Hoje, como fazemos todos os dias, exceto terças-feiras (malditas sejam), vamos desmistificar algumas lendas urbanas da internet. Você sabe: coisas como que Donkey Kong 64 era tão inchado de bananas que acabou com todo o gênero de collectathon. Ou que o Sega Saturn não foi projetado para 3D — como vimos na HISTÓRIA DO SATURN.
Seja como for, eis o mito de hoje está na berlinda: que Fighting Force 2 abandonou o charme beat'em-up de FIGHTING FORCE para se tornar um aspirante a METAL GEAR SOLID ou TOMB RAIDER — dependendo de com quem você estiver discutindo no GameFAQs às 3 da manhã — e falhou miseravelmente nisso
Então aqui estamos para acabar com esse mito de uma vez por todas!
ESPERA, ENTÃO VOCÊ ESTÁ DIZENDO QUE FIGHTING FORCE 2 É NA VERDADE UM BOM JOGO?
O que? Não, claro que não, Jorge, não seja maluco. A parte do "é um jogo miserável" é verdade, pouta le pareo, como isso é dolorosamente verdade. O que eu vou desprovar é a parte do "é um clone de METAL GEAR SOLID", isso é dar crédito demais a este jogo.
Porque Fighting Force 2 não é um jogo de stealth. Não é um jogo de ação. Nem é realmente um jogo no sentido tradicional da palavra — é mais uma simulação do que acontece quando você tira a alma de um beat-'em-up apenas mediano e tenta colá-la no cadáver de um jogo de tiro em terceira pessoa absurdamente abaixo do mediano
Então apertem os cintos e preparem-se para explorar o mundo de Fighting Force 2 de 1999: a sequência que ninguém pediu, a troca de gênero que ninguém entendeu e a review que ninguém vai ler. Lets do this.
Então, para começar os trabalhos de hoje eu fiz o que qualquer adulto responsável com tempo demais e vida social de menos faria: procurei a história no manual. Sim, Fighting Force 2 tem uma história — não no jogo, claro, isso seria conveniente demais. Não, ela está enterrada no manual do jogo porque aparentemente ainda estamos em 1989.
Seja como for, de acordo com esta obra-prima literária, você é Hawk Manson, o único remanescente do jogo original. O que foi feito dos demais ex-membros da FIGHTING FORCE, é uma excelente questão para a qual jamais teremos uma resposta. Talvez esse jogo até se passe antes, talvez a Eidos não tenha pensado nisso muito a fundo, a única certeza é que ninguém realmente se importa.
Voltando a história, você faz parte de uma força-tarefa altamente secreta chamada SI-COPS — abreviação de "State Intelligence Cops", porque aparentemente os escritores desistiram de fazer um acronimo na metade do caminho. O SI-COPS é supostamente um híbrido da CIA, FBI, Interpol e é a policia de inteligencia do Estado. Não um estado em particular, como a California ou a Florida, mas o Estado como em "o camarada Estado". Certamente isso é um bom sinal, se eu já vi um.
E qual é a missão do Hawk? Impedir a clonagem humana ilegal, é claro! Porque nada diz "operações secretas" como invadir ruidosamente a sede de uma empresa e demolir todos os abajures e lixeiras à vista. A megacorporação maligna em questão se chama Knackamiche, que soa menos como um sindicato obscuro de biotecnologia e mais como uma marca escandinava de sabones de luxo. Aparentemente, Knackamiche está criando supersoldados geneticamente modificados a partir de "partes de corpos recicladas e DNA mutado". Seja lá o que isso signifique.
Enfim — clones. Você não consegue viver com eles, não consegue vencer uma guerra cyberpunk sem eles. Então, o que o comando da SI-COPS faz? Eles enviam Hawk sozinho, porque trabalho em equipe é para covardes e consistência de gênero é para os fracos.
Agora, de todos os crimes dos quais Fighting Force 2 foi acusado ao longo de todos esse anos — traição, crimes de guerra, múltiplas acusações de tédio agravado —, há uma acusação da qual eu preciso defender o jogo, e é justamente a coisa pela qual ele é mais criticado. Sim. Eu sei. Estou tão chocado quanto você. Meu terapeuta iria ouvir sobre isso se eu não fosse inteligente demais para terapia. Mas o que é justo é justo.
A principal crítica que você ouvirá sobre esse jogo — em fóruns, análises, sussurrada em becos escuros por gamers retrô traumatizados — é que Fighting Force 2 abandonou completamente suas raízes de gênero, traiu sua herança beat'em-up e tentou se tornar algo completamente diferente. Que abandonou o charme de arcade de luta do original por... seja lá o que isso for. E aqui está a coisa: isso não é inteiramente preciso.
Sim, FIGHTING FORCE era um beat'em-up no sentido clássico. Você andava para a direita, batia em coisas até que elas parassem de existir e esperava a mensagem de GO para avançar para a próxima tela.
Mas os gêneros evoluem. Dinossauros viram pássaros. Proto-primatas viram humanos. Beat-'em-ups viram — rufem os tambores, por favor — hack-'n-slash. Essa é a progressão natural. Esse é o caminho da evolução. De Final Fight a Devil May Cry, é como as coisas evoluem. Então, o que é Fighting Force 2, na verdade? É um hack-'n-slash com armas.
E não vamos esquecer o contexto: em 1999, os beat-'em-ups estavam respirando por aparelhos. O gênero estava definhando, abandonado para apodrecer em fliperamas e cestões de desconto. Então, a Eidos, em um momento de lógica, tentou reformular a franquia para algo que as pessoas realmente estivessem jogando. E o que as pessoas estavam jogando? SYPHON FILTER. METAL GEAR SOLID. TOMB RAIDER. Jogos de tiro em terceira pessoa onde você podia se agachar, rolar e atirar em barris suspeitos.
E sinceramente essa decisão não é idiota. A ideia por trás de Fighting Force 2 não é o problema. A mudança de gênero é válida e faz sentido. A intenção é boa. Então, não, a Eidos não é culpada do crime principal do qual é acusada.
ENTÃO QUER DIZER QUE ESSE JOGO NÃO É TÃO RUIM QUANTO DIZEM?
Só porque a Eidos não é culpada pela principal coisa do que ela é acusada, isso não quer dizer que ela seja inocente. Ela é culpada de algo pior. Bem pior.
Isso sendo dito, vamos então nos afundar no verdadeiro crime de guerra cometido pela Eidos: o gameplay. Assumindo o papel do agente secreto/vigilante mais bem-penteado do mundo, em Fighting Force 2 você corre por uma série de ambientes sem graça, desinspirados e clichês, socando e chutando um número incontável de capangas sem nome. Você soca e chuta de maneira pouco elegante, mas a hit detection funciona e os inimigos... funcionam, eu posso colocar assim.
Você também vai chutar cadeiras de escritório explosivas, fotocopiadoras, máquinas de refrigerante e telefones de parede para incentivá-los a revelar suas armas escondidas e kits de saúde que o ajudarão em sua missão para acabar com Knackamiche. Precisa de mais munição? Basta dar um chute na tela do computador e você receberá uma caixa de balas. Com pouca saúde? Basta dar um golpe de karatê em um telefone e um kit de primeiros socorros será sua recompensa. Faz você se perguntar qual seria a função original daqueles itens, com qual objetivo EXATAMENTE a Knackamiche criou um computador que dá uma pistola quando vc soca ele.
O level design é extremamente básico: vc está numa sala e precisa matar todo mundo para ganhar o cartão de acesso para a próxima. Caso nenhum inimigo drope o cartão de acesso, quebre tudo que deve estar em algum item do cenário. Pegou o cartão, próxima sala. E é isso, não tem nem como se perder pq tudo é bem linear, limpe a sala e vá pra próxima. Repita por tres horas e o jogo termina.
Se isso parece mais dolorosamente chato do que ruim, é porque é. FF2 é um dos jogos mais chatos já feitos, mas não é exatamente lixo nuclear tóxico...
AHA! ENTÃO VOCÊ CONCORDA QUE O JOGO NÃO É TÃO RUIM ASSIM!
... até a sua metade. Porque aí as coisas REALMENTE saem do controle, Jorge. Isso pq por volta da marca de uma hora (o que é um pouco antes da metade, mas arredondemos), Fighting Force 2 atinge um marco. Um ponto de virada. Um batismo sombrio. É o momento em que o jogo introduz um novo tipo de inimigo: os caras com armas. E a partir daí termina a civilidade para com o jogador. Tiram-se as luvas. Não se trata apenas de um design ruim — é uma declaração de guerra.
Agora, qual é o problema aqui? Bem, meu caro Jorge, permita-me introduzir uma expressão maldita: "hitscan". Eu já comentei sobre isso algumas vezes nesse blog, mas para quem não sabe, "hitscan" é um método de programação em que as armas não disparam projeteis — elas simplesmente causam imediatamente dano no momento em que o alvo está na vista (daí o nome hit-scan). Sem animações. Sem projéteis para desviar.
![]() |
Adicionalmente, não lute perto das paredes, a camera não aceita isso levianamente |
Isso é muito ruim quando feito por FPS antigos (vai pro inferno, REDNECK RAMPAGE antes que eu me esqueça), mas ao menos em jogo de tiro em primeira pessoa é relativamente você olhar ao redor pra descobrir o que está te causando dano (já que não tem balas viajando pra vc rastrear o atirado) e você sempre tem uma arma de fogo pra revidar o maluco. Só que isso em um jogo de terceira pessoa onde não é garantido que você sempre terá uma arma de fogo a mão... bem, isso complica as coisas.
Você nem sempre pode atirar de volta. Você nunca pode se esquivar. Você nem consegue ver de onde veio o tiro até tomar uma ou duas rajadas - e quando você toma o tiro, seu boneco entra num ciclo de animação que te impede de agir por alguns segundos, então pra você chegar até o atirado e socar ele são algumas boas rajadas.
Então, a partir do momento em que esse tipo de inimigo é introduzido, aqui está o novo ciclo de jogo:
E o jogo — por mais generoso que seja — não joga exatamente kits de saúde em você. Isso significa que é melhor você memorizar a localização de cada inimigo em cada sala antes de abrir a porta. CADA. INIMIGO. ARMADO.
Talvez você não tenha realizado as implicações disso no longo prazo, então me permita explicar: Você começa uma fase. Você vai perdendo lascas de vida devido aos atiradores e quando à Sala 4, ao abrir a porta o atirador termina com o resto da sua vida. Mas agora você sabe a posição dos atiradores das salas 1 a 4 e pode perder menos vida atirando neles tão logo abre a porta. Você reinicia a fase. Desta vez, você sabe que ele está lá. Você revida e vai perdendo vida das salas 5, sala 6 até a sala 7, quando sua vida acaba de novo. Recomeça novamente. Você chega à Sala 10. Inimigos que vc não sabe onde estão, hitscan, Morto. Recomeça a fase mais uma vez.
E assim por diante. Você não está jogando este jogo. Você está memorizando ele. Sala por sala. Dor por dor. Não é apenas um design ruim — é guerra psicológica. Um desmantelamento lento e metódico da sua vontade de viver. Este é o momento em que Fighting Force 2 deixa de ser um jogo e se torna um teste, o tipo de coisa profana que te fazem jogar no purgatório gamers antes de ter permissão para jogar os first party da Nintendo no pós-vida.
E essa opinião não é só minha, a Oficial PlayStation Magazine da época disse: "Francamente, Fighting Force é tão emocionante quanto uma partida de golfe em areia movediça". Me dói muito que eu saiba exatamente o o que essa citação quer dizer.
![]() |
Parece que TOMB RAIDER 3: Adventures do Lara Croft não foi um jogo ao acaso, a Core realmente tem uma paixão por jogos escuros que eu vou te contar, heim... |
Eu queria muito entender o que aconteceu com esse jogo, a história dos bastidores do desenvolvimento que levou a... isso. Mas todas as entrevistas com ex-funcionários da Eidos e da Core dessa época são sempre inevitavelmente sobre TOMB RAIDER, e eu não culpo ninguém por não querer saber mais sobre Fighting Force 2. Ou lembrar que existe.
Bem, pra não dizer que o jogo não faz nada NADA direito, tem alguns detalhes bem legais em Fighting Force 2 que parecem que deveriam ter sido guardados para um jogo melhor, mas se destacam como raros momentos de "ah, que legal!" em um título que praticamente induz a pensamentos intrusivos. Por exemplo, quando uma porta se abre, você é presenteado com um feixe de luz que ilumina momentaneamente a área (pense no efeito visto em MANX TT SUPER BIKE ao sair de um túnel).
Em outros aspectos, a iluminação em tempo real e as explosões são muito boas, enquanto os efeitos de água são alguns dos melhores que já vi em um jogo para Dreamcast. Sabe aquela parte de RESIDENT EVIL - CODE: Veronica em que você tem que andar com água pela cintura que ela ondula lindamente? É mais ou menos assim... ainda que você só vê isso em algumas ocasiões ao longo do jogo, mas ainda sim quem programou esse efeito... ótimo trabalho.
Por outro lado, Fighting Force 2 foi lançado simultaneamente para Dreamcast e PlayStation, e é possível perceber claramente que o jogo foi projetado para rodar em ambos os sistemas, (tirando a agua e a luz) não usando quase nenhum dos recursos extras oferecidos pelo hardware da Sega. O jogo está longe de ser feio, mas a geometria básica dos níveis e os cenários repetitivos, mal iluminados e genéricos gritam "last gen"
Então, no fim do dia, o verdadeiro crime do jogo não é a traição ao gênero anterior, e sim a pura audácia de esperar que os jogadores lidem com hitscanners que disparam assim que a porta se abre, limpezas de salas repetitivas e uma jogabilidade que, mesmo nos seus melhores momentos, não oferece muito ao jogador. Fighting Force 2 não é ruim porque tentou evoluir. É ruim porque fez isso de maneira absurdamente punitiva ao jogador, em cima de uma jogabilidade miserável até no melhor dos cenários.
Então, da próxima vez que alguém disser que Fighting Force 2 falhou por "tentar ser Metal Gear", não perca tempo tentando corrigi-lo: ou essa pessoa nunca jogou METAL GEAR SOLID, ou nunca jogou Fighting Force 2. A única coisa que esse jogo tem em comum com um título de ação furtiva é a vontade de esconder o console quando ele estiver por perto.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMESEDIÇÃO 148 (Fevereiro de 2000)