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Hoje eu aprendi que capacetes militares tem tamanho, e o nosso herói claramente não pegou um do dele |
Esses dias eu comecei a assistir Sailor Moon Crystal, a versão moderna do clássico anime dos anos 90, e enquanto assistia, alguma coisa em mim não conseguia afastar a ideia de que eu fiquei um pouco desapontado. Quero dizer, tudo em Sailor Moon parecia extremamente clichê: as transformações de animação repetida, as heroínas com personalidades estereotipadas, os vilões recorrentes com menos personalidade ainda e os temas de amizade e empoderamento que são o puro suco dos anos 90.
A sensação era meio como se eu já tivesse visto tudo aquilo antes—e, de certa forma, eu tinha. Mas então veio o estalo: Sailor Moon não está seguindo clichês, ela INVENTOU esses clichês. Foi essa obra que definiu os padrões do gênero de magical girls e sobre a qual toda a categoria se construiu.
HÃ, CERTO... ISSO É... ELUCIDATIVO, EU SUPONHO... MAS O QUE, EXATAMENTE, ISSO TEM A VER COM MEDAL OF HONOR?
Apenas absolutamente tudo, Jorge.
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Apenas Miyamoto e Spielberg jogando um Wiizinho casual, um Wiizinho moleque, um Wiizinho toco-y-mi-voy |
Mas é verdade. Tanto que como eu já contei na review de MANIAC MANSION, os funcionários da Lucas Arts diziam que o Spielberg passava mais tempo no rancho acompanhando o desenvolvimento de jogos do que o próprio George Lucas—que nunca se importou muito com essa coisa de videogames.
Logo após as filmagens do Resgate do Soldado Ryan, Spielberg ainda estava tão na pilha disso de Segunda Guerra que ele foi um grande advogado na DreamWorks para trabalhar mais com o tema - então Medal of Honor é meio que um "sucessor espiritual" do ultra consagrado filme com o Tomás Gavião.
Isso significa que, contando com a consultoria de um dos maiores contadores de histórias do cinema—e ainda por cima sobre um tema pelo qual ele era apaixonado—o jogo prometia trazer uma intensidade e autenticidade sobre a Segunda Guerra Mundial que os videogames jamais haviam alcançado até então.
A ideia de um jogo com um orçamento gigantesco (afinal, ele foi feito pela Dreamworks e distribuído pela Electronic Arts, meio dificil pensar numa forma de levantar mais dinheiro num jogo ocidental) e a bênção de um dos grandes magos do cinema gerou enormes expectativas. No entanto, se você ligar Medal of Honor em 2025, pode acabar achando a experiência um tanto... decepcionante.
Assim como Sailor Moon parece "apenas um mahou shoujo bem genérico", Medal of Honor pode parecer "apenas mais um" FPS para os olhos modernos. Só que aqui é que entra a sacada de entender o contexto histórico: MoH não está seguindo clichês—ele está CRIANDO esses clichês. E é isso que o torna tão especial.
Antes de Medal of Honor, os FPS eram dominados por títulos como DOOM e QUAKE 2 que apostavam em ação frenética e cenários de ficção científica ou fantasia. Mesmo um jogo "menos fantasioso" como 007 GOLDENEYE não era exatamente uma reprodução histórica.
A proposta de Medal of Honor, por outro lado, era completamente diferente: um FPS mais realista e cinematográfico, com foco na autenticidade histórica, narrativa imersiva e jogabilidade estratégica. Muitos dos elementos que ele introduziu—como missões inspiradas em eventos reais, armas historicamente precisas e uma trilha sonora orquestrada—se tornaram padrão no gênero. Aliás, vale destacar que este foi o primeiro jogo a ter uma trilha sonora inteiramente gravada por uma orquestra sinfônica, algo extremamente caro, mas incrivelmente épico.
Antes dele, jogos ambientados na Segunda Guerra Mundial eram um nicho, quase sempre focados em estratégia ou ação no estilo arcade (como o próprio WOLFENSTEIN-3D), sem priorizar a imersão narrativa. Medal of Honor mudou esse cenário ao colocar os jogadores no papel do Tenente Jimmy Patterson, um agente da OSS encarregado de frustrar os planos nazistas durante a guerra.
Embora o jogo apresente missões fictícias, elas são inspiradas em eventos históricos reais—como infiltrar-se e sabotar a produção dos mísseis V2 alemães ou destruir uma represa ocupada pelos nazistas para interromper a produção de óxido de deutério já que o domínio da "água pesada" era um dos fatores cruciais para o desenvolvimento da tecnologia atômica.
E esse é, sem dúvida, um dos maiores pontos fortes do jogo: sua capacidade de capturar a atmosfera da Segunda Guerra Mundial. Desde a primeira missão, que começa na praia da Normandia, o clima que permeia Medal of Honor é fantástico. Os nazistas conversando entre si em alemão, os sons abafados de uma cidade ocupada à noite—tudo na ambientação utiliza as capacidades limitadas do PS1 para convencer o jogador de que ele realmente está em 1944.
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- Seus papéis não estão certos, quem é o seu oficial comandante? - ESSE É O MEU OFICIAL COMANDANTE, NAZISTA FILHO DA PUTA! |
Não por acaso, muito dessa abordagem mais tática vem da consultoria de Dale Dye - veterano da guerra do Vietnã que é habitual consultor militar de Hollywood que havia trabalhado com Spielberg no próprio "O Resgate do Soldado Ryan" e voltaria a trabalhar com ele em "Band of Brothers".
Dye ficou horrorizado com a primeira demo do jogo—onde tudo era na base do tiroteio frenético, sem estratégia. Graças a ele, o combate passou a exigir mais cobertura e avanço cuidadoso, um inimigo de cada vez. Até porque na guerra de verdade, sair correndo como um boi brabo só ia garantir que você tomasse um tiro bem no meio dos cornos.
As missões abraçam esse design mais metódico, frequentemente exigindo uma mistura de furtividade, exploração e combate. Os objetivos parecem autênticos dentro do contexto da Segunda Guerra: em algumas fases, você precisa se disfarçar de oficial inimigo, eliminando superiores furtivamente para roubar seus documentos de identificação; em outras, deve plantar explosivos ou resgatar prisioneiros de guerra. Essa variedade mantém a jogabilidade fresca e envolvente, especialmente nos primeiros níveis.
Os controles, apesar de um pouco engessados pelos padrões modernos, representam um esboço do que viriam a ser os esquemas de FPS nos jogos modernos. A inteligência artificial dos inimigos, embora inferior à de 007 GOLDENEYE e nem de perto tão sofisticada quanto a de PERFECT DARK, ainda estava à frente de praticamente todos os outros FPS do PS1. Os inimigos se protegem, flanqueiam e reage as ações de maneira surpreendentemente dinâmica para a época.
Mas o que realmente deixou a gente realmente boquiabertos no PS1 e pelo que esse jogo é mais lembrado é o sistema de dano localizado. Dependendo de onde você acertava, os inimigos reagiam de formas diferentes—mão, tronco, perna, tudo tinha uma animação específica. Os headshots dependiam se o inimigo usava capacete ou não, um nível de detalhe era inédito.
A minha reação favorita, sem dúvida, era quando um inimigo derruba a arma após levar um tiro e começa a engatinhar desesperado para recuperá-la. Isso te dá a maravilhosa oportunidade de dar um tiro bem no meio do cu de um nazista—e, sinceramente, eu acredito que o primeiro anfíbio se arrastou para fora do oceano justamente para que, milhões de anos depois, pudéssemos fazer isso.
OKAY, EU ENTENDI SEU PONTO DE QUE TODAS ESSAS COISAS QUE ERAM INOVADORAS PARA A ÉPOCA SÃO APENAS O BÁSICO ESPERADO PARA UM CALL OF DUTY OU BATTLEFIELD ANUAL HOJE. MAS ISSO QUER DIZER QUE O JOGO DE 1999 É PERFEITO?
Então... né? Aff... vamo lá.
Enquanto a primeira metade de Medal of Honor é uma aula de jogabilidade imersiva e historicamente fundamentada, a segunda metade parece apressada e bem menos inspirada. Em vez de continuar com as missões variadas e ambientações cinematográficas, o jogo mergulha em cenários genéricos como bunkers claustrofóbicos, interiores de submarinos (que é bem menos legal que o nome sugere, é apenas uma sequencia de corredores) e laboratórios secretos nazistas. Esses níveis carecem da atmosfera e da diversidade dos estágios iniciais, dependendo de corredores repetitivos, buscas por cartões-chave e outros clichês de FPS.
Essa mudança no design mina completamente a promessa inicial de uma experiência realista e envolvente da Segunda Guerra. Os estágios finais parecem mais um QUAKE 2-wannabe do que um shooter histórico, com layouts labirínticos e encontros repetitivos com inimigos. A variedade ambiental desaparece, e o jogo fica cada vez mais monótono à medida que avança.
Se a segunda metade de Medal of Honor já dá sinais de pressa, o final é a prova definitiva desse desenvolvimento atropelado. Após a ultima fase o jogo termina com uma cinemática de poucos segundos (menor até que o padrão de fim de fase), sem impacto e sem graça. Não tem sequer uma rolagem de créditos decente, nenhum resumo da jornada do jogador e nem sequer um fechamento emocional para a história.
Isso é especialmente frustrante, considerando as raízes do jogo em O Resgate do Soldado Ryan e seu potencial para um final realmente marcante. Um desfecho mais reflexivo, conectando a trajetória do jogador ao contexto histórico da Segunda Guerra, poderia ter elevado a experiência. Em vez disso, o jogo simplesmente... termina. Como se os desenvolvedores só quisessem se livrar logo dessa parte e seguir em frente.
O resultado é que o final de Medal of Honor parece menos um clímax bem construído e mais um afterthought—o jeito mais rápido e preguiçoso que eles encontraram pra avisar que o jogo acabou.
No fim do dia, para a época, Medal of Honor é uma maravilha técnica. O jogo empurra os limites do hardware do PS1 (e nossas expectativas sobre o que um FPS deveria ser), entregando ambientes detalhados, animações suaves e uma sensação de escala impressionante para um console que já começava a pedir água no início dos anos 2000. O design de som, em particular, elevou a indústria pelo menos uma década à frente, com sons realistas de armas, ruídos ambientes e dublagem que ajudaram a dar vida ao mundo.
Apesar de suas falhas, Medal of Honor continua sendo um título essencial na história dos videogames. Ele abriu caminho para tudo que os FPS de guerra viriam a se tornar, inspirando franquias como Call of Duty, Battlefield e Brothers in Arms. Seu foco na autenticidade histórica, na apresentação cinematográfica e na jogabilidade imersiva estabeleceu um novo padrão para o gênero e provou que consoles podiam oferecer experiências maduras e narrativas impactantes.
De muitas maneiras, Medal of Honor foi para o PlayStation o que 007 GOLDENEYE foi para o Nintendo 64. Ambos os jogos revolucionaram os FPS nos consoles, mas cada um seguiu seu próprio caminho: enquanto 007 GOLDENEYE trouxe fases com missões criativas baseadas no filme e multiplayer viciante, Medal of Honor criou um nicho próprio ao priorizar a imersão no modo single-player, a narrativa cinematográfica e a fidelidade histórica.
Por isso para muitos jogadores—eu incluso—Medal of Honor foi o primeiro FPS, a porta de entrada para um gênero que, até então, era dominado pelo PC. Seus controles intuitivos e jogabilidade acessível o tornaram perfeito para iniciantes, enquanto sua profundidade e desafio garantiram que até os veteranos se mantivessem engajados.
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Run For Your Lives-He Has A Bazooka! |
No final das contas, Medal of Honor é um jogo de contrastes. De um lado, um título inovador que redefiniu o gênero e trouxe a Segunda Guerra Mundial para o centro dos jogos. Seus primeiros níveis são uma aula de imersão e autenticidade, e sua abordagem cinematográfica estabeleceu um novo padrão para a indústria. Do outro, uma segunda metade apressada e repetitiva, culminando em um final abrupto e sem impacto.
Ainda assim, Medal of Honor merece ser lembrado e celebrado. Ele é um testemunho da ambição e criatividade de seus desenvolvedores, um recorte fascinante de um momento crucial na evolução dos videogames. Assim como Sailor Moon definiu os padrões do gênero mahou shoujo, Medal of Honor fez o mesmo pelos FPS—e, por isso, ambos permanecem pilares fundamentais de suas respectivas categorias.
Então, se hoje você olhar para Medal of Honor e achar que ele não faz nada de especial, lembre-se: ele não está seguindo clichês—ele ESTÁ CRIANDO esses clichês. E isso, por si só, é um feito extraordinário.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 147 (Janeiro de 2000)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER