O bunker fedia a ozônio e quitina torrada. Wally estava sentado sozinho, curvado sobre uma caneca rachada de café sintético, observando a chuva manchar ainda mais o vidro já manchado de terra. Lá fora, a floresta gemia sob o peso da infestação — antenas se contraindo, mandíbulas estalando, o zumbido baixo do enxame pulsando sob o solo como um tambor de guerra enterrado.
Eles o chamavam de o último atirador. Não por respeito, mas porque não havia mais ninguém.
As aldeias haviam desaparecido — engolidas por invertebrados rastejantes e pelo rastejar incessante da morte segmentada. Centopeias grossas como troncos de árvores serpenteavam pelas ruínas como máquinas de cerco conscientes. O centro de comando havia parado de transmitir na semana passada. Os sobreviventes, se algum ainda restava, estavam em silêncio. Wally acendeu um cigarro com a mão trêmula. Ele não falava com outro humano havia três dias.
Sua máquina — a velha Shooter Mk IV — zumbia no hangar escuro, remendada com sucata, marcas de queimadura ainda recentes da última batalha. Ela era temperamental, feia e mal se mantinha inteira pela ferrugem e pela força do ódio, mas ainda se movia. E ainda matava. O beacon da missão piscou em vermelho. Varredura final. Improvável que retornasse. Ordens: "Queimem o que rasteja."
Wally se levantou, o peso do silêncio mais pesado que sua armadura. Deixou a caneca fumegante sobre a mesa, prendeu o cinto e fechou a escotilha atrás de si. Sem despedidas. Sem promessas. Apenas um homem, um canhão e um enxame que se esqueceu de por que deveria ter medo de fogo.
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Arcades usando trackball eram moda naquele tempo |
Mas antes de Wally subir naquela máquina mortífera enferrujada, antes de um único inseto ser reduzido a cinzas, antes de as florestas se sufocarem com cogumelos e mandíbulas... havia SPACE INVADERS. Lançado em 1978, SPACE INVADERS não apenas foi um fenomeno cultural dos videogames, ele foi "Ô" fenomeno dos jogos. Ele lançou o boom dos fliperamas, inspirou inúmeros imitadores e fez de "atirar em tudo que se move" o mandamento padrão dos primeiros videogames. Por um tempo, todos os desenvolvedores, e a mãe de todos os desenvolvedores, tentaram surfar na onda alienígena.
O que nos levou, obviamente, a muitos, muitos, mas muitos clones MESMO de SPACE INVADERS. Alguns bons. Mas a maioria... vamos dizer que existe um motivo pelo qual você NÃO lembra deles. O que incluir até mesmo Space Invaders Parte II, que não adicionou muita coisa a equação — inimigos piscando, modo alternado para dois jogadores, novas cores sofisticadas. Mas sejamos honestos: era a mesma sopa em uma tigela mais brilhante.
O que nos leva então ao QUILOPODE.
Lançado em 1980 pela Atari, Centipede (se preferir o nome em inglês da família de invertebrados, aqui é cultura e games) não apenas copiou a fórmula — ele a modificou. Aproveitou a marcha rígida de Invaders, de esquerda para direita, e injetou caos. Agora, os inimigos não marchavam — eles enxameavam. Eles ziguezagueavam. Eles infestavam. Cogumelos entupiam o campo de batalha. Aranhas saltavam como pesadelos cafeinados. E a centopeia em si era um verme de pesadelo multissegmentado que punia a hesitação com uma morte pixelada. Enquanto Space Invaders era um cerco lento e rítmico, Centipede era um apocalipse de insetos em avanço rápido.
E aqui está um ponto muito interessante: Centipede não foi apenas inovador — foi histórico. É amplamente reconhecido como um dos primeiros grandes videogames co-desenvolvidos por uma mulher: Dona Bailey, engenheira de software da Atari. Numa era em que a indústria era um clube digital de meninos, Bailey ajudou a criar um jogo que não era apenas intenso e desafiador, mas também estranhamente belo. A cor. O som surreal. A loucura hipnótica de tudo.
Centipede é mais do que um clone de SPACE INVADERS, é mais uma evolução, um sucessor espiritual se preferir. Isso porque em 1980, a maioria dos jogos de arcade ainda estava descobrindo como rolar fundos ou fazer alienígenas se moverem em mais de duas direções. Enquanto isso, Centipede tinha uma programação surpreendentemente sofisticada, fazendo malabarismos com uma dúzia de sistemas de jogo em tempo real — em um hardware que choraria se você pedisse para tocar um arquivo MIDI.
A centopeia titular em si é uma maravilha técnica para 1980. Cada segmento era um objeto independente que podia se dividir, girar e reagir dinamicamente no momento em que você atirasse na cabeça ou quebrasse a corrente. Se você matar a da frente, o próximo segmento se torna a nova cabeça e se redireciona instantaneamente com base em sua posição e na disposição dos cogumelos — cada cogumelo que você atira muda o caminho em tempo real.
Isso mesmo — o campo de batalha se transforma conforme você joga, e os inimigos se adaptam rapidamente. É uma jogabilidade procedural antes mesmo que isso fosse um chavão.
Apenas a título de comparação, Pac-Man se chocou o mundo com a critividade da sua programação em que cada um dos fantasmas tinha um comportamento programado diferente, tornando o jogo sempre dinamico e imprevisível. Centipede faz isso com os inimigos reagindo dinamicamente a um ambiente procedural, em uma velocidade bem maior.
As aranhas não seguiam padrões definidos. Elas saltavam em arcos imprevisíveis e introduziam um vetor de ameaça totalmente diferente. As pulgas caíam como bombas de pixel, mudando o terreno no meio do jogo. Escorpiões envenenavam cogumelos, fazendo as centopeias se moverem erraticamente. Cada um desses elementos tinha seu próprio comportamento, mas tudo funcionava em harmonia — suave, responsivo, sem quadros perdidos, sem lag.
Novamente, é preciso lembrar que estamos falando do hardware de um arcade de 1980, é realmente impressionante quantas coisas diferentes o jogo faz ao mesmo tempo na tela sem o hardware derreter de alguma forma. Não era apenas um jogo de tiro, era uma demonstração força da tecnologia.
Corta agora pra dezoito anos depois, e Centipede ganha um remake em 1998.
Eu vou ser bem sincero com vocês, eu realmente esperava que esse jogo fosse uma forma barata de ganhar dinheiro com nostalgia — e, de certa forma, sim, definitivamente bebe dessa fonte. Mas kudos onde kudos são devidos: o remake realmente tenta. Ele não apenas aplica skins 3D em um conceito 2D — ele reimagina o caos original para uma nova era, respeitando a alma infestada de insetos do original.
As grades planas e os trackballs instáveis se foram. Chegam terrenos totalmente 3D, estruturas baseadas em missões e Wally — nosso relutante exterminador de insetos em um tanque que se comporta como um carrinho de bate-bate carregado de armas nucleares. Os níveis tem uma releitura interessante do original: você está confinado a uma tela, como no arcade de 1980, porém ao eliminar algumas ondas de centopéia isso desbloqueia o acesso a outra arena na mesma fase. Porém o level design é organico e vc não sente que está preso em telas de 1980, eles meio que fazem sentido com o cenário.
Mas o que é realmente impressionante — especialmente na versão para Dreamcast — é como a engine lida bem com toda essa loucura. Você tem:
- Dezenas de insetos inimigos independentes fervilhando em todas as direções.
- Terreno se deformando com explosões e cogumelos venenosos.
- Efeitos de partículas voando como uma demonstração tecnológica da E3 em alta velocidade.
- Power-ups, aldeões para resgatar, perigos para desviar.
E tudo isso em tempo real, sem que a taxa de quadros engasga (muito). De certa forma, esse jogo reproduz o original de 1980 menos no gameplay e mais na ideia do jogo — se o Centipede de 1980 era uma demonstração tecnica de quantos pixels e programações diferentes dava pra colocar num arcade sem ele explodir, o de 1998 faz isso com poligonos 3D e particulas.

E, mais uma vez — assim como seu antecessor de 1980 — o Centipede de 1998 está tecnicamente à frente de seu tempo. A maneira como ele lida com dezenas de inimigos ativos, a jogabilidade interativa com o terreno e os tiros rápidos sem quebrar o canhão de leitura do Dreamcast pelo esforço são realmente admiráveis.
Não faz tanto tempo assim que eu falei de GAUNTLET LEGENDS, e uma coisa eu elogiei naquele jogo: volume. O jogo poderia enfiar uma feira renascentista inteira de esqueletos, demônios e goblins na tela sem nem suar. O meu problema com GAUNTLET LEGENDS é o que acontecia depois, eles simplesmente te atacavam como um bando de lemingues suicidas de cosplay. Tecnologia impressionante? Claro. Mas intelectualmente? Entediante. O jogo apenas jogava inimigos acefalamente em você até que seu polegar caísse ou sua alma deixasse seu corpo.
E mais uma vez provando que minhas críticas são fundamentadas e razoáveis, Centipede de 1998 adereça essa exata questão, e resolve o problema que eu senti com aquele jogo. Centipede não apenas inunda a tela, ele faz coisas interessantes com a quantidade inundando a tela. As aranhas saltam imprevisivelmente. As pulgas mergulham em você enquanto alteram o terreno. Formigas-de-fogo fervilham como um tapete orgânico. Escorpiões envenenam cogumelos, virando o mapa contra você. Vespas voadoras, besouros escavadores, monstros chefes que forçam você a se adaptar — tudo isso é diferente.
Enquanto Gauntlet era um martelo batendo no mesmo prego por horas, Centipede é um maestro louco jogando cada nota distorcida da sinfonia de insetos bem na sua cara. E mais — você não está apenas atirando. Você está gerenciando:
- Deformação do terreno.
- Linha de visão.
- Rotação de power-ups.
- Defesa de NPCs.
- O posicionamento dos cogumelos afetando os caminhos dos inimigos — um retorno à estratégia de jogo em grade do original.
Não é "atirar em tudo até que morra" — é atirar com inteligência, mover-se rápido e se adaptar constantemente. Você fica alerta não porque a tela está cheia, mas porque o perigo evolui. E dessa forma, Centipede 1998 carrega a verdadeira alma de seu ancestral arcade: ele não apenas joga quantidade — ele atira qualidade em você.
Eu não pedi a GAUNTLET LEGENDS nada que o jogo não pudesse fazer em 1998, taí Centipede de prova. O que não quer dizer que o jogo é perfeito, e se alguma coisa meu maior problema com Centipede é a curva de dificuldade.
Os níveis normais são aministráveis. Difíceis, mas justos. Você aprende, se adapta e conquista. Então, BAM — uma luta contra um chefe surge como se tivesse vindo de outro jogo. A dificuldade aumenta violentamente, transformando um jogo de tiro estratégico em um bullet hell caótico, sem aviso prévio. Esses chefes não são apenas difíceis — eles quebram o ritmo e, pior, parecem imerecidos.
Em vez de um aumento natural no desafio, é um precipício de dificuldade absurda e você está com os olhos vendados na beira do precipício. Não estraga o jogo, mas sabota o fluxo. Num minuto você está indo bem, no outro está queimando todas suaas vidas com um chefe besouro que enche a tela com tiros.
Ainda assim, eu tenho que dizer que me diverti mais com Centipede do que achei que me divertiria. Não é perfeito, mas esse é um jogo que respeita suas origens e ousa ir além. Não muito além também porque ambição não é exatamente o forté desse jogo, e muitos podem considerar (não sem certa razão) que apenas ser uma releitura de um jogo de 1980 é meio pouco para 1998. Verdade, que o jogo não tenta fazer muita coisa, mas pouco que ele tenta é bem feitinho.