terça-feira, 13 de maio de 2025

[#1473][Abr/2000] EVERGRACE


Pré-anteontem eu escrevi sobre o esquecido jogo criado pela From Software para ser um dos títulos de lançamento do PS2 japonês: ETERNAL RING. Agora, vamos avançar meio ano no futuro e falar ssobre o esquecido jogo criado pela From Software para ser um dos títulos de lançamento do PS2 americano: Sempregraça. É, aparentemente a FromSoft tem uma queda por festas de lançamento — basta atirar um PS2 pra cima que eles aparecem com um jogo, mas divago.

Recapitulando: o principal crime de ETERNAL RING não foi ser quebrado, horrível ou impossível de jogar. Não, foi algo muito pior — algo de que nenhum jogo da From Software deveria jamais ser culpado: ser genérico. Ser chato. Sem inspiração. Isso é quase pior do que o jogo ser ruim, no meu livro, pq ao menos dos jogos ruins dá pra sentir raiva ou dar risada, mas ETERNAL RING é uma sopa de hospital que eu vou te contar, viu...

A boa noticia, entretanto, é que Evergrace não é nada disso. Au contrairé, mon freire. Desde o momento em que você aperta o power do PS2 e passa aquele delicioso zumbido de abertura (embora o do PS1 seja mais nostálgico e eu ache genial a ideia de uma orquestra afinando quando você liga o PS3), você sabe que este é um jogo da FromSoft. Quero dizer, a cena de abertura da intro é extremamente familiar:


Caso você não esteja ligando o nome a pessoa, vamos ver o que eles fizeram oito anos depois: começa com uma tomada aberta de uma paisagem montanhosa, camera aerea, um canto lírico evocando um tom onírico:


Mas estou me adiantando um pouco. Meu ponto aqui é que a primeira coisa que você nota ao iniciar Evergrace é a trilha sonora. E, nossa, que trilha sonora! É estranha. É melancólica. É... deslocada. Parece parte Akira, parte Made in Abyss, parte "acordou às 3 da manhã e não sabia se aquele zumbido era real ou apenas sua casa relembrando o passado". É difícil de explicar. 

Só que esse é o ponto: essa confusão suave misturada com admiração, como se você estivesse tentando se lembrar dos detalhes de um sonho enquanto a luz da manhã desvanece as memórias da noite anterior? É o From Software Dream-Mojo™ a todo vapor. Não está presente em ETERNAL RING, mas aqui em Sempregraça, te atinge como um sutil trem de carga emocional. Você não sabe o que esse lamento inspirador significa, mas deve significar alguma coisa. Provavelmente. Esperançosamente. Espiritualmente?

Eu não sei. O que eu sei é que essa, meus amigos, é a From Software Full Experience. Era disso que eu estava falando que faltava em ETERNAL RING!


E enquanto a música esteja imersa nessa sensação onírica e nebulosa de aventura que esperamos — não, exigimos — da FromSoftware, a história não é diferente. Ou devo dizer histórias, porque Evergrace mete um THREADS OF FATE  e oferece duas campanhas separadas. Dois protagonistas. Duas jornadas. Duas chances de perguntar: que diabos está acontecendo?

Pq sério, eu juro para vocês — joguei as duas campanhas. Li a wiki. Perguntei no Reddit. Cheguei a encarar o vazio (a tela de carregamento) por um bom tempo, na esperança de uma visão divina. E ainda sim eu não entendi a história desse jogo. Não completamente. Não no sentido de "história linear". O que, sinceramente, é uma coisa bem FromSoftware.


Parte da confusão é a assinatura habitual da FromSoft: nenhuma narrativa direta. Este é o mesmo estúdio que achou que "história por meio de descrições de itens" era uma maneira completamente válida de apresentar a trama em Dark Souls. E eles não estavam errados. Mas isso significa que você está sempre a dois passos da compreensão e a dez passos de se afundar em metáforas.

A outra razão pela qual é dificil entender a história desse jogo é menos nobre: sua tradução é daquelas feita com a bunda, o que nos brinda com momentos que variam entre o incompreensível e... bem, isso:


WHAT. THE. ACTUAL. FUCK?!?

Hã... deixando de lado o que quer que isso tenha sido... para piorar, Evergrace teve um desenvolvimento problemático: a ideia inicial era para ser um jogo de PS2, mas no meio do caminho decidiram que haveria um port para PS1. Com cerca de metade do jogo para PS1 pronto, eles decidiram desistir e focar só em fazer o jogo para PS2 mesmo. O resultado desse estica e puxa pra lá e pra cá é que a história foi recortada para caber no PS1 e depois colada de volta quando voltou a ser um exclusivo de PS2, e ficou aquela coisa daquele jeito bem gambiarrado.

Eis o que eu acho que está acontecendo: ambos os protagonistas — Darius e Sharline — acordam em uma terra chamada Riunbane, que eles pensavam ser apenas um mito, tipo um dia acordar duneida em Atlantida e ficar "carai viado, essa porra existiu mesmo?". Talvez não com esse vocabulário, mas você entendeu. Seja como for, a treta é que o grande mago de Riunbane está... sequestrando? invocando? recrutando espiritualmente pelo LinkedIn? pessoas com características especiais para algum tipo de enredo com poderes mágicos vagamente definidos. Talvez dominar o mundo, talvez terapia. Não sei. O jogo não me conta. Ninguém me conta.

É uma história, sim. Uma história bem FromSoftware. Confusa, fragmentada, misteriosa e entregue como uma caixa de peças de quebra-cabeça de vários quebra-cabeças diferentes — mas que te faz querer continuar. Porque algo está acontecendo. Provavelmente. Talvez.


E se a trilha sonora e a história parecem um sonho febril prototípico da FromSoft, é na jogabilidade que as coisas ficam historicamente interessantes. É aí que os óculos de viajante do tempo entram em cena e você começa a olhar para a tela, tipo: "Espera um segundo... isso é... eu conheço isso!"

Veja bem, Evergrace é tecnicamente um RPG hack-and-slash em terceira pessoa. Mas não do tipo em que você só maceta botões e torce para que seu corte de cabelo de anime te leve à vitória. Não, não, não. A FromSoft não faz "diversão apertando botões". Eles fazem "sofrimento estratégico".


Seu personagem — e seus inimigos — têm peso, momentum e quadros de recuperação que não seriam totalmente estranhos a um jogo de luta (e dos bons). Ataques não são apenas ataques; são compromissos. Cada golpe tem um ponto de partida, uma duração e um período da sua vida passando diante dos seus olhos quando você erra e vê a porrada vindo enquanto sua guarda está aberta. O combate é bastante sobre ler movimentos telegrafados, esquivar com intenção e punir erros, não apenas apertar o botão quadrado até o polegar cair.

Isso soa familiar? Deveria. É basicamente o rascunho em um guardanapo do combate de Dark Souls. Está tudo aqui: gerenciamento de stamina(mais ou menos), ataques deliberados, inimigos que punem jogadas desleixadas e aquela sensação de satisfação quando você consegue pegar a defesa do cara aberta e finalmente poder dizer "tu tá fodido na minha mão agora, rapa"

Novamente, tenha em mente entretanto que isso é apenas um rascunho inicial e é bem mais desajeitado e clunky do que vc se sentiria confortável. Mas você consegue sentir o DNA de algo maior. Até o gerenciamento de stamina — o pilar central da fórmula Soulslike — está aqui... embora de uma forma bem a-FromSoftware-ainda-não-sabe-o-que-está-fazendo. 


Veja, em Evergrace, sua barra de stamina é sempre do tamanho da sua barra de HP, não importa o quanto de energia você tenha. A coisa é que seus ataques só são eficazes quando sua stamina está em 100%, o que significa que quanto menor sua vida, mais rápido sua staminase recarrega.

Sim. O jogo recompensa você por estar à beira da morte, permitindo que você balance sua arma com mais frequência. É uma mecanica de risco-recompensa muito interessante, porém infinitas vezes mais perigosa porque Evergrace é impiedosamente difícil. Você está a uma esquiva mal sucedida de virar uma entrada na coluna de obituários do Riunbane. Ainda sim, esse sistema de risco-recompensa, essa tentação de ficar com pouca vida em troca de você ficar mais agressivo, isso é o tipo de loucura que só a FromSoft consideraria completamente normal - abençoados sejam.

Mas o ponto principal — onde eu quero chegar com isso — é ver a fórmula proto-Souls se formando. Essa dança delicada e perigosa entre stamina, esquiva, momentum e leitura dos movimentos inimigos... mesmo nessa forma primitiva, áspera, quase não funcional, é fascinante. É como assistir a um homem das cavernas esfregar dois gravetos e se surpreender com a primeira faísca. É testemunhar o momento em que a primeira forma de vida rastejou para fora do mar, olhou pra trás e pensou: "Heh heh, firstzão, otários!".


É rudimentar. É quase não funcional. Mas saber no que essa confusão de sistemas eventualmente evoluirá — em Demon's Souls, Dark Souls, Elden Ring — dá a este jogo um estranho caráter histórico. É por momentos assim que eu faço essas reviews, sabe. Para momentos como este. Para jogos como este. Para testemunhar os ancestrais desajeitados e quebrados que deram início a tudo.

Graficamente, esta é provavelmente a parte menos impressionante de Evergrace. É... bom. Passável para um título do começo da 6ª geração feito por um estúdio que ainda tentava descobrir onde ficavam os botões do kit de desenvolvimento do PS2. Dá para perceber que a FromSoft ainda não estava totalmente confortável com o hardware. Há vislumbres da identidade visual do estúdio — corredores liminares, castelos vazios, florestas fossilizadas que parecem estar te julgando silenciosamente — mas, na maior parte, é visualmente genérico. Um pouco cinza, um pouco irregular, com muito "da próxima vez a gente acerta".

Mas — MAS — dizer que o jogo não faz nada de especial no quesito visual seria um crime. Porque Evergrace tinha algo que era revolucionário na época. Algo que tomamos como garantido hoje em dia. Algo que fazia eu, jovem mancebo adolescente do ano 2000, suspirar audivelmente: sua armadura aparece no seu personagem.


Eu sei. De tirar o fôlego. Você calça botas? Você vê as botas. Equipa um capacete? Tá lá. Isso parece trivial agora — RPGs modernos têm sistemas de transmogrificação inteiros dedicados a isso — mas em 2000, isso beirava a feitiçaria. E não é só cosmético. Diferentes peças de armadura e armas concedem habilidades especiais — flutuar, correr, atirar bolas de fogo, etc. — e trocar de equipamento no meio da masmorra se torna uma mecânica de resoluçõa de puzzles. 

Mas, honestamente, quem se importa com funcionalidade quando você pode usar uma panela na cabeça e botas de palhaço gigantes e isso realmente aparece nas cutscenes? Essa é a verdadeira magia da FromSoft. Não as bolas de fogo. Não as botas flutuantes. Mas a capacidade de parecer completamente ridículo em uma terra amaldiçoada de tristeza e ainda ser tratado como o Escolhido.

Então... Evergrace é um ótimo jogo? Não, realmente. 


O combate é desajeitado. A história é um sonho febril embrulhada em uma tradução ruim. Os cenários frequentemente caem na "zona de fantasia padrão do início dos anos 2000". Não é particularmente polido, profundo ou mesmo coerente na maior parte do tempo.

Mas aqui está a coisa: é fascinante. Porque você consegue ver. Bem ali, quase na superfície: os primeiros brotos frágeis de algo que se tornaria um dos subgêneros mais amados e influentes dos jogos modernos. Esta é a raiz da árvore genealógica dos jogos Soulslike. Você consegue identificar a estrutura inicial — a melancolia onírica, o combate pesado e focado em stamina e momentum, a ideia de que a arma que você escolhe define todo o seu estilo de jogo por meio de timing, alcance e ritmo.

Podemos tirar um momento para apreciar a lojista aqui é uma anta antropomorfica por razão nenhuma?

Por si só, Evergrace é apenas uma nota de rodapé na história dos videogames. Um pequeno experimento peculiar de um estúdio que ainda está se descobrindo em um novo hardware. Mais um RPG hack-and-slash em uma era imersa neles. Mas, quando visto pela lente do que eventualmente se tornaria — Demon's Souls, Dark Souls, Bloodborne, Elden Ring — ele se transforma.

Torna-se um momento mágico. O primeiro suspiro. O primeiro passo. O rastejar desajeitado, mas sincero, de algo que um dia se tornaria uma lenda. São por momentos como esse que eu estou aqui.

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