Você se lembra da Sunsoft?
É claro que não. Ninguém lembra. Mas houve um tempo em que a Sunsoft era a desenvolvedora mais quente do pedaço – tão quente, de fato, que a Nintendo lhes concedeu a rara honra de fabricar seus próprios cartuchos (em vez de ter que comprar os da Nintendo como todo mundo). Essa liberdade permitiu que eles pirassem chips personalizados e modificações tecnológicas bizarras – tão loucas que o BATMAN: RETURN OF THE JOKER deles para o NES quase parecia um título de 16 bits.
Mas você não lembra disso porque foi uma eternidade atrás, na era de ouro do Nintendinho. E quando a era 16-bit chegou, Sunsoft simplesmente não conseguiu acompanhar. A mágica deles não se transferiu para o novo hardware e, como tantos desenvolvedores outrora grandes, eles caíram no obscurantismo e na irrelevância.
E é assim que a indústria de jogos funciona. De tempos em tempos, surge um desenvolvedor, faz coisas desumanas com hardware limitado, e desaparece no momento em que a tecnologia muda. É por isso que você provavelmente não lembra o quão grande a Sunsoft já foi.
E é também por isso que você provavelmente não lembra quando o nome Treasure sozinho já vendia um jogo. Mas vendia.
Nos tempos do Mega Drive, a Treasure era pura feitiçaria. Eles fizeram truques gráficos e extraíram poder de processamento do humilde Sega Genesis de maneiras que nem a própria Sega achava possível. Seu jogo de estreia, GUNSTAR HEROES, foi um espetáculo técnico tão grande que a Sega basicamente falou: "Peraí... o nosso console consegue fazer ISSO?"
Aqueles foram os dias de glória da Treasure. Eles eram uma das armas secretas da Sega na guerra dos 16-bit – alguns poderiam até dizer o único trunfo na manga da Sega.
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GUNSTAR HEROES, fazia esse efeito 3D no Mega Drive em 1993 |
POR "ALGUNS" VOCÊ QUER DIZER VOCÊ, NÉ?
Eu apenas relato os fatos, Jorge, não faço editorializações. Mas sim.
Enfim, o ponto é: como a Sunsoft antes deles, uma vez que a 4ª geração virou memória, a Treasure lutou para manter a mágica viva. Eles nunca mais alcançaram as mesmas alturas criativas… e escorregaram silenciosamente para fora dos holofotes. Mas o que realmente aconteceu com eles? Qual foi seu ato final? Seu canto do cisne moribundo? É isso que veremos hoje – com um joguinho chamado Bangai-O.
Após dois lançamentos criativos, mas majoritariamente ignorados, durante a 5ª geração – SILHOUETTE MIRAGE: Reprogramed Hope e MISCHIEF MAKERS – a Treasure finalmente obteve algum sucesso limitado com seu gloriosamente exagerado shmup, RADIANT SILVERGUN, especialmente nos arcades japoneses circa 1998. Infelizmente para a Treasure, tanto arcades quanto shmups estavam com os dias contados no Ocidente naquela época. O que poderia ter sido um retorno triunfante acabou sendo mais um cult hit do que um blockbuster de verdade (não confundir com a Blockbuster Video, que também estava prestes a se tornar uma espécie em extinção).
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Pq tem um cachorro ganindo nessa tela de Game Over, entretanto, é um dos grandes mistérios da fé |
Enfim – enquanto a Treasure estava ocupada derretendo olhos com RADIANT SILVERGUN, o programador Mitsuru Yaida teve um pensamento intrusivo: "Quantas balas podemos realmente espremer em um jogo antes que ele quebre?" Essa ideia solta se transformou em um jogo completo, jogaram uma estética de mecha de anime dos anos 70 nele e deram por encerrado. Assim nascia Bangai
Então, o que é Bangai-O, exatamente? Pense nele como um teste de estresse de hardware disfarçado de videogame. A Treasure pegou o poder robusto e subutilizado do N64 e encheu a tela com tantas balas, mísseis, explosões e coletáveis de fruta que o console deveria ter pedido uma ordem de restrição judicial contra a empresa. E quando eles colocaram as mãos em um devkit do Dreamcast, sua reação foi essencialmente: "Groovy. More bullets!"
A história, se você puder chamar disso, é assim: nossos heróis, Riki Makishi e sua irmã Mami Makishi, são filhos de um policial lotado no planeta Dan Star. Sim, planeta. Chamado Star. Por que um planeta se chama "Star"? Essa é uma excelente pergunta para a qual jamais teremos uma resposta.
Enfim, as coisas dão errado quando a infame SF Cosmo Gang (e não, nunca nos dizem o que "SF" significa – Space Fighters? Salty Fruitlords?) invade Dan Star e espanca o velho pai para abrir caminho para o crime galáctico mais nefasto de todos: contrabando de frutas. Eu queria estar brincando. Não estou.
Os vilões são contrabandistas de frutose, essa é a trama. E então, como qualquer resposta razoável ao crime baseado em cítricos, Riki e Mami entram no mecha pesadamente armado Bangai-O para dar um fim a essa loucura de bananas no mercado negro. Porque nenhuma manga não taxada passará sob seu turno, caramba!
Enfim… absurdo de contrabando de frutas à parte, vamos falar sobre o jogo de verdade. À primeira vista – como, apenas uma captura de tela parada – Bangai-O parece quase vergonhoso. Patético, até. Parece descaradamente um título do Mega Drive. E nem mesmo um esforço técnico do final do ciclo de vida do console – isso parece que poderia ter sido lançado em 1992. Os sprites são minúsculos, os fundos são mínimos e a estética geral grita que esse jogo não faz sentido nenhum num lançamento Dreamcast/Nintendo 64.
Mas então… ele se move. E você de repente fica: WHAT. THE. ACTUAL. FUCK.
Porque no momento em que a ação começa, a tela explode em caos completo e glorioso. Balas, feixes, mísseis, frutas, explosões, lasers ricocheteando, projéteis inimigos – você começa a se perguntar como este jogo está sequer rodando em um Dreamcast, e quanto mais em um Nintendo 64.
Porque toda essa caralhada de coisa na tela não é apenas poluição visual aleatória, o jogo está rastreando ativamente toda essa loucura. Cada bala. Cada ricochete. Cada trajetória de busca. Você tem dois modos de tiro – Riki, que lança um enxame de mísseis teleguiados (e sim, o jogo calcula cada arco, cada ajuste), ou Mami, cujos lasers ricocheteiam loucamente nas paredes como a arma do Gemini Man em MEGA MAN 3... ou o laser do Gunbuster, para deixar na estética de anime.
Você pode alternar entre eles rapidamente, com quase zero atraso. Significando que o jogo está potencialmente rastreando ambos os estilos de tiro, ao mesmo tempo. Junto com os movimentos dos inimigos. As balas inimigas. Suas balas (todas elas, pq isso é um bullet hell afinal). Os ricochetes. A mira. Tudo em tempo real. No N64. Ah – e você pode abater as balas inimigas no ar, afinal por que não fazer o processador sofrer só mais um pouquinho?
E justo quando você está genuinamente preocupado que seu console vai começar a soluçar em desespero, você solta o ataque especial – e tudo vira um Itano Circus completo. Você sabe, aquela gloriosa barragem de mísseis que todo anime de mecha faz pelo menos uma vez porque é a coisa visual mais legal conhecida pela humanidade? Sim, está aqui e é lindo. É arte.
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"Itano Circus é essa característica barragem de mísseis que se popularizou nos animes de mecha, criada por Ichiro Itano para o anime de MACROSS |
Bangai-O, de muitas maneiras, parece o bisavô do Vampire Survivors. Você conhece o tipo – o jogo que você primeiro ri como alguma tentativa bem vagabunda de lucrar em cima da nostalgia dos 8-bits. Você dá uma olhada nele e vai, “Isso é? Esse é o jogo?” Mas então, cinco minutos depois, você está encarando a tela, pasmo, se perguntando como seu sistema não está gritando “YAMETE KUDASAI” enquanto se encolhe em posição fetal. Bangai-O é exatamente esse tipo de jogo.
Dito isto – uma vez que você passa do espetáculo de derreter hardware e do puro fator uau da orgia de balas – fica claro que Bangai-O também é meio que um ponei de um truque só. Um truque muito legal, muito ambicioso, absolutamente insano, com certeza… mas ainda assim apenas um.
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Vampire Survivors, de 2021, parece uma grande tolice no começo... |
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... até que poucos minutos depois seu sistema vai estar urrando pra manter registro e controlar cada e toda coisa acontecendo na tela |
Não há muito em termos de level design, a maioria dos estágios são salas de teste glorificadas. Os chefes são inimigos ligeiramente maiores com barras de vida. Power-ups quase não existentes e a variedade de jogabilidade totalmente inexistente. Assim que o choque inicial passa – assim que seu cérebro se ajusta ao caos visual e você para de suspirar de incredulidade – fica bem óbvio que não tem mais nada acontecendo.
É um teste de stress de hardware espetacular disfarçado de jogo. E enquanto essa demo é um baita show, é um que não dura muito uma vez que a novidade passa. Bangai-O não é muito um jogo – é uma gloriosa e caótica tech demo. Ele existe menos para te entreter a longo prazo e mais para provar um ponto: que a Treasure ainda podia dobrar o hardware à sua vontade e fazê-lo implorar por misericórdia.
É o último grande feito de um desenvolvedor que uma vez transformou limitações técnicas em arte, e aqui, eles fazem isso uma última vez enfiando cada míssil, laser e fruta pixelada em uma tela até o console começar a suar frio. Mas uma vez que a poeira assenta e a tela clareia, tudo o que resta é a percepção de que não há muito jogo sob a loucura. Bangai-O é um show de fogos de artifício de cair o queixo – brilhante, barulhento, inesquecível... e acaba cedo demais.
Obrigatório para fetichistas de tecnologia, masoquistas retrô e qualquer um que já pensou “Eu me pergunto o que aconteceria se um console chorasse”. Todo o resto? Você ficará entediado em vinte minutos. Mas que vinte minutos gloriosos serão, especialmente se você jogar ouvindo Top wo Nerae! ~Fly high~.
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER