sábado, 21 de junho de 2025

[#1492][Dez/1999] SWORD OF BERSERK: Guts' Rage


Então aqui estamos nós de novo falando dos anos 80. Aquela década esquisita, saturada de testosterona, onde a macheza descontrolada virou regra. Se seu protagonista não tivesse músculos suficientes pra distorcer a gravidade, você simplesmente não era parte da conversa. Foi a era de ouro do Schwarzenegger, do Rambo, e de ícones menos bombados mas igualmente exalavam macheza bruta tipo Charles Bronson e Chuck Norris.

Depois dos anos 70 (relativamente) bem comportados (bom, exceto você, Go Nagai — seu desgraçado doente com seu pesadelo febril chamado Devilman), a cultura pop  entrou no modo HOMÃO DA PORRA. E osmangás seguiram o bonde.

Foi a era dos badasses ultra-másculos e carrancudos. Pense em HOKUTO NO KEN. Pensa no começo de JOJO BIZARRE ADVENTURE. E, claro, o motivo pelo qual estamos aqui hoje com uma POUTA de uma espada de dois metros de altura parado nas sombras: Berserk.

Capa japonesa do jogo

A primeira vista, Berserk parece o mamute sagrado da macheza dos anos 80 em toda a sua glória suada. O arco inicial, "O Espadachim Negro", nos apresenta um protagonista badass silencioso e soturno que mal fala, empunha uma espada do tamanho de um carro, tem um canhão no lugar do braço esquerdo, e massacra aberrações cósmicas em ermos infestados de demônios — tudo isso enquanto solta tiradas secas. E claro, tem uma quantidade obscena de nudez feminina. Berserk literalmente literalmente abre com o Guts fodendo uma demônia — porque, lógico que ele fode. Ou pelo menos… parece que é só isso.

O ponto é: dá pra perdoar quem acha que Berserk foi feito pra ser a checklist definitiva do que os adolescentes dos anos 80 achavam maneiro. Porque era exatamente o que as editoras pediam — queriam bíceps tão grandes que tinham seu próprio CEP, queriam anti-heróis sombrios incapazes de sentir qualquer coisa e espadões tão pesados que fazem você sentir saudade da SUA MÃE.

E de certa forma, era isso que eles entregavam. Porque era isso que vendia. Mas aqui tá o pulo do gato: autores não são máquinas de autocompletar feitas pra seguir tendências de mercado. Você não joga neles dados de audiência e recebe de volta uma pilha de gibis (tá bom, alguns são, mas enfim...)

Capa europeia do jogo

Não — autores, autores de verdade, são artistas antes de tudo. Gente com uma visão. Com algo arranhando por dentro do peito que precisa sair. Eles não querem só pagar a conta de luz (embora precisem disso também) — eles querem compartilhar o jeito que veem o mundo. Porque arte é isso. Não um produto, mas uma perspectiva.

Só que um autor novato não tem muita voz sobre o que publica. Não no começo. Só depois de ter seu público cativo e bater números gordos de vendas é que eles podem começar a pirar — distorcer expectativas, quebrar regras, e transformar seu mangá no sonho molhado de verão que sempre quiseram. Até os maiores nomes começaram assim. Porque o jogo é esse.

Pô, olha o começo de One Piece. É chocantemente... normal — um grupo de quatro ou cinco personagens, uns vilões engraçados, e porradaria shonen clássica baseada em poderzinhos. Quase nada do drama geopolítico alucinante ou das dinamicas de poder que a gente viria a amar depois. Por quê? Porque na época, o Oda era só um cara qualquer com um mangá de pirata. Ele tinha que dançar conforme a música.


O mesmo com o Hirohiko Araki. Hoje ele é um gênio mega-diva que faz literalmente qualquer coisa com JOJO BIZARRE ADVENTURE — e a gente ama porque, bem, ele É um gênio mega-diva. Mas o JoJo antigo? Muito mais pé no chão. Muito mais convencional. Menos loucura extravagante, mais casca grossa shonen. Esse é o jogo.

Então por que tô te contando isso? Porque entender esse contexto é fundamental pra entender Berserk. O primeiro arco do manga, "O Espadachim Negro" é exatamente o que você esperaria da loucura dos mangás dos anos 80: demônios, espadas, nudez, vingança sombria — caos puro e sangrento. Só que mesmo com todas as amarras editoriais de um autor novato, Kentaro Miura já deixava claro: ele não era como os outros. Ele nunca seria como os outros. Desde o primeiro dia, Berserk foi feito diferente.

A primeira coisa que você nota em Berserk — e eu quero dizer só de bater o olho mesmo — é que Kentaro Miura era um perfeccionista doente. A maioria dos mangakás,  devido a crueza dos prazos e da fragilidade humana, guardam sua alma artística pra alguns momentos-chave. No anime, isso se chama "sakuga" — aquelas cenas divinas onde você sente o orçamento da Noruega sendo gasto em uma única cena e a privação de sono dos animadores em cada quadro. Você sabe como é, a luta do Sukuna vs Mahoraga me fez piscar umas duas vezes em 40 minutos, no máximo.


Mangá funciona parecido. O artista despeja sua alma nos painéis chaves — as páginas de impacto, os golpes emocionais — e preenche o resto com layouts mais simples. Às vezes até os assistentes cuidam disso, se o autor for grande o bastante pra ter uma equipe. É assim que geralmente funciona.

Mas não com Kentaro Miura. Miura não acreditava em sakuga. Ele não acreditava em "escolher" uma cena-chave. Pra ele, TODO painel era uma cena-chave. Toda página, um monumento. Cada traço, sua arte no máximo do que ela poderia ser. Não tô brincando. Não tô exagerando. Não tô sendo dramático pra causar efeito. TODO. E. CADA. PAINEL. É. O. SEU. DAVID. Juro pela Mão de Deus — não é hipérbole. É fato. O homem era maníaco ao ponto que eu não consigo nem começar a explicar o quão perfeccionista Kentaro Miura era com seu trabalho.

Aqui uma curiosidade divertida: em Dragon Ball Z, Akira Toriyama fez os Super Saiyajins loiros… porque era mais fácil de colorir. Eficiente, inteligente, prático. Miura não acreditava em "fácil". Miura não acreditava em nada menos que sacrifício artístico divino. Pra ele, cada painel de Berserk não era só um quadrinho — era uma obra-prima. Algo que deveria estar pendurado no Louvre. E mesmo assim, ele provavelmente acharia que não era bom o bastante.


Não tô brincando quando digo: Berserk não é desenhado — é esculpido.

É a primeira coisa que qualquer um nota em Berserk — aquela beleza esmagadora em cada maldito painel. Cada traço. Cada rosto. Cada criatura de pesadelo nascida do inferno.

Mas... fora isso, qual é a segunda a segunda coisa que você nota? Bem, a segunda coisa é mais quieta. Mais sutil. E, eu diria, ainda mais importante. Porque Berserk não é sobre um cara másculo no modo FULL HOMÃO DA PORRA. Não é sobre raiva badass com  um sorrisinho maneiro e um peitos. Não é "Tô puto e vou chutar bunda de demônio". Não. Berserk é sobre a raiva do luto. Do tipo que te come por dentro. É o tipo de raiva "eu perdi coisas que você nunca vai entender sequer o que eram". A raiva de alguém andando na linha tênue entre suicídio e vingança, misturando os dois, sem saber qual vai vencer, e cansado demais pra se importar.


O Guts pode parecer, de início, um fodão estoico, bastardão, sem emoção. Mas aí você começa a ver as rachaduras. Não é que ele não sinta nada — é justamente que ele sente demais. Tanta dor, tanta perda, tanta traição, que arriscar a vida contra deuses aberrantes lovecraftianos não é pra parecer foda — é porque é tudo que lhe resta. E se ele vai cair, ao menos ele vai arrastar umas aberrações cósmicas pro inferno junto com ele.

A terceira coisa que você nota é que Berserk não é APENAS violento. Quero dizer, é provavelmente um dos mangás mais graficamente violentos já desenhados — se não "Ô" mais violento, ponto. Entranhas são arrancadas em painéis obscenamente detalhados. Cerebros expostos e esfacelados em grandes quadros. Olhos arrancados. Intestinos pendurados como piñatas. Tem até uma cena onde um cara tem as duas mãos cortadas — e isso é usado como alívio cômico. É esse o nível.

Mas aqui tá o ponto que eu queria chegar: não é violento porque é maneiro (embora, vamos combinar, seja), ou porque os adolescentes adoram gore (e a gente adorava mesmo). Não — a violência faz parte do tom. É a atmosfera. O mundo de Berserk é impiedoso. Cruel. Arbitrário. Você morre porque tava no lugar errado na hora errada e ninguém liga. O mundo segue em frente, indiferente ao seu sofrimento. A coisa é tão bruta que em algum momento, você começa a se perguntar como esse mundo ainda mantêm uma população viável, mas divago


O ponto é: Guts é o homem mais forte do mundo no mundo mais brutal que existe. É um fato que nada mundano ameaça ele. A maioria das histórias pararia aí — faria dele um badass invencível, jogaria umas tiradas maneiras por cima e tchau. Mangá shonen vive disso e taí Solo Leveling pra provar que as pessoas nunca vão cansar de um badass overpower que vence tudo sem suar.  Mas Miura disse: "Se nenhum homem pode desafiá-lo… então que lute contra algo além dos homens."

E aí Berserk dá uma virada. Vira uma história de horror cósmico lovecraftiano vestindo a pele de um mangá de ação shonen. Só que aqui, quando o protagonista vislumbra Azathoth… ele não se suicida de desespero. Não. Ele enlouquece… e aí pega uma barra de ferro de dois metros e diz: "Você achou um jeito de entrar no meu mundo… mas seu erro foi deixar a porta aberta pra eu achar o seu."

Não tô brincando — Berserk existe entre Lovecraft e DOOM. É desespero e macheza em doses iguais. E o fato de Miura fazer essa fusão amaldiçoada funcionar é nada senão um fodendo um milagre. E parte do porquê funciona é isso: enfrentar uma aberração cósmica nunca é levado na brincadeira.* Guts perde pedaços de si em toda batalha.



Não daquele jeito mangá "ganhei uma cicatriz e agora tô mais maneiro". Não — é no estilo "se eu fizer isso, provavelmente eu nunca mais vou caminhar, mas foda-se, vou levar esse filho da puta comigo". E lembre: isso num dos mangás mais grotescamente violentos já publicados. Não é só visceral. É existencial.

Parando por aí, Berserk já seria o mangá mais heavy metal já escrito. Tão brutal, tão sangrento, tão encharcado de sangue e raiva que faz Fist of the North Star parecer  uma canção de ninar.

Mas aí… algo começa a mudar. Sim, o Guts é maneiro. Sim, ele tá rachando aberrações ao meio na força do ódio e mal se mantendo em pedaços. Mas quanto mais fundo você vai, mais a pergunta se entranha: "Pera… isso não é badass. Isso é… meio triste.". Ele não é estoico. Ele é quebrado. Ele não é destemido — só não tem mais nada a perder.


E aquela raiva? Aquela intensidade desumana? Em algum momento, você não tem como não perguntar: "Tá, mas que PORRA aconteceu com esse homem? Que tipo de dor transforma uma pessoa… nisso?" 

E aí — é nesse exato momento — que Kentaro Miura sorri e diz: "Fico feliz que tenha perguntado". Porque é aqui que Berserk para de ser uma fantasia de vingança badass e ultra-violenta... E vira uma das maiores obras de ficção já colocadas no papel.

É aqui que Miura, agora já tendo alguma ingerencia perante a editora como eu comentei no começo, revela a verdadeira história. É aqui que entramos no "Arco da Era de Ouro".


O Arco da Era de Ouro acontece alguns anos antes do primeiro — mas o mundo era um lugar bem diferente. É um mundo medieval que parece, pra todos os efeitos, o nosso. Sem demônios governando cidades. Sem monstros despedaçando gente em plena luz do dia. Aqui, os horrores não são sobrenaturais — são humanos. Guerra, fome, crueldade, pobreza. Demônios são só mitos sussurrados por supersticiosos ignorantes.

E ainda assim, é nesse mundo quase normal que a maior tragédia se desenrola. É aqui que a gente finalmente começa a entender como Guts ficou tão quebrado, tão desesperado, tão furioso. Mas pra entender isso, temos que começar do começo. Literalmente do começo. 

Era uma vez, uma vila inteira enforcada numa figueira morta.
A gente não sabe por quê.
Talvez massacrados por saqueadores sádicos.
Talvez não conseguiram pagar impostos.
Talvez alguém esbarrou no nobre errado na hora errada.
Nunca é contado, e não importa realmente porque nesse mundo brutal e impiedoso, esse tipo de atrocidade é tão comum que mal precisa de explicação.

Só que entre os corpos pendurados está uma mulher. Grávida. No fim da gestação. E então, de algum jeito — desse cadáver morto, balançando — um bebê cai. Esse bebê sobrevive. E é assim que a história do nosso "herói" começa: nascido de um cadáver, debaixo de uma árvore de mortos. E se isso soa chocante, pode acreditar: essa foi a parte fácil da vida do Guts. Daqui pra frente só fica pior. Tipo, muito, MUITO pior. 


Mas não se preocupe, eu não vou recontar o mangá inteiro aqui, apenas tenha em mente que quando Arthur Fleck fala "Não fui feliz um único minuto da minha maldita vida", Guts dá um sorrisinho e solta: "Que fofo." Porque ele é o cúmulo de ser completamente, cosmicamente, brutalmente, até literalmente fudido. Nascido de um cadáver. Abusado. Traído. Mutilado. Amaldiçoado. Caçado pelo próprio inferno. Se existe uma cartela de bingo do sofrimento humano, Guts já preencheu ela duas vezes.

Então, o resto do mangá é só o Guts sendo miserável? Um snuff film contado ao longo de 30 anos de manga? 


Já estabelecemos que Miura não segue as regras. E Berserk é tudo menos 30 anos de pura schadenfreude. Porque aqui tá a coisa: não é a dor do que ele perdeu que o define, isso só o deixou mais forte, o que realmente o quebra… É a lembrança do que ele teve. E a saudade do que ele queria. Essa é a tragédia.

É aqui que Berserk vira... outra coisa. Algo profundo. Porque uma coisa é nunca ter tido amor, família, pertencimento. Outra coisa totalmente diferente** é provar essas coisas — e depois perdê-las. Saber, mesmo que por um instante, como a paz poderia ter sido. E depois perde-la para sempre.

É aqui que Berserk para de ser sobre um cara balançando uma espada do tamanho de uma prancha — e vira uma história sobre identidade, significado, proposito e como seguir em frente quando tudo em você quer desmoronar. Um autor menor teria escrito o Guts como só mais um edgelord depressivo com uma espada grande e um trauma maior ainda.


Mas Miura tinha outros planos. A jornada do Guts, em última instancia, não é só sobre vingança. É sobre autodescoberta. Sobre sobrevivência. E sobre achar algo — qualquer coisa — que faça a vida valer a pena ser vivida. Porque aqui tá o pulo: você não pode perder nada… se nunca teve nada. E é aqui que Berserk brilha com mais força. 

O arco de personagem de Guts aos poucos se abrindo pra Casca e seus companheiros no Bando do Falcão é uma das coisas mais lindas jamais desenhadas num papel. É gradual. Conquistado. Espalhado entre carnificina brutal em batalhas e momentos surpreendentemente ternos em volta da fogueira. A violência ainda tá lá — tão grotesca e visceral quanto sempre — mas agora é emoldurada por algo raro em mangás: desenvolvimento de personagem verdadeiro, feito com paciência e propósito.

Como eu disse: Guts para de ser definido pela dor e começa a andar, ainda que lentamente, em direção a outra coisa — Desejo. Esperança. Conexão. Vê-lo criar laços com os novos companheiros é como ver um animal ferido aprendendo a confiar de novo. Cada pequeno gesto — uma risada, um olhar compartilhado, um momento de vulnerabilidade — parece monumental.


E isso por si já seria o bastante, mais que o bastante, pra um arco de personagem poderoso. A maioria dos mangás daria por encerrado aí. Rolam os créditos. Redenção conquistada. Mas Kentaro Miura? Se você pegou o padrão até aqui, Miura faz "bom o bastante".  Não. Ele troca de marcha de novo. Joga a narrativa no modo turbo.

Porque por trás de tudo isso — da camaradagem, da confiança, da reconstrução lenta da alma do Guts — há uma figura maior que a vida, carismática ao impossível, e tão aterrorizante quanto ao mesmo tempo. Um homem cuja sombra é tão profunda que atravessa as páginas. O nome dele… é Griffith.


Griffith... é um personagem difícil de descrever. As pessoas usam o termo "maior que a vida" toda hora em análise de personagem — mas raramente serve de verdade. Aqui mal arranha a superfície. Griffith não é só um homem. É um conceito. Um sonho, no sentido literal e temático. É o tipo de personagem sobre quem se escrevem teses inteiras — não só de fãs, mas de acadêmicos. Ele não demanda sua atenção e todos ao redor dele, ele simplesmente a tem. 

Tem o carisma magnético do Dio Brando, o gênio calculista do Lelouch vi Britannia — mas mais. Mais régio. Mais composto. Mais imponente. E ainda assim… de algum jeito, também mais frágil. Mais vulnerável. É o personagem que a maioria das histórias venderia a própria mãe para ter como centro do enredo — uma figura radiante de ambição e graça que dobra o mundo à sua vontade. 


Só que aqui tá a parte insana: Berserk é lembrado por muito mais que só Griffith. Isso diz tudo que você precisa saber sobre o quão absurdamente boa é a escrita do Miura. Qualquer outro mangá teria virado "As aventuras de Griffith". Miura fez dele uma singularidade gravitacional — e ainda conseguiu construir um universo de significado  ao redor dele, não só dentro da sua órbita. Enfim... Como você já percebeu, Berserk tenta fazer um monte de coisas diferentes —e de algum jeito, acerta fenomenalmente bem em todas.

A arte? Material literalmente de galeria.
As lutas? Algumas das batalhas mais brutais, eletrizantes e visualmente arrasadoras já desenhadas.
O desenvolvimento dos personagens? Sem igual em profundidade e construção lenta.
A brutalidade. A ternura breve mas merecida. O triunfo. O desespero. Tudo isso. Berserk não só faz tudo — faz tudo brilhantemente.

É uma obra tão vasta, tão conceitualmente ambiciosa, e tão emocionalmente complexa que uma adaptação fiel pra anime é — honestamente — quase impossível. Vamos começar pelo óbvio: ninguém tem tempo ou dinheiro pra animar como o Miura desenhava. O nível de detalhe obsessivo dele não é só "difícil de igualar", é surreal.



Hmm, tá, talvez a Ufotable pudesse tentar. Eles certamente têm o talento visual e a grana... Mas mesmo assim, traduzir a geometria sagrada de sangue, trauma e horror cósmico de Berserk em movimento fluido parece tarefa pra loucos ou deuses. Por adaptar a arte não é nem de perto o maior problema em transformar Berserk em anime

Não — o problema real é o tom. Berserk é maduro demais pra TV mainstream. E não digo "maduro" no sentido sangue e peitos. Digo "horror existencial, trauma sexual, execuções públicas, desintegração mental" níveis de maduro. Essa é uma história onde uma cena de estupro público não tá lá pra chocar ou por fetiche barato (sim, Goblin Slayer, tô olhando pra você) — ela é crucial pro enredo. Pros arcos dos personagens. Pra própria alma da história.

Mesmo se você censurar ou sugerir os elementos mais sombrios, os próprios temas — de luto, trauma, indiferença cósmica — são pesados demais pra estarem em um banner da Crunchyroll. Tá, a boa notícia é que animes maduros e forçar os é algo que é mais aceitos hoje do que nunca — só olhar pra Devilman Crybaby, Pluto, ou Attack on Titan — mas ainda sim Berserk é uma besta inteiramente diferente.


Uma adaptação fiel levaria anos, custaria milhões, e arriscaria alienar grandes pedaços da audiência de propósito. E além disso, é um mangá com quase de 40 anos de continuidade e a era das adaptações semanais infinitas acabou — One Piece é o último dinossauro ainda vagando por aquele mundo perdido. Hoje em dia, na melhor das hipóteses, você ganha 12 a 26 episódios por temporada, talvez renovado se os Blu-rays venderem e o povo gritar alto o bastante no Twitter. 

Então vamos ter um anime de Berserk realmente fiel algum dia? ...Talvez. Mas eu não prenderia minha respiração esperando. E talvez — só talvez — esteja tudo bem. Porque Berserk não é uma história pra ser consumida casualmente. Ela é feita pra te ferir. Pra grudar em você. Pra te assombrar nas horas quietas da noite. 

E talvez, apenas talvez — o único meio que poderia carregar essa história… fosse aquele em que Miura despejou sua alma, página por página, quadro por quadro, rachura por rachura. 


O que significa, suponho que você já deve ter deduzido a esse ponto, que eu não sou muito fã da adaptação de anime de Berserk de 1997. Vamos ser sinceros — a animação é, bem... simplista. Só cobre o Arco Era de Ouro, e mesmo assim, apenas superficialmente. Cortaram tanta coisa — por falta de grana ou porque os temas eram pesados demais pra TV — que quando a gente chega no Eclipse, nada faz sentido. Você não entende por que os personagens fazem as escolhas que fazem. Os elementos sobrenaturais surgem do nada. Tudo parece… incompleto. Estranho.

E nem me fale em transformar a lendária batalha dos 100 homens num slideshow de frames parados. Eu entendo a questão financeira, de verdade, mas ainda sim isso foi um desserviço pro espírito inteiro da animação japonesa. Então é — não gosto. 

Mas.

Não odeio completamente, também. E isso por causa de uma coisa — ou melhor, um homem: Susumu Hirasawa, o compositor da série. Esse homem ENTENDEU Berserk. Meu Deus, como entendeu. A música dele não só acompanha as cenas — eleva elas, redime elas. O tema do Guts não é um hino de raiva  ou um canto guerreiro grunhido, é contemplativo. Etéreo. Onírico. É lindo — mas triste. Como ver algo quebrado que poderia ter sido maravilhoso … mas nunca será. É o som da inocência perdida de um mundo que já teve beleza — mas foi purificado pela impiedade.


Se você já ouviu a trilha de Made in Abyss, vai entender o que quero dizer. Aquele tom assombrador, mas ao mesmo tempo quase sagrado. A sensação de maravilha tão pura que dói. De um mundo absurdamente violento não porque seja malicioso — mas porque é impiedosamente honesta. É nisso que Hirasawa acertou.

Na verdade, Made in Abyss parece um filho espiritual de Berserk em muitos aspectos. Compartilha a mesma corrente tonal: aA beleza de um mundo perdido pra sempre, a dor da inocência esmagada pelo peso da realidade.

Então não — o anime de 1997 não é a adaptação que eu queria. Mas a trilha sonora do Hirasawa? ISSO é Berserk. É a alma dele.

E QUANTO A ADAPTAÇÃO EM COMPUTAÇÃO GRÁFICA DE 2016 

Não existe. Ponto. Seguimos.


Então, o que resta pra dizer sobre Berserk? Muita coisa, na verdade. Mas já passei MUITO do limite de palavras, então vou terminar do único jeito que faz sentido: falando do seu legado. Porque Berserk não é só uma obra-prima, é a fundação de uma cultura inteira. Hidetaka Miyazaki citou abertamente Berserk como a maior influência nos seus jogos Souls.

Não que ele precisasse dizer — é bem óbvio. O tom. A melancolia arrepiante. A beleza apodrecendo sob a decadência. A espada gigante balançando contra pesadelos lovecraftianos num mundo medieval desmoronando. Isso não é só inspirado em Berserk — ISSO É Berserk, reinterpretado pela jogabilidade.


Literalmente o Berserker em Elden Ring

Mas olhe mais de perto, e você verá suas digitais em todo lugar. Cloud Strife? Espadão gigante. Passado assombrado. Crise existencial. Seu antagonista é um anjo maligno andrógino de cabelo branco com complexo de messias. FINAL FANTASY 7 é um filho de Berserk em tudo menos no nome.

Hideaki Anno admitiu que o custo mental de lutar contra monstros de outro mundo foi o que o fisgou nos temas de Berserk — e o que inspirou o horror psicológico de Evangelion.


O horror antropofágico em Attack on Titan? Um aceno direto pra violência impiedosa e horror corporal de Berserk.


Eu poderia continuar por dias. Porque a pegada de uma obra tão massiva, intransigente e emocionalmente devastadora é, bom... enorme. Mas como eu preciso encerrar a review, eu gostaria falar sobre o final de Berserk - que, após quase 40 anos, caminha para sua reta final tal qual One Piece.

Só que diferente de One Piece, Berserk não será concluído pelo seu autor já que Kentaro Miura faleceu em 2021, apenas aos 54 anos, vitima de acidente vascular... e eu não consigo sequer começar a explicar o tamanho que é essa perda para a humanidade. Um homem cujo talento era tão imenso que mal parecia humano. Que podia conjurar pesadelos e beleza com o mesmo traço. Que nos deu não só uma história, mas um mundo, uma ferida, um sonho, e um legado.

Mas mesmo em sua morte, ele jamais será esquecido — ou abandonado. E tampouco sua obra, porque seu amigo de longa data e assistente, Kouji Mori, pegou a tocha.

Não como um substituto, ninguem jamais substituíra Miura.
Não como uma continuação por lucro.
Mas porque ele conhecia Miura.
Porque ele era uma das poucas pessoas que realmente entendia a história que Miura queria contar — pra onde ia, e por quê. 

E agora, Berserk segue vivo.
Sob a pena de Mori.
Com o espírito de Miura.

Não é a mesma coisa. Não teria como ser. Mas existe algo bonito nisso — essa ideia de que mesmo na morte, a história de Miura recusou-se a terminar em silêncio.

Ele nos deu dor.
Ele nos deu raiva.
Ele nos deu beleza, horror, tragédia, amor e desespero.
Mas acima de tudo, ele nos deu Guts.
Um homem quebrado que segue em frente, não importa o peso.

E talvez essa seja a última mensagem de Miura pra nós. Seguir em frente. Mesmo quando dói. Principalmente quando dói. Obrigado, Miura-sensei. Você mudou o mundo. Você nos mudou. E você nunca será esquecido. 


BOM, ISSO TUDO É MUITO COMOVENTE, PROFUNDO, ALMA PURA E TALS MAS… E O JOGO?

Que jogo, Jorge?

VOCÊ SABE. O DO SEGA DREAMCAST. 1999. O POST ERA PRA SER SOBRE ELE, NÃO? 

…Ah.


Oh shit. Certo... esqueci completamente. Tá bom, tá bom, olha — vamos falar dele. O resumo da coisa é: a história é surpreendentemente boa, as cutscenes tem uma direção tambem surpreendentemente boa pra época. O nível de detalhes nos cenários são melhores do que se espera de um jogo de Dreamcast. Só a jogabilidade que era medíocre até pros padrões de 1999. E a dublagem e tradução em inglês gloriosamente ruins. Nível "Seu maldito espadachim!" de ruim. É involuntariamente hilário, do jeito que a gente ama.

MAS! Vamos começar com as partes boas, porque tem coisa sólida aqui: esse jogo não foi um cash grab porco com skin de Berserk, a história foi escrita pelo próprio Kentaro Miura. Sim. O homem. O mito. A lenda. Miura, sendo o perfeccionista maníaco que conhecemos e amamos, se envolvia muito em todos os produtos licenciados de Berserk, e esse jogo não foi exceção.


E as boas notícias não param por aí, adivinha quem voltou pra fazer a música? SUSUMU HIRASAWA. Sim, o alquimista das trilhas oníricas do anime de 1997 voltou pra assombrar sua alma de novo — e ele entrega aquele feeling tão inegavelmente Berserk que ele entende tão bem. Sozinho ele eleva o peso emocional do jogo muito além do que a jogabilidade poderia carregar.

Então, enquanto o combate é travado e repetitivo — "ande, corte, esquive, repita" com controles duros —, o jogo como um todo ainda parece Berserk. É uma bosta de jogar, mas a estética, o tom, o cuidado… tudo tá lá.

A história aqui é cânone e se passa entre os volumes 22 e 23 do mangá, contada por cutscenes extremamente longas que duram mais que o tempo que você passa jogando. O que, considerando a qualidade da jogabilidade, não é a pior coisa do mundo


Nessa história paralela, Guts, Casca, e o sempre tagarela Puck ajudam uma artista viajante chamada Rita e logo se envolvem em tentar curar uma doença misteriosa assolando uma cidade próxima, governada por um tirano chamado Balzac. As cinemáticas capturam decentemente o mundo sombrio de Berserk, a gameplay... menos

Entre uma cutscene e outra, esmurrar botões contra hordas de inimigos baratos e irritantes, sofrer com level design apertado, e jogar eventos de Quick Time Event — alguns levam a caminhos alternativos, outros só resultam em morte instantânea, porque ... por que não?

Guts tem alguns combos e armas secundárias que pode acessar embainhando a Dragonslayer — sabe, aquela barra de ferro enorme que ele chama de espada. Ataques bem-sucedidos e dano enchem seu "Medidor Berserk" que te deixa entrar no modo fúria: tom vermelho, dano extra, invencibilidade, o pacote completo.


E sim — como esperado — o jogo é bem sangrento. Inimigos são cortados ao meio, cabeças voam, e sangue jorra pela tela como se Berserk fosse dirigido por Takashi Miike.

Infelizmente, o maior problema é que o jogo tenta ter uma fisica realista... o que meio que não dá certo quando sua espada tem dois metros de altura e metade do jogo se passa em corredores apertados, o que resulta em Guts, um dos maiores espadachins da ficção, passando a maior parte do tempo batendo a espada nas paredes como um Roomba medieval.

Olha, um hack-and-slash de Berserk faz sentido. O mangá é construído em batalhas massivas, duelos brutais e espadada é praticamente um idioma próprio a essa altura. Mas... Berserk do Dreamcast é menos Dinasty Warriors e mais Guts sendo pateta em espaços apertados, eu temo. 


Os corredores apertados são horríveis pra golpes largos, e metade dos combos é cancelada porque sua espada encostou numa parede, o que resulta no combate ser travado pra caralho.

Pra piorar as coisas, as animações têm que terminar completamente antes de você fazer qualquer outra coisa, então muitas vezes você fica cortando o ar enquanto inimigos te cercam como lobos sem respeito pelo seu espaço pessoal. Numa das escolhas de design mais burras que se pode imaginar, Guts embainha a espada automaticamente cada vez que você troca de tela — então metade do tempo que você tenta atacar, tá lá socando esqueletos com as mãos sem causar dano até perceber que sua arma principal nem tá desembainhada.

Pior ainda AINDA em um hack'n slash supostamente dinamico, o delay dos botões é criminoso. Usar uma arma secundária requer segurar R e apertar um botão, mas metade das vezes Guts só fica paradão, vc precisa apertar o botão três ou quatro vezes, só pra garantir.


Enquanto isso, inimigos não compartilham dos seus problemas de espaço e atravessam paredes sem dificuldade. Eu perdi a conta de quantas vezes eu tive que esperar o inimigo desclipar de desntro da parede pra poder atacar ele

Ah, e esperar é outro problema que os inimigos não tem, porque se você leva um golpe, já era. Guts fica travado numa "animação de reação" que te impede de agir, enquanto os inimigos continuam te atacando e te mantendo preso no loop de animação. É trapaceiro, é roubado e nem roubado no estilo arcade — é só roubado mesmo.

O único real ponto positivo é a a luta contra de chefe contra Nosferatu Zodd. Não apenas é um inimigo iconico do manga, como aqui finalmente o jogo te dá espaço par agir e parece um hack'n slash de verdade. É difícil, mas é justa e por isso mesmo é a melhor do jogo inteiro, sem dúvida


No lado técnico, o jogo roda bem. O framerate segura até nas brigas mais inimigos, visualmente é ok (embora existam muitas texturas de tijolos marrons e cinzas e as areas abertas parecem vazias). Mas hey, ao menos os efeitos de partículas — como as faíscas constantes da espada — são bem bonitos até.

No fim das contas, eu QUERIA amar Sword of the Berserk: Guts’ Rage.

Tinha o roteiro do Miura.
Tinha a música do Hirasawa.
Tinha lore cânone, Zodd, Casca, e espadões.

Mas os controles sem resposta, a safadeza dos inimigos, e o design simplesmente burro tornaram impossível gostar desse jogo. A boa noticia é que é curto, felizmente — umas três horas, mas pelo menos metade são as cutscenes — o que pode ser a maior misericórdia que ele oferece.

Guts pode ter problemas de raiva, mas depois de jogar isso eu também tenho.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EEDIÇÃO 149 (Março de 2000)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 075 (Junho de 2000)


MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 050 (Janeiro de 2000 - Semana 4)


EDIÇÃO 061 (Abril de 2000 - Semana 3)