sexta-feira, 23 de maio de 2025

[#1477][Jul/1980] MISSILE COMMAND


Vamos começar a review de hoje com uma breve cinemática.

Um homem está à beira de um vale, o vento batendo em seu casaco enquanto observa mísseis cruzarem o céu como lanças divinas. Eles estão indo direto para sua cidade natal. Seu lar. Ele não corre. Qual seria o ponto?

Lá embaixo é onde ele cresceu. Onde ralou os joelhos em calçadas rachadas, beijou seu primeiro amor sob postes de luz enferrujados, riu, lutou, viveu. Seus pais estão lá. Seus amigos. Pessoas que nunca pediram por isso. Pessoas que não merecem isso.

E agora — por causa de decisões tomadas em salas cheias de ternos e silêncio — tudo será apagado. Ele não consegue nem gritar. Sua boca está seca. Seus pensamentos estão altos.

Por quê?
Por que somos nós que estamos sendo eliminados?
Não votamos por esta guerra.
Não disparamos nenhum míssil.
Meu pai trabalhava em uma padaria. Minha mãe dava aulas de piano. Minha irmã ainda dorme com a luz acesa.
O que fizemos?
O que eles fizeram para merecer se tornarem sombras?

Ele olha para o céu novamente. Há uma beleza estranha nele. A maneira como as nuvens se abrem, abrindo espaço para a morte. Quarenta e cinco segundos, mais ou menos, até que a explosão o atinja. Até que seu corpo, seu nome, suas memórias, tudo o que ele amou ou odiou seja reduzido a átomos.

Não há tempo para respostas. Não há tempo para vingança.
Apenas tempo suficiente para um último pensamento amargo:

"Eles nunca saberão que eu estive aqui."

Ao contrário de muitas histórias que eu... hã, tomo liberdades criativas... para este blog, esta é real. Bem, não é REAL tipo mundo real. Ninguém que não seja um japonês de 90 anos de idade viu sua cidade ser bombardeada enquanto estava em uma colina com uma música melancólica de violino tocando ao fundo.


Mas esta visão? Este pesadelo? Ela assombrou Dave Theurer, o programador por trás de Missile Command, por meses. Ele já disse em entrevistas que após terminar o jogo, Theurer foi atormentado por um sonho recorrente: assistir impotente enquanto mísseis nucleares caíam sobre sua cidade natal, vendo tudo o que ele amava se vaporizar em um instante. A imagem não fazia parte de nenhuma proposta de filme de Hollywood. Não era sátira. Não era ficção. Era a consequência psicológica de projetar um jogo de arcade de 1980 sobre o fim do mundo. Um jogo em que você nunca vence de verdade. Apenas sobrevive — até que não sobrevive mais.

Mas para realmente entender Missile Command, você precisa entender o contexto da época. O que, fico feliz em admitir, eu absolutamente não entendo.


Eu não tenho a menor ideia de como era viver a Guerra Fria. Não consigo nem começar a compreender o que significava colocar os filhos na cama sabendo que algum comandante soviético poderia acordar um dia e decidir acabar com o mundo só porque exagerou na vodka. Ou que uma leitura de radar defeituosa poderia enviar alarmes falsos para algum general de dedo nervoso. Ou que algum espião de uma terceira parte poderia plantar uma informação falsa para desencadear a destruição mútua assegurada das duas maiores potencias. 

Você não receberia um aviso. Não teria tempo para correr. Você simplesmente... desapareceria. A vida poderia acabar em segundos, e você nunca saberia o porquê. Tudo o que você podia fazer era temer. Dar um beijo de boa noite no seu cônjuge e torcer para que ainda houvesse céu pela manhã.


Então, não — não, não posso dizer que realmente entendo o que significava viver com aquele tipo de espada de Dâmocles existencial balançando sobre sua cabeça por décadas. Porra, eu sou brasileiro, eu não consigo nem imaginar como é uma guerra normal, muito menos uma guerra que aniquila toda vida da face da Terra.

Digam o que quiserem sobre esse país de merda corrupto — mas eu vou morrer sem saber o que é participar de uma guerra. E isso, pelo menos, é uma bênção.

O que eu posso dizer que entendo é que Missile Command foi o primeiro jogo da história a se conectar com os jogadores em um nível profundamente pessoal. Não se tratava de explodir alienígenas pixelados só porque você podia. Não era uma mancha amarela comendo pontos em um labirinto de sonho febril. Não. Este jogo não era aleatório.


Este jogo era sobre uma coisa, e em 1980, todos sabiam exatamente o que era. Não precisava de uma cutscene. Não precisava de diálogo. Não precisava explicar nada. Porque quando você se sentava naquele fliperama e aqueles mísseis começavam a cair, você sabia. Você sentia.

O pânico crescente. A ansiedade. A compreensão silenciosa de que você não ia vencer — você só ia adiar o inevitável. Por alguns segundos. Talvez um minuto, se você for bom. Missile Command contava uma história inteira sem uma única palavra na tela. 

Em Missile Command, como o nome sugere, você está no comando da última linha de defesa. Você controla três bases de mísseis, encarregadas de proteger seis cidades de uma chuva interminável de destruição iminente.


Você perde quando todas as seis cidades são aniquiladas. Mas aqui está plot twitter: cada base de mísseis tem seu próprio suprimento limitado de munição. Uma vez que os misseis daquela base acabam, eles acabam. Ela se torna inútil. Sem recargas. E é aí que o jogo fica cruel.

Veja, Missile Command não é um jogo complexo, tecnicamente. Sem árvores de melhorias, sem momentos de história, sem diálogos. Mas é um jogo cheio de escolhas — algumas delas aterrorizantes. Porque para vencer uma rodada, você só precisa de uma cidade para sobreviver. O que significa... você vai ter que deixar algumas cidades morrerem.

O remake de 1999 para PS1 e PC substitui a ameaça nuclear por aliens

Pense nisso. Não "vidas" simbólicas como corações em um jogo de fantasia. Estas são cidades. Você sabe o que é uma cidade. Você pode imaginar. Famílias. Escolas. Cachorros latindo. Pessoas vivendo suas vidas sob a ilusão de segurança. E então — bum. Sumiu. Porque você tinha que economizar munição. Porque você tinha que tomar a decisão difícil.

Aqui está o ponto crucial: Missile Command fez isso décadas antes dos roteiristas da BioWare sequer existirem para nos dar narrativas ramificadas e as chamadas "escolhas morais". Este jogo não te dá tempo para refletir. Sem medidor de Paragon/Renegade. Apenas uma decisão em frações de segundo: Quais cidades eu salvo? E quais eu sacrifico para poder passar para a próxima rodada?

Quanto mais eu penso em Missile Command, mais admiro o quanto ele consegue com tão pouco. Sua missão é clara, realista, aterrorizante: defender suas cidades da aniquilação nuclear. É a gamificação de um medo muito real e específico que assombrou uma geração inteira de americanos.


E não se explica. Não precisa. Não tem intro, narrador ou textão dizendo o que está em jogo. É quase como se o jogo dissesse: "Se você sabe, você sabe." De certa forma, Missile Command é o equivalente arcade de 1980 de algo como Era Uma Vez em... Hollywood — ambicioso, contando que o expectador entenda o contexto, enganosamente simples. 

A jogabilidade é básica, mas tensa. Visceral. Divertida, até, até que de repente deixa de ser. Os gráficos são evocativos na medida certa. E as escolhas que ele te força a fazer são brutais. Você não está salvando vidas. Você está decidindo quais vidas sacrificar para que o resto possa sobreviver um pouco mais.

Em um jogo arcade de 1980, nada menos.

No remake tambem foram adicionadas batalhas de chefes

Isto não é apenas um bom design. É uma aula magistral de narrativa interativa. Uma lição de contenção, peso emocional e clareza mecânica. E quando você pensa que já viu de tudo, quando está sobrecarregado, sem mísseis, assistindo à última cidade cair... O jogo dá um golpe final.

Sem "Game Over".
Sem gráficos de explosão cafonas.
Apenas uma mensam pixeladas e fria:


FIM.
É sempre assim que termina.

O que torna Missile Command tão notável não é apenas o fato de ser um jogo de arcade divertido e bem projetado. É que em 1980, quando a maioria dos jogos girava em torno de pontuações altas, jingles cativantes e labirintos abstratos, Missile Command teve a audácia de ter um tema. Um tema de verdade. Um jogo pesado. Um que falava diretamente aos medos de sua época — não por meio de diálogos, não por meio de cutscenes, mas apenas pela jogabilidade. Isso era inédito.

Esta era uma época em que a narrativa em jogos era praticamente inexistente. Quando "lore" significava talvez uma ou duas frases na arte do fliperama. E, no entanto, aqui estava esta máquina que não apenas entretinha — ela discutia. Ela expressava medo, inevitabilidade, sacrifício. Fazia você sentir o peso de suas ações. E fazia tudo isso com um joystick, um trackball e um botão vermelho brilhante. Isso não é apenas um bom game design. Isso é arte.

Não é coincidencia que esse foi o jogo escolhido para John Connor estar jogando em Terminator 2

Mesmo agora, décadas depois, quando temos gráficos fotorrealistas, trilhas sonoras orquestrais e sistemas morais ramificados mapeados com fluxogramas, muitos jogos modernos não alcançam o que Missile Command realizou com gráficos vetoriais.

Isso nos lembra que você não precisa de cutscenes cinematográficas ou despejos de lore de dez páginas para contar uma história significativa. Às vezes, tudo o que é preciso é uma cidade piscando, um míssil caindo e a terrível certeza de que não é possível salvar a todos.

Missile Command não apenas previu o futuro do design de jogos — ele ajudou a inventá-lo. E isso não é apenas impressionante. Isso é lendário.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 069 (Dezembro de 1999)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 050 (Janeiro de 2000 - Semana 4)