Cena: Loja de Eletrônicos, semana antes do natal de 1999
Dentro de uma loja de eletrônicos bem iluminada, com placas de liquidação em metal e verde neon, um pai confuso, de calça cáqui e camisa polo enfiada para dentro da calça, se aproxima do balcão, segurando um post-it amassado rabiscado com uma caneta trêmula.
Pobre criança.
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A capa europeia não apenas é mais legal, como eu realmente queria que a direção de arte do jogo seguisse essa direção |
Lançado em 1999 exclusivamente para o Sega Dreamcast, Soul Fighter é um dos últimos suspiros de um gênero em extinção: o clássico beat ’em up. Desenvolvido pelo estúdio francês Toka e publicado pela Mindscape, o jogo é mais uma tentativa de levar a fórmula consagrada por títulos como Final Fight e Streets of Rage para o universo 3D, e mais uma a demonstrar pq esse genero caminhava rumo a extinção no começo dos anos 2000.
Mas eu já entro em maiores detalhes em um instante, pq o que eu preciso fazer primeiro é compartilhar a deliciosa loucura da premissa do jogo: nossa história aqui se passa no reino de Gomar, onde uma névoa mágica transformou todos os cidadãos em monstros grotescos. Cabe então aos heróis — Altus (o mestre de artes marciais), Sayomi (a espiã) e Orion (o bárbaro que é o ripoff de Conan obrigatório no genero) — enfrentar hordas desses ex-civis para coletar suas almas e, supostamente, salvá-los no futuro. A lógica oficial do jogo é a seguinte: ao destruir o corpo corrompido e capturar a alma no momento da morte, será possível restaurar a pessoa original quando a maldição for desfeita. Um tipo de “cura por espancamento”.
Mas o jogo não se esforça muito para explicar como isso funcionaria — nem os personagens parecem se importar. Não há diálogos de dúvida, nenhum sinal de peso na consciência, e definitivamente nenhuma tentativa de resolver a crise de forma pacífica. É como se, diante de uma epidemia, a única solução apresentada fosse "chutar até parar de se mexer". Se esse método de salvação soa um pouco... genocida, nossos heróis não demonstram preocupação. Na verdade, tudo indica que eles matariam os aldeões de qualquer forma, com ou sem redenção prometida.
Esse detalhe transforma Soul Fighter em algo ainda mais bizarro do que um simples clone de beat ’em up em 3D: é um simulador de massacre bem-intencionado, onde a salvação do reino passa necessariamente pelo maior número de mortes possível. Mas talvez a pior parte disso tudo seja que, bem, essa é a coisa mais memorável a respeito desse jogo. Pois é. Vamos a isso então, porém vamos começar pelos aspectos positivos do jogo.
Bem, o lado bom do jogo é que a interface é muito bem feita. No canto superior esquerdo ficam as barras de status: vida, ataque especial, durabilidade da arma e tempo restante, tudo fácil de ver. Do lado direito da tela ficam as armas que você pegou e um mapa da área embaixo. Esse mapa mostra os monstros e baús de tesouro perto, e também ajuda a não se perder tão fácil. O som é ok, nada de especial, mas a voz de "vitória" que grita entre as fases é engraçada pra caramba, parece que o narrador de Mortal Kombat tava fazendo um bico pra pagar as contas do mês. A música é melhor que a média e tenta ser interativa, tocando músicas diferentes quando você entra em batalha. O efeito não é lá essas coisas, mas é melhor do que ouvir a mesma música direto.
Já o lado ruim do jogo... bem, tipo assim, quando a seção de "O Lado Bom" tem só um paragrafo e a maior parte dele é sobre a interface, é porque tem alguma coisa muito, muito errada aqui. Vamos a isso então...
Soul Fighter parece, de alguma forma, um beat'm up cruzado com Olimpiadas do Faustão, ou aqueles programas japoneses de provas bizarras, sabe? Eu digo isso pq o jogo todo parece que seu personagem está andando numa arena ensaboada. Sério, quando você se move tem até uma animaçãozinha do momentum, do personagem patinando no sabão e tal!
Eu não sei se isso foi proposital dos desenvolvedores, mas eu duvido muito por dois motivos bem simples: a) essa seria uma ideia muito, muito idiota e b) são os mesmos caras que fizeram o medíocre Legend para PS1, eu acho muito mais provavel que eles só apanharam para a programação do Dreamcast mesmo. Ainda sim, tenha em mente que o jogo todo se passa em um mundo medieval onde parece que acabaram de encerar o chão...
Para adicionar ofensa a injúria, os controles ruins de Soul Fighter pioram com a câmera porca, lenta e que parece estar drogada. A câmera demora pra acompanhar o que você tá fazendo. Se você tá correndo no meio de um caminho reto, a câmera fica de boa, mas quando você tá lutando com um monte de inimigos e se movendo, ela não presta. Por causa disso, você vai se pegar dando um monte de socos e chutes na direção errada, porque o movimento da câmera te deixa perdido. Isso não é uma coisa com a qual dá pra se acostumar mesmo depois de horas.
Fora essa questão de mexer o boneco e enxergar ele na tela ("só" isso), os dois modos de jogo são completamente absurdos: tem o modo arcade e o modo aventura. No modo arcade, as fases têm tempo limite e você tem cinco continues. Você pode trocar entre um dos três personagens (que na real não são tão diferentes assim, apesar do que tá escrito na caixa) entre as fases, e quando acabam os continues, game over. Não dá pra salvar.
No modo aventura, você pode salvar e as fases não têm limite de tempo (tempo limite nem é muito um problema, já que você tem bastante tempo), mas você tem que jogar com o mesmo personagem o jogo inteiro e só tem uma vida. Você pode salvar o jogo depois de cada fase. É... só isso. O fato de que os caras se deram ao trabalho de fazer isso em dois modos de jogo separados diz muito sobre o quanto eles não faziam a mais remota ideia do que estavam fazendo.
Tem também um modo em primeira pessoa pra jogar ou atirar power-ups de armas que você pega, tipo facas, flechas, machados e bombas de óleo, mas isso é meio inútil porque o jogo não spawna muitos encontros com inimigos de longe, então parar pra mirar no meio do pau quebrando é a pior coisa que você poderia fazer - tentar fugir pra ganhar distância dos inimigos geralmente não funciona. Cada personagem tem também uma arma própria que pode usar mas que gasta... exceto que a única que eu senti alguma diferença foi o ataque mágico do Mago, que eu usei contra os chefes. Na maior parte do tempo, não dá pra sentir diferença nenhuma de só usar soco e chute.
O level design não é só sem criatividade (nada inesperado pra quem jogou Legend), mas agora ele é confuso também - o que é até impressionante, dado que as fases são bem lineares e não têm nenhuma mudança de andar, tirando uma rampa ou outra. Então como eles conseguiram fazer uma fase que seja linear mas que você consiga se perder mesmo usando o mapa é talvez o maior feito do design desse jogo... não um bom, mas não menos um feito por causa disso.
De toda forma, meu ponto é que parte do motivo do design ruim das fases é que você precisa matar todos os inimigos pra passar de fase ou avançar por um certo ponto. Mas nem todos os inimigos estão lá quando você começa a fase, alguns inimigos só spawnam quando inimigos em outro lado da fase foram derrotados. Por causa disso, você tem que voltar pra áreas que já estavam limpas pra achar um monstro pra matar pra poder avançar. Às vezes você passa direto por uma área e não percebe que tem inimigos lá, e é frustrante ter que voltar pra fazer a limpa. A primeira fase é um bom exemplo, porque não importa qual caminho você pegue na bifurcação, você vai acabar tendo que voltar tudo e matar os inimigos que perdeu no outro caminho. Isso é um design ben ruim, principalmente se você não notar a outra bifurcação (como eu não notei na primeira vez).
Outros problemas incluem que embora supostamente tenha mais de 40 inimigos diferentes no jogo, eles são todos tão sem graça (tirando talvez o lobisomem de macacão laranja, ao menos desse eu ri) que você provavelmente nem vai notar. Às vezes você encontra inimigos que cochilaram e estão dormindo no chão, provavelmente tão entediados quanto você.
Os gráficos são ok para um jogo de sexta geração e até tem algumas texturas legais, mas no geral não impressionam. A arte e o design dos personagens não são muito inspirados, mas o principal problema é o motor gráfico. A draw distance é ridiculamente curta, o que causa bastante neblina ou cenários e inimigos subitamente se materializando na tela, algo que você esperaria ver em um jogo de Playstation, mas não de Dreamcast. Tem muitas, muitas áreas que parecem acessíveis ao jogador, mas são bloqueadas por paredes invisíveis sem motivo aparente. A segunda fase é quase totalmente escura, sem dúvida pra esconder a incapacidade da engine de renderizar uma cidade convincente.
Se alguma coisa, eu suponho que uma boa ideia do que é jogar esse jogo acabe sendo transmitida exatamente pela cutscene de abertura. A cena de introdução, em que o Rei tenta explicar a história por trás do jogo em um monólogo, é uma das coisas mais chatas que eu já vi em um videogame. A cena tem OITO MINUTOS e isso são sete minutos e meio a mais do que precisaria, tem uma dublagem horrível de alguém tentando imitar o Sean, e mostra uma direção de câmera que até uma turma de teatro do terceiro ano teria vergonha. E como a cena é feita usando a engine do jogo, nem é particularmente bonita. E eu já mencionei que o discurso do Rei é tão mal escrito e confuso que você provavelmente não vai entender nada de primeira?
Também tem pequenas cutscenes dentro do jogo que mostram os três personagens principais arrombando portas ou descobrindo uma nova área, e todas elas são igualmente idiotizantes. Pelo menos não tem dublagem nessas, ainda bem. E bem, acabaram meus contiunes na ultima fase do jogo e não tive coragem de voltar e tentar de novo, não posso te dizer como é o final. Mas vou chutar que é ruim também.
Então voltando ao teatrinho do começo do texto, é, existe um motivo pra Soul Fighter já fosse com desconto mesmo no seu lançamento e ei, você recebe o que paga. Mas isso não torna esse jogo menos frustrante e é de certa forma impressionante como a Toka conseguiu regredir em praticamente todos os aspectos do seu beat'm up medíocre lançado uma geração anterior. Dado como as coisas se sairam nesse beat'm up para apenas um jogador (algo que as desenvolvedoras realmente, REALMENTE, deveriam evitar), eu realmente tenho pena das crianças que não levaram aquele outro jogo de luta de almas para o Dreamcast.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMESEDIÇÃO 148 (Fevereiro de 2000)