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Duneida essa cutucada em Final Fantasy, que tava quieto no canto dele |
Um dos mitos mais persistentes e prejudiciais em nossa cultura é o "mito da genialidade" — a ideia de que algumas pessoas simplesmente nascem diferentes. Dotadas. Tocadas pelos deuses. Que acordam um dia, esticam estalam seu pescoço divino e criam obras de arte sem esforço, enquanto o resto de nós, meros mortais, tem que se virar movida a café e lutando contra a síndrome do impostor.
Mas aí é que está a coisa: predisposição genética existe. Talento existe. Mas não existe gênio sem esforço. Mesmo os indivíduos mais talentosos se esforçam por sua arte. Cristiano Ronaldo não acorda simplesmente com um abdômen trincado e uma pontaria perfeita — ele tem uma academia particular na sua casa que faria fisiculturistas chorarem lágrimas de proteína em pó. Einstein não espirrou E=mc² entre os cochilos — ele passou incontáveis noites sem dormir estudando matemática hardcoremente. Não existe mágica. Só trabalho.
Então, por que estou falando sobre isso?
Porque quando você olha para a FromSoftware hoje — um estúdio que conquista prêmios de Jogo do Ano como se fosse um passatempo — é fácil cair na mesma armadilha. "Ah, eles são simplesmente gênios. Eles fazem um Elden Ring dormindo."
Não. Eles são gênios dos videogames, sim — mas nada disso veio fácil. O que você está vendo agora é a ponta reluzente de um iceberg muito profundo, forjado ao longo de quase trinta anos de tentativa, erro e repetição. Eles não simplesmente saíram da cama um dia e disseram: "Vamos fazer, sabe, um Dark Souls, só de zoas". Não. Eles estão martelando seu ofício literalmente a decadas, trabalhando duro, aprendendo, falhando, aprimorando.
O que nos leva a Eternal Ring. Nome familiar, huh?
Este jogo é mais que uma relíquia. É uma cápsula do tempo — um vislumbre fossilizado da adolescência constrangedora de um estúdio que ainda tentava descobrir que tipo de besta eles queriam ser. Se Elden Ring é uma imponente catedral de design, Eternal Ring é a pilha de tijolos em que alguém tropeçou a caminho da pedreira. Mas é isso que o torna interessante.
Há três anos atrás eu escrevi sobre KING'S FIELD — ou King's Field II, se você estiver usando a numeração japonesa que existe apenas para nos deixar um pouco mais confusos do que o necessário. Agora, embora não seja exatamente a joia da coroa da biblioteca do PS1, você já consegue identificar fragmentos daquele DNA característico da FromSoftware escondidos nas sombras. Aquele vazio etéreo, aquela estranha sensação de que você acabou de chegar a uma festa onde as cadeiras já estão empilhadas e a música parou horas atrás. A dificuldade implacável. O combate lento, tenso e mano a mano que parece menos uma briga e mais uma partida de xadrez com espadas.
Tosco? Sim. Fascinante? Com certeza.
Só que no Ocidente, King's Field nunca decolou de verdade — talvez lento demais, estranho demais, à frente demais do que as pessoas achavam que queriam. Mas no Japão era o carro-chefe da FromSoftware, o bebê deles. No final da era do PS1, eles já estavam trabalhando em King's Field IV para o PS2, um jogo que eventualmente se tornaria um clássico cult e, sem dúvida, o verdadeiro protótipo da fórmula de Souls.
Mas tinha um problema: King's Field IV só estaria pronto em 2001, e o novíssimo PlayStation 2 da Sony estava prestes a ser lançado em março de 2000 — o lançamento de console mais aguardado da história até então. Todos queriam participar daquela janela de lançamento. A Sony precisava de jogos. Os fãs estavam famintos. A FromSoftware queria estar lá. Eles queriam surfar nessa onda de hype. Mas eles também sabiam que KF4 não seria lançado a tempo.
Então, o que você faz quando é um estúdio pequeno com uma série amada e não quer queimar o nome dela com um título abaixo do que você pode entregar? Você faz alguma outra coisa. Rápido. Você não quer arriscar seu filho de ouro — Campo do Rei era a joia da coroa deles — então você cria um novo nome, adiciona algumas mecânicas novas, mistura e combina alguns recursos e voilà: Anel Eterno. Eternal Ring não é bem King's Field, mas também não não-é King's Field. Um irmão espiritual nascido da necessidade financeira e do pragmatismo corporativo.
A história é exatamente o que você esperaria do velho raguru da FromSoftware: o rei, temendo um golpe dos Anciões (porque, claro, os Anciões estão sempre tramando), envia você — um pobre coitado — para uma ilha há muito esquecida, para onde poucos retornaram. Você sabe. Aquele lugar clássico de férias.
Este não é um território novo para a FromSoft — o plano "vá a um lugar amaldiçoado e encontre/mate a coisa" é o que eles fazem desde que o mundo é mundo, de King's Field a Souls e Elden Ring. É o prato favorito deles. Mas aqui, você não está procurando apenas por uma pedra brilhante ou uma relíquia esquecida. Não, não. Você está atrás do brilho máximo: O Anel Eterno. O mais poderoso de todos os anéis. O anel para a todos governar e na escuridão aprisioná-los.
ENTÃO BASICAMENTE ELES FIZERAM UMA VERSÃO DA SHOPEE DE SENHOR DOS ANÉIS?
Basicamente, Jorge. Sutil? Absolutamente não. Inovador? Também não. Não é exatamente o melhor momento narrativo da FromSoftware — mais como "precisamos de um enredo em dez minutos" no intervalo do almoço — mas cumpre o seu papel. Vagamente. Mas se a história já está bem longe do cenário "simples-mas-não-exatamente" característico da FromSoftware — aquela narrativa ambiental em camadas onde as ruínas falam mais alto que o diálogo — então vamos falar da música. Ou melhor... a ausência de alma nela.
Sai a atmosfera melancólica que geralmente assombra os títulos da FromSoft — aquele luto silencioso e sinistro que conta uma história de reinos caídos, tragédias esquecidas e arrependimentos antigos demais para nomear. Sabe, aquelas coisas que te atingem direto no peito enquanto você está sendo devorado vivo por alguma abominação grotesca. Em vez disso? Você tem... a trilha sonora genérica de fantasia nº 27. Toquem as trombetas. Toquem as fanfarras vagamente heroicas. Dá a sensação de estar em um MMO medieval barato de 2003.
Tá, eu entendo, Eternal Ring foi feito com um prazo apertado com recursos escassos, mas ainda assim — genérico? Em um jogo da FromSoftware? Essas são palavras que eu nunca achei que usaria na mesma frase. Até as piores ideias deles costumam parecer estranhamente únicas e aqui aqui, parece que alguém encontrou o CD-ROM "Música de Fundo de Fantasia" e apertou o play.
E a falta de visão artística na trilha sonora se infiltra em todo o jogo.
Veja — Eternal Ring não é um um jogo ruim mecanicamente. Não é um desastre. Tudo funciona. O combate funciona. O sistema de progressão existe. Os sistema de anéis funciona (mais sobre isso daqui a pouco). Mas esse é o problema — é tudo dolorosamente apenas competente. Sem inspiração. Sem ousadia. Apenas... esta ali. E esse é o maior pecado do jogo: é sem graça.
A exploração, geralmente o pilar mais forte da FromSoftware, sofre uma queda acentuada aqui. O design do mundo é dolorosamente linear, desprovido de mistério e perigo. Mesmo as iterações anteriores de KING'S FIELD te faziam sentir perdido em um sonho envolto em neblina, aqui é mais como se você estivesse andando por um corredor gerado por uma IA procedural sem vida.
É tão básico que a única razão pela qual você não termina o jogo em menos de três horas é porque ele não te dá absolutamente nenhuma direção. Nenhum mapa. Nenhuma pista. Você não está explorando — você está apenas perdido. Se te desse a mínima dica de para onde ir, você poderia passar por tudo numa brisa.
E por falar em vento, para um jogo que deveria ser sobre magia, lançar feitiços em Eternal Ring é terrivelmente aborrecido. O sistema de magia — centrado na criação de mais de 100 anéis usando diferentes combinações elementais — parece incrível no papel. Na prática a maioria dos feitiços é esquecível, desajeitada e muito menos eficaz do que simplesmente bater em coisas.
Agora, para ser justo — e sim, o Anel Eterno merece pelo menos um pouco de justiça — o sistema de crafting é bem legal. Está enterrado sob uma montanha de mediocridade, claro, e no fim das contas não importa porque a magia neste jogo é bem qualquer coisa, mas ainda assim os inimigos dropam pedras elementais com valores variados e você tem que combinar elas pra ver que anel sai.
Meu ponto é que existe uma genuína sensação de descoberta aqui, e em outro universo — um onde a magia não fosse tão bleh — isso poderia ter sido a espinha dorsal de um sistema brilhante. Você se sente como um mago experimentando em uma oficina empoeirada, tentando desvendar a combinação perfeita. Tem profundidade, criatividade e um pouco daquela estranheza da FromSoftware. Mas então, novamente, é um sistema que permite que você forje mais de cem anéis mágicos diferentes e você só precisa de, tipo, dois deles... algo deu terrivelmente errado.
No campo gráfico... Para um título de lançamento do PS2, você esperaria que ele mostrasse pelo menos um pouco daquela força da próxima geração — exibisse bonecos com mais poligonos, talvez nos impressionasse com iluminação ou texturas. Em vez disso, o que temos parece mais um jogo de N64 de 2001 que foi parar no console errado.
E nem mesmo um jogo top tier de N64. Nem é tipo um PERFECT DARK da vida, estou falando de algo que lembra mais algo como dos níveis de fidelidade de SHADOWGATE 64: Trials of the Four Towers. Os ambientes são planos e sem vida, as texturas são lamacentas onde você nunca tem certeza se é uma parede, uma porta ou apenas tristeza. Modelos de personagens? Quadrados. Animação? Rígidos. Design de inimigos? Varia de "ok" a "Acho que era para ser uma aranha?".
Não ajuda que a paleta de cores pareça que alguém derramou bege na tela e pronto. Não tem nenhuma sensação de atmosfera, nenhuma vista impressionante, nenhum momento "uau" que faça você parar e absorver. Simplesmente... existe, como uma fase placeholder que acidentalmente foi lançada como um jogo completo.
Então, em conclusão: Eternal Ring não é um jogo ruim. A FromSoftware, mesmo em seus primórdios, não saberia como fazer algo realmente ruim — e, crédito a quem merece, essa coisa roda perfeitamente a 60 FPS, o que é francamente impressionante para um título de lançamento do PS2. Tecnicamente, ele funciona. Estruturalmente, ele funciona. Mas aqui está a questão — às vezes, isso é quase pior.
Porque o que Eternal Ring acaba sendo é algo muito mais condenável do que quebrado ou bizarro: é chato. Sem graça. Sem inspiração. É um jogo que exige muito do jogador — dificuldade brutal, sem mapa, combate rígido — mas oferece quase nada em troca. Sem atmosfera. Sem sensação real de descoberta. Sem faísca.
Você golpeia as coisas com uma espada tão rígida que faz o arsenal do King's Field parecer ginastas olímpicos. Você lança feitiços que criar ele é mais legal do que usa-los. Você vagueia por corredores lineares fingindo estar explorando, quando, na verdade, você está apenas perdido e irritado.
E, no fim das contas, a única razão real pela qual Eternal Ring é lembrado é o nome de quem o fez — o agora lendária FromSoftware. Não é uma joia escondida. Não é mal interpretado. É uma nota de rodapé, e é exatamente aí que ele pertence.
Mas como eu disse, é isso é o que acaba fazendo esse jogo ser interessante. Porque este jogo é uma cápsula do tempo — um lembrete de que a grandeza não é um dom, ela é conquistada. Ela é forjada por meio de erros, experimentos e, sim, alguns títulos de lançamento bem chatos. A FromSoft não acordou um dia e criou Demon's Souls do nada. Eles trabalharam. Eles falharam. Eles aprenderam. Eles construíram sua identidade ao longo de décadas.
E Eternal Ring — sem graça, desajeitado, esquecível — é uma das primeiras faíscas desse fogo ardente que queimaria o mundo.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMESEDIÇÃO 149 (Março de 2000)
EDIÇÃO 150 (Abril de 2000)