sexta-feira, 9 de maio de 2025

[#1470][Jul/2000] GUILTY GEAR X


Agora, se você estava prestado atenção — e não tem pq não estar, afinal sejamos honestos, se você está lendo isso então claramente não tem nada melhor para fazer — você já conhece a história. GUILTY GEAR: The Missing Link foi o jogo que levou a Arc System Works, uma empresa anteriormente conhecida por empreendimentos emocionantes como ports terceirizados e shovelware, e a elevou ao panteão das lendas dos jogos de luta que é hoje. Tudo graças a Daisuke Ishiwatari: um homem que, naquela época, mal tinha idade para comprar uma cerveja, mas de alguma forma conseguiu convencer a ArcSys a financiar o que era essencialmente um AMV jogável com um solo de guitarra do Dream Theater.

Mas eu já contei essa história naquela época. O GUILTY GEAR: The Missing Link original — com falhas, exploits e uma decisão questionável de deixar você spammar one hit kill em um jogo de luta — era uma bela bagunça. Um mergulho punk rock no cenário dos jogos de luta, mostrando o dedo do meio para a Capcom e a SNK enquanto arrasava no solo de guitarra. Não foi um jogo perfeito, mas chamou a atenção. E, mais importante, virou a cabeça da Sammy Corporation.


Sim, aquela Sammy. Aquele que já estava se aproximando da Sega antes do casamento de conveniencias em 2004 quando eles entraram com o dinheiro e a Sega com o nome. Eles viram a loucura crua, barulhenta e movida a anime que Ishiwatari e seu "Neo Blood Team" haviam criado e pensaram: "Isso tem potencial. Vamos investir nisso." E investiram mesmo — tirando a equipe das limitações do do hardware PS1 e indo para a placa de arcade Sega Naomi, que, para os padrões de 2000, era basicamente conectar seu jogo diretamente à Matrix.

O resultado é Guilty Gear X. Maior, mais limpo e agora em gloriosos sprites 2D de alta resolução que pareciam animação de verdade em vez de alucinações pixeladas que se batiam contra os limites de RAM do PS1. Finalmente, Guilty Gear não estava apenas tentando ser o jogo de luta de anime dos seus sonhos — ele era.


Mas aqui está o problema: quando você recebe dinheiro corporativo, também recebe supervisão corporativa. E embora Guilty Gear X seja inegavelmente mais refinado, mais profissional e definitivamente mais estável (RIP, instakills a cada 3 segundos), ele também perde um pouco da energia "dane-se" que tornou o original tão cativante. Chega de criatividade crua e desesperada extraída de hardware limitado. Agora ele tinha que ser apresentável. Comercializável. Menos banda thrash de porão, mais banda de abertura para turnê em estádios.

Então, a questão é: Guilty Gear X conseguiu manter sua alma de anime-AMV viva sob as frias luzes fluorescentes da sala de reuniões? Ou se tornou mais um produto brilhante e testado com foco, destinado a vender máquinas de fliperama e produtos? É o que descobriremos a seguir.

Vamos começar pelo óbvio: Guilty Gear X parece lindo, e é porque é mesmo. Os sprites deste jogo têm quase o dobro da contagem de pixels de MARVEL VS CAPCOM: Clash of Superheroes. Isso mesmo — o dobro. Guilty Gear X não queria ser apenas um jogo de luta de anime; queria apagar a linha entre o jogo e o bootleg em VHS de Berserk. Não era apenas inspirado em anime — era o primo perdido e viciado em anime que entrou para uma banda de metal e voltou com três cintos e sem camisa.


Cada bola de fogo, cada corte, cada movimento de cabelo exageradamente dramático é renderizado com carinho em glória 2D de alta resolução. E isso não é só para fotos: o jogo roda a sólidos 60 FPS, o que significa que Guilty Gear X não é apenas bonito — é suave como um solo de Yngwie Malmsteen depois de seis Red Bulls. A Sega Naomi era o topo de linha do mercado de arcades na sua época (sendo o hardware onde foi feito DEAD OR ALIVE 2, por exemplo), mas até ela suou sob esse nível de excesso de animação. Mas, como todos sabemos, em jogos de luta — assim como na vida — não existe almoço grátis. Porque, apesar de todos os pixels extras, do acabamento glorioso e da apresentação caprichada, algo tinha que ceder. E quem pagou o pato aqui foi a velocidade. 

É. Guilty Gear X é, na verdade, mais lento que o primeiro jogo. Que isso se absorva. Em uma indústria onde sequências geralmente deixam os jogos mais dinamicos e rápidos a cada iteração, a ArcSys teve que pisar no freio. Por causa das limitações técnicas. Todos aqueles belos sprites custam memória. Quadros custam memória. Animações custam memória. Então, em vez do caos frenético e turbinado do original, você tem algo que parece mais pesado, mais deliberado. Os personagens agora têm mais peso. Os movimentos levam seu tempo. Não é lento — mas definitivamente não é Guilty Gear Turbo Hyper Fighting Edition.


Mas então entra a parte onde isso realmente importa: Ishiwatari não lutou contra as limitações — ele as abraçou. Porque se tem uma coisa que Daisuke deixou dolorosamente claro desde o primeiro dia, é isso: ele não se importa com os sentimentos de um jogador casual.

Guilty Gear nunca foi pensado para ser acessível. Nunca foi pensado para ser o seu jogo de luta de entrada amigável da vizinhança. Esta é uma série feita para as pessoas que memorizam dados de frames por diversão, que sabem o que é um "Roman Cancel" sem pestanejar, que dizem coisas como "esse personagem é um zoner" em conversas casuais e sabem do que estão falando. Ishiwatari não queria que você apertasse botões e se sentisse maneiro — ele era um pro-player de jogos de luta e queria fazer um jogo de luta para viciados como ele. Então, quando a transição para Guilty Gear X significou que o jogo precisava ser mais lento? Sua resposta foi basicamente: "Ótimo. Vamos torná-lo ainda mais técnico. Os de verdade vamos ver quem são."


O resultado é um jogo de luta tão denso em mecânicas que poderia muito bem vir com um manual do SENAI. Você tem Defesa Impecável, Bloqueio Instantâneo, Cancelamentos de Guarda, investidas aéreas, recuperação aérea, arremessos aéreos e, sem esquecer, o Santo Graal de Guilty Gear: o Cancelamento Romano. E essas não são apenas mecânicas "avançadas" — são necessárias se você quiser sobreviver por mais de 30 segundos contra alguém que sabe o que está fazendo. Guilty Gear X não te dá a mão. Ele nem te oferece uma mão. 

Este jogo não foi feito para ser convidativo. Foi feito para separar os jogadores reais dos turistas. E se você não conseguisse aguentar azar o seu, quase dá pra ouvir Daisuke te dizendo que "sempre tem Marvel vs. Capcom 2 esperando na esquina com um pirulito e um abraço quentinho".

AH, QUALÉ, CARA. EU SEI QUE TU GOSTA DE EXAGERAR PARA EFEITOS DRAMÁTICOS, MAS NÃO TEM COMO A COISA SER TÃO HARDCORE ASSIM TAMBÉM...

Eu entendo você pensar que estou exagerando, Jorge. Que certamente nenhum humano — nenhum desenvolvedor — criaria intencionalmente um jogo que devora novatos e cospe dados de quadros na cara deles como uma impressora com defeito. Mas eu garanto — não estou.

E garanto ainda mais que Daisuke Ishiwatari não estava brincando.


O cara tinha uma missão. A missão de fazer o jogo de luta mais complexo e assumidamente hardcore deste lado de um vídeo de combo. E se você quer provas? Basta olhar o manual do jogo. Não o FAQ. Não o guia de estratégias. O manual normal, com encarte, "leia isto antes de ligar para o suporte ao cliente".

Tem SETE PÁGINAS. Ssete. Páginas inteiras. Dedicado exclusivamente à mecânica básica. Não aos movimentos especiais. Não aos supers. Não às configurações de 27 passos para One Hit Kill. Não — apenas aos "movimentos universais". Sabe, o que você precisa saber para fingir que está jogando corretamente. SETE. PÁGINAS DE MECANICAS. BÁSICAS. EM. UM JOGO DE LUTA. Nesse ponto, deixa de ser um manual e se torna um manifesto.


Porque, repito, Daisuke não estava apenas fazendo um jogo. Ele estava fazendo uma declaração. Um grito de guerra para os gamers hardcore. Uma carta de amor aos monstros de laboratório, aos cientistas de combos, aos guerreiros de torneios que sonham com oppeners e juggling. Quando Daisuke diz que não se preocupa com os jogadores casuais, ele estava falando filhadaputamente sério.

Agora, normalmente, quando analiso um jogo musical aqui no blog — coisas como BUST A GROOVE ou PARAPPA THE RAPPER — sou brutalmente honesto com vocês. Digo sem rodeios que tenho o ritmo musical de uma pedra de tijolo. Não apenas um tijolo. Não apenas uma pedra. Um tijolo E uma pedra. De alguma forma, combinando o ritmo sem vida de ambos para formar um buraco negro de molejo. Sempre fui sincero sobre isso. Não consigo seguir o tempo. Não consigo bater no ritmo. Se você me vir tentando jogar BEATMANIA, chame uma ambulância — provavelmente estou tendo uma convulsão.

Então imagine minha surpresa quando um jogo de luta — um gênero no qual dediquei horas, anos, talvez linhagens inteiras — me fez sentir exatamente da mesma maneira.


Então, o que eu posso te contar com alguma autoridade? Bem, e quanto à história — porque Guilty Gear X tem uma, e ela é insana. Mas primeiro, vamos recapitular a história do jogo anterior, sim? Ambientado no século 22, a humanidade descobriu uma nova fonte de energia infinita e a batizou de "magia", pq a criatividade aparentemente morreu em 2199. Isso sendo dito, a raça humana fez o que sempre faz quando descobre algo poderoso: imediatamente piorou a situação. 

Depois de desvendar os segredos da magia e proibir a ciência (sim, proibir a ciência), a humanidade usou esse poder para criar armas vivas conhecidas como Gears. E como nenhuma distopia de anime está completa sem uma revolta de IA/armas biológicas, um desses Gears decidiu se rebelar. Seu nome? Justiça. Seu plano? Declarar guerra à humanidade com um exército de Gears ao seu lado e arruinar o dia de todos.

Uma enorme guerra santa — literalmente chamada de Cruzadas — eclodiu entre o exército Gear de Justice e a Ordem Santa dos Cavaleiros Sagrados (sim, duplamente sagrada), culminando com Justice sendo selado em uma prisão dimensional sem acesso a internet. Alguns Gears tentaram solta-lo, outros tentaram impedir e isso foi a história do primeiro jogo.

Mas a paz é frágil e as pessoas estão paranoicas. Então, menos de um ano depois quando surgem rumores sobre um outro Gear de primeira geração - assim como Justice - ainda vagando livremente e todos perdem a razão coletivamente. Essa coisa não está apenas funcionando — ela nem está matando ninguém. Está apenas na dela. E é exatamente isso que aterroriza a raça humana.

Então, em uma atitude muito sensata e razoável, a União das Nações oferece uma recompensa de 500.000 Dólares Mundiais (uma moeda tão falsa que poderia muito bem ser dinheiro do Banco Imobiliário) para quem conseguir matar essa misteriosa Gear. Criminosos? Permitidos. Assassinato? Esperado. E no meio de todo esse caos? Nosso Gear protagonista do jogo anterior: Sol Badguy, um nome que parece ter sido criado por um adolescente ansioso na detenção — porque foi mesmo. 

Então, é isso aí, esquisitos de todas as esferas da vida — Gears, Cavaleiros Sagrados, caçadores de recompensas, caras com tacos de sinuca, literalmente viajantes do tempo — decidem que a melhor maneira de resolver essa crise política e existencial é se espancando educadamente em um torneio. Por quê? Porque todo mundo quer um pedaço da nossa misteriosamente dócil garota Gear, Dizzy. Alguns querem protegê-la. Alguns querem destruí-la. Alguns só querem o dinheiro. E embora Dizzy realmente prefira ficar na dela em uma floresta tranquila, observando pássaros ou seja lá o que as garotas meio Gear façam em paz... ela está absolutamente pronta para destruir toda a sua existência se você tentar alguma coisa engraçada.


E é aí que está a coisa interessante — porque Guilty Gear X não põe um chefe roubado só para dar um toque especial. Não, Dizzy é difícil porque o jogo conhece seus próprios sistemas e usa todas as mecânicas para te derrotar sem dó. Ela não é difícil porque a CPU trapaceia (bem, na maioria das vezes). Ela é difícil porque ele sabe de cor e salteado todas as suas mecanicas, e não vai hesitar em usa-las numa velocidade alucinante. Seu rosto vai ficar grudado no asfalto digital como um skate pela metade do preço em um estacionamento, mas pelo menos vai parecer merecido. Na maioria das vezes.

O elenco retorna do jogo anterior, com algumas poucas adições, e como são poucas podemos muito bem ir a isso então: vamos começar com Dizzy, o centro da tempestade. Ela é uma meio-Gear com dois seres sencientes crescendo em suas costas — Necro (um morcego da Morte) e Undine (a moça anjo de gelo) — e sim, eles discutem enquanto a ajudam a lutar. Ela é basicamente a doce garota do anime que se desculparia enquanto vaporizava toda a sua linhagem. Dizzy é tanto a âncora emocional da trama quanto a chefe final, e, nossa, se você achava que ser adorável a tornava menos perigosa, prepare-se para conhecer a estratosfera.

Então você tem Jam Kuradoberi, uma chef de artes marciais que espanca pessoas até deixá-las inconscientes para conseguir financiamento para restaurantes. Sim, ela está perseguindo seu sonho de abrir o restaurante chinês definitivo, e vai fazer isso chutando a cara de todo mundo. Imagine Chun-Li com uma wok. Ela é rápida, agressiva e adoravelmente mortal.



Venom também entra em cena, um mestre da sinuca que luta usando apenas um taco e um monte de bolas de bilhar mágicas. E não, eu não estou inventando isso. Maneiro? Com ​​certeza. Compreensível? Quase. Ele é leal à Guilda dos Assassinos e só quer impressionar uma chefe cega por quem pode ou não estar perdidamente apaixonado. Romântico? Talvez. Creepy? Talvez também. Guilty Gear não julga.


Também temos Faust, que voltou do primeiro jogo, mas agora completamente fora de si. Ele costumava ser um médico sensato chamado Dr. Baldhead — agora ele é um pesadelo cartunesco de 3 metros de altura com um saco de papel na cabeça, distribuindo o caos com um bisturi gigante e se teletransportando como seu pior amigo de Smash Bros. 


E não podemos esquecer Testament, o necromante abraçador de árvores mais gótico que você já viu. Anteriormente humano, agora parte Gear e completamente farto das bobagens da humanidade, Testament usa armadilhas, venenos e uma súcubo demoníaca chamada EXE Beast. Ele é o tipo de personagem que parece ouvir exclusivamente metal sinfônico enquanto escreve poesia sobre ossos.

Mas enfim, se hoje Guilty Gear é praticamente um texto sagrado para jogadores profissionais, repleto de gírias arcanas, obsessão por dados de quadros e torneios que parecem duelos digitais — agora você sabe onde tudo começou. O primeiro jogo foi uma carta de amor caótica aos jogos de luta de um adolescente com mais paixão do que refinamento. Mas Guilty Gear X é onde a série calçou botas de verdade e decidiu colocar a mão na massa para se tornar o que significa hoje.

Agora, colocar uma animação de final para os personagens não teria arrancado pedaço, né?

Com o dinheiro do Sammy e a tecnologia de arcade da Sega, Daisuke Ishiwatari finalmente tinha as ferramentas para criar seu jogo — não apenas uma prova de conceito fragmentada, mas uma declaração completa. É focado, deliberado e, sim, ainda orgulhosamente anime pra caramba. Guilty Gear X não vendeu sua alma punk-rock — ele encontrou uma maneira de amplificá-la. A Sammy não disse "diminua o tom", eles disseram: "Nós curtimos essa coisa de 'dane-se o mainstream' — se você está indo para um nicho, vamos fazer de você o rei daquela montanha. Temos pessoas que podem ajudar."

E numa das raras vezes na história dos jogos, uma história sobre uma grande empresa financiando um pequeno projeto de arte estranho termina com um good ending. Daisuke realizou seu sonho, nós tivemos uma franquia de luta que definiria o gênero, e Guilty Gear começou sua ascensão de excentricidade cult a padrão ouro.

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