, se feito corretamente, poderia ser realmente incrível.
Seria esse então o caso deste jogo de uma Pessoa de Calibre Senhorio que realmente iria consertar tudo que deu errado com o jogo de SNES? Ou seria outra prova na grande verdade da vida que nada é tão ruim que não tenha como piorar?
Vamos começar com o jogo do Super Nintendo, porque para apreciar completamente o que Ogre Battle 64 faz, você precisa entender de onde ele veio. OGRE BATTLE: The Marsh of the Black Queen é um jogo com grandes ambições, isso não pode ser tirado dele. Ele queria ser um RPG de estratégia profundo e moralmente complexo, onde suas escolhas importavam, onde você podia moldar a história por meio de suas ações e onde a jogabilidade seria uma mistura perfeita de estratégia em tempo real e combate de RPG tático. No papel, parecia incrível. Na prática... meua migo...
Os elementos de estratégia em tempo real do jogo são mal explicados, deixando os jogadores se batendo em seus sistemas com pouca ou nenhuma orientação. O sistema de alinhamento e reputação, que deveria adicionar profundidade, é tão obscuro que poderia muito bem ser aleatório. Quer recrutar uma unidade específica? Boa sorte tentando entender como manipular esses parâmetros para que isso aconteça. Melhor ainda, boa sorte descobrindo quais parâmetros você precisa alterar.
A interface do jogo é desajeitada e pouco intuitiva, tornando até mesmo tarefas básicas como gerenciar seu exército uma tarefa árdua - porque aparentemente alguem achou uma ideia muito divertida te dar mais de 100 bonecos pra você equipar e administrar item por item. Pois é.
A história, embora intrigante em conceito, era prejudicada pela incapacidade do jogo de comunicar efetivamente seus temas e personagens. As escolhas morais que você fazia pareciam arbitrárias, e as consequências dessas escolhas geralmente não eram claras. O jogo queria ser uma experiência profunda e instigante, mas acabou sendo uma tarefa frustrante e confusa.
Mas pq eu estou falando tudo isso? Pq desde em que você liga Ogre Battle 64, algo surpreendemente chocante assalta seus olhos:
Espera... meus olhos muito me enganam ou tem "tutorial" escrito ali? Ogre Battle realmente quer que eu ... entenda o jogo? Que eu saiba como joga-lo? Até mesmo... ouso cogitar... me divirta jogando? Não pode ser, estamos mesmo falando de Ogre Battle?
Porém o tutorial que efetivamente explica as mecanicas do jogo não é um caso isolado deixado por um estagiário distraído, o jogo efetivamente abre com uma cinemática que prepara o cenário para sua história politicamente carregada - o que me fez ficar impressionado com o quanto mais polido e focado ele parecia em comparação ao jogo de SNES. Os personagens eram mais definidos, as apostas eram mais claras e o mundo parecia vivo - com uma não pequena dose de inspiração em seu spin-off mais bem sucedido TACTICS OGRE: Let Us Cling Together
No entanto, o tutorial que realmente explica as mecânicas do jogo não é apenas um acaso deixado por um estagiário distraído. *Ogre Battle 64* começa com uma cinemática que não só estabelece o tom, mas também prepara o terreno para sua história politicamente carregada. Desde os primeiros minutos, fiquei impressionado com o quão mais polido e focado ele parecia em comparação ao título do SNES. Os personagens eram mais definidos, os conflitos tinham peso real e o mundo pulsava com vida—claramente inspirado no spin-off mais bem-sucedido da franquia, algo que os mapas pixelados do jogo original nunca conseguiram transmitir.
Mas não foi apenas a apresentação que me conquistou—foi a jogabilidade. Ogre Battle 64 pega as ideias centrais que o jogo de Super Nintendo tentou implementar e as refina em uma experiência coesa e envolvente. Aqui, a base continua sendo um jogo de estratégia em tempo real, mas agora com mecânicas mais intuitivas e uma integração mais fluida de elementos de RPG tático.
Aqui, você comanda várias unidades em um grande mapa, movendo-as pelo terreno para capturar cidades, derrotar inimigos e cumprir objetivos. Cada unidade pode ter até cinco personagens, dispostos em uma formação personalizável. Ou seja, para todos os efeitos práticos, *Ogre Battle 64* é um RTS—mas, em vez de depender de auto-ataques ou magias ativadas manualmente, como em *Warcraft 2*, as batalhas são automatizadas. Suas unidades lutam com base em sua classe, equipamento e formação, o que pode parecer aleatório à primeira vista, mas na verdade é onde reside a profundidade estratégica do jogo.
A estratégia vem de como você constrói e posiciona seus exércitos. Montar uma unidade com armaduras leves, por exemplo, permite que ela se mova mais rápido no mapa, tornando-a ideal para emboscadas. Já uma unidade composta apenas por tanques pode ser usada para segurar o inimigo enquanto seus atacantes estão longe, algo perfeito para defender as cidades que você conquistou.
E, ao contrário do jogo anterior, nada aqui é terrivelmente críptico ou frustrante de gerenciar. As mecânicas são claras, permitindo que você tome decisões estratégicas deliberadas para cumprir seus objetivos. E, veja só, o jogo realmente diz quais são esses objetivos a cada mapa! Não é uma loucura um jogo de estratégia confiar que o jogador possa pensar em vez de obrigá-lo a adivinhar o que precisa ser feito?
O jogo também introduz um sistema de mudança de classe que adiciona profundidade à progressão dos personagens. Conforme suas unidades ganham experiência, elas podem evoluir para classes mais avançadas, cada uma com habilidades únicas e bônus de estatísticas. Você transforma seu cavaleiro em um paladino, focando em defesa e cura? Ou o torna um cavaleiro das trevas, sacrificando a defesa por puro poder ofensivo? Não é exatamente uma inovação—Shining Force: The Legacy of Great Intention já fazia algo parecido quase uma década antes—mas Ogre Battle 64 faz um excelente trabalho ao integrar esse elemento tradicional dos RPGs ao seu sistema de estratégia em tempo real.
Outra grande melhoria em relação ao jogo do SNES é o sistema de alinhamento e reputação. Em Ogre Battle 64, esses sistemas ainda existem, mas agora são bem mais compreensíveis. Suas ações afetam diretamente sua reputação (como as pessoas o veem) e seu alinhamento (sua posição moral). Libertar cidades e poupar inimigos pode fazer de você um herói aos olhos do povo, mas também pode dar a impressão de fraqueza para seus aliados. Por outro lado, conquistar cidades à força e executar prisioneiros pode garantir respeito pelo medo, mas também alienar aliados em potencial. Dessa vez, esses sistemas são transparentes e impactantes, permitindo que você molde sua história sem sentir que está tateando no escuro.
Isso tudo resulta em um loop de jogo estratégico e satisfatório. Cada missão começa com você posicionando seus exércitos no mapa, geralmente com o objetivo de capturar fortalezas inimigas ou libertar cidades. Conforme movimenta suas unidades, você encontra exércitos inimigos, monstros neutros e desafios ambientais. O equilíbrio entre ataque e defesa se torna essencial—você precisa avançar em direção ao seu objetivo sem deixar suas bases vulneráveis.
Ter bases é essencial porque o combate funciona de forma diferente do tradicional "batalha até a morte". Quando duas unidades se encontram no mapa, elas lutam por dois turnos. Se nenhum dos lados for aniquilado nesse período, o combate se encerra e ambas as unidades retornam ao mapa exatamente com o HP que tinham no final da luta. Ou seja, se um dos seus grupos terminar a batalha com membros a 25, 15, 50, 7 e 13 de HP, esses serão os valores ao retornarem ao mapa.
Para curar, você tem duas opções: usar itens (o que só recupera um pouco de HP de um único membro e pode sair caro) ou recuar para uma cidade ou fortaleza sob seu controle. Isso torna a captura de bases estratégicas essencial. No entanto, a recuperação de HP não acontece instantaneamente ao entrar numa base—ela apenas começa a regenerar gradualmente. Isso cria um desafio adicional ao atacar uma fortaleza inimiga, pois, após dois turnos de combate, a unidade defensora desengaja e começa a recuperar HP enquanto a atacante não. O ideal, portanto, é manter mais de uma unidade cercando a base, permitindo que uma continue pressionando enquanto a outra recua para se recuperar. Melhor ainda se você tiver uma base próxima para curar seus próprios feridos.
Agora, a parte realmente importante: tudo isso não soa como um verdadeiro jogo de estratégia de guerra? Porque é exatamente isso que Ogre Battle 64 é!
Além disso, o jogo conta com uma IA surpreendentemente sofisticada para a época. O comportamento das unidades inimigas não é fixo—ele depende de vários fatores. Após um combate, elas podem decidir atacar novamente, bater em retirada ou correr para uma cidade, dependendo de variáveis como o HP restante dos envolvidos (elas acham que podem ganhar?), sua reputação e alinhamento, e até se perderam seu líder ou não. Soldados sem um comandante, por exemplo, são menos organizados e têm maior chance de se render. Tudo isso faz com que as batalhas pareçam dinâmicas e táticas, exigindo planejamento constante.
Além das batalhas, a fase de gerenciamento na base entre as missões é essencial. Aqui, você pode recrutar novas unidades, mudar classes, comprar equipamentos e reorganizar seus exércitos. Esse planejamento é crucial—entrar em combate mal preparado pode significar a diferença entre a vitória e a derrota. E não é apenas na estratégia que suas escolhas importam: Ogre Battle 64 apresenta uma narrativa ramificada com múltiplos finais, onde cada decisão, dentro e fora do campo de batalha, tem consequências de longo prazo.
E falando em história, esse é um dos pontos mais fortes do jogo. Ambientado no reino de Palatinus, o enredo acompanha Magnus Gallant, um jovem oficial envolvido em uma guerra civil. Seu pai, um conselheiro próximo do príncipe Yumil, foi acusado de um assassinato para proteger o herdeiro, carregando essa culpa desde então. Para fugir desse passado, Magnus tenta manter distância, buscando uma designação militar em uma região remota onde ninguém o conhece.
No entanto, ao ser enviado para suprimir uma rebelião contra o sistema de classes, ele se vê diante de uma escolha difícil. Com o líder rebelde capturado e sob suas ordens para executá-lo, Magnus decide libertá-lo. Dependendo das suas ações até esse ponto, alguns soldados podem apoiar sua decisão e segui-lo, enquanto outros podem abandoná-lo, considerando sua atitude traiçoeira.
Conforme o conflito escala, o império recorre a medidas extremas para manter o controle, chegando ao ponto de se aliar a forças sombrias. Magnus percebe que, ao desafiar o império, ele inadvertidamente pressiona a guerra a se tornar ainda mais brutal. O que começa como uma simples missão para restaurar a ordem rapidamente se transforma em um enredo denso de intriga política, dilemas morais e crescimento pessoal. O jogo questiona o significado de lealdade, poder e liderança, forçando o jogador a encarar as consequências de suas escolhas.
Os personagens são outro destaque. Cada um tem motivações próprias e conflitos internos que os tornam mais do que simples peças no tabuleiro. Magnus, em particular, se destaca por não ser um herói predestinado ou escolhido pelo destino—ele é apenas um homem tentando agir de acordo com seus princípios em um mundo que constantemente os desafia. O elenco de apoio, de Aisha, a idealista, a Destin, o pragmático, adiciona camadas à narrativa, tornando as interações e alianças ainda mais envolventes.
As escolhas morais ao longo do jogo não são meros enfeites narrativos; elas afetam diretamente o rumo da história e a composição do seu exército. Você compromete seus ideais pelo bem maior? Ou permanece fiel às suas convicções, mesmo que isso dificulte sua jornada? Essas decisões são entrelaçadas à jogabilidade de forma orgânica, garantindo que cada reviravolta da trama pareça uma consequência natural das ações do jogador, e não apenas um detalhe de roteiro.
Conforme eu avançava em Ogre Battle 64, comecei a me apaixonar por ele, de forma lenta, mas crescente. O medo que senti no início foi gradualmente substituído por um crescente interesse e admiração. Este era o jogo que eu gostaria que o original do SNES tivesse sido: uma experiência que combinasse jogabilidade profunda e estratégica com uma narrativa rica e emocionalmente envolvente. Um jogo que respeitasse meu tempo e inteligência, recompensando meus esforços em vez de punir meus erros.
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Você não controla o combate, no máximo pode sugerir quem eles vão atacar. Sugerir, não conte muito que eles vão obedecer |
À medida que jogava mais, comecei a perceber os detalhes que faziam Ogre Battle 64 se destacar. Como a música intensificava os momentos-chave, amplificando o impacto emocional da história. Como os personagens evoluíam ao longo do jogo, o que me fazia me importar genuinamente com seus destinos. E como o mundo do jogo parecia realmente vivo, com sua própria política, história e conflitos, apresentados de forma muito mais coesa e acessível do que o que vimos em Tactics Ogre: Let Us Cling Together, que te afogava no infodump de uma lore excessivamente densa.
Quando os créditos finalmente rolaram, percebi que Ogre Battle 64 não só superou minhas expectativas, mas as redefiniu completamente. O que começou como uma jornada hesitante, marcada pelas frustrações do jogo anterior, se transformou em uma das experiências de RPG estratégico mais gratificantes que já vivi. Ele pegou a ambição de The March of the Black Queen e a aprimorou, criando algo verdadeiramente especial: um jogo que me desafiou sem me alienar, que explorou os dilemas de guerra e moralidade sem perder de vista sua humanidade, e que respeitou meu tempo e minhas escolhas. No fim das contas, Ogre Battle 64 não apenas redimiu a série — ele me fez acreditar nela.
VOCÊ SABE QUE ESSE FOI O ÚLTIMO JOGO LANÇADO DA FRANQUIA, NÉ? O PRÓXIMO SERÁ APENAS UM REMAKE DE TACTICS OGRE: Let Us Cling Together E AINDA SIM SÓ SERIA LANÇADO 23 ANOS DEPOIS
Well, fuck.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 062 (Maio de 1999)