domingo, 5 de junho de 2022

[#902][MEGA] POCAHONTAS [Janeiro de 1996]


Taí um dos poucos filmes da Disney dos anos 90 que eu não assisti na época... não, espera, na verdade é ÚNICO desenho da Disney dos anos 90 que eu nunca tinha assistido. Ou eu assisti quando era criança? Eu sei que O Corcunda de Notre Dame eu assisti mas não lembro de uma única cena nem que a minha vida dependesse disso, então é possível que Pocahontas seja o mesmo caso.

Não que isso seja relevante, eu realmente estou enrolando pq falar desse filme é... bem, eu posso resumir em duas palavras: MEUA. MIGO.

Pocahontas é o primeiro longa metragem cartoon da renascença da Disney baseado não em um conto de fadas ou um obra ficticia, mas sim baseado em uma história real. E já temos a primeira luz vermelha aqui: a história real da nativa-americana chamada Matoaka é uma coisa ... complicada.

Matoaka frequentemente visitava o povoado de Jamestown, a fim de ajudar os colonos europeus durante a época em que o alimento era bastante escasso. Aos 17 anos de idade, durante uma destas visitas ela foi capturada por um colono que tinha alguns homens mantidos prisioneiros pelo pai de Matoaka - o chefe da tribo. 


A ideia era usa-la com moeda de troca, mas não rolou. Ela ficou como refem por mais de um ano, e suponho que eu não precise pedir para imaginar as condições, até que o plantador de tabaco John Rolfe – um viúvo de 28 anos – demonstrou um “interesse especial” na atraente jovem prisioneira, e acabou condicionando sua libertação, contanto que esta, concordasse em desposá-lo. Em seguida, Matoaka fora batizada como ‘Rebecca’ e em 1614, ela casou-se com John Rolfe – o primeiro casamento registrado entre um europeu e um nativo americano.

Pq, vc sabe, chegar numa mina sequestrada e dizer que liberta ela se ela casar contigo é super romantico. Mas calma que piora: essa história ficou muito famosa na Europa pq Matoaka foi levada para a Inglaterra como uma atração de circo, uma "selvagem domesticada" para fazer propaganda do trabalho de cristianização da Companhia Virginia de Londres.

Alias "Pocahontas" significa algo como "criança birrenta, mimada", que é um nome que os europeus acharam mais engraçado para aquela exótica criatura de circo. É, super nice...


O que, você sabe, é o material base ideal para um músical romantico. Frequentemente as pessoas cagam na cabeça da Disney por alterar a história real para esse filme, mas eu não acho essa a pior parte. Quer dizer, essa história definitivamente não devia ter sido escolhida para ser transformada para um musical family friendly porque ela é tudo menos isso, mas em o sendo - seja lá porque motivos de drogas alguém decidiu que tinha que ser isso e acabou - eu posso viver com as "concessões artisticas", é a alternativa menos pior do que passarem pano numa atrocidade dessas.

No papel, a ideia do filme não é ruim: um bando de ingleses desembarca na Virginia para fazer o que ingleses fazem historicamente, serem os gafanhotos da História, e nesse processo eles entram em contato com os nativos e aprendem que - surpresa surpresa - os indigenas são pessoas e que os selvagens da história são eles. Não é uma ideia ruim realmente.


O problema é mais no tom e na execução. Pra começar temos o nosso "herói" que publicamente se orgulha de quantos selvagens ele já matou e participa da canção que dizer que alguém só é humano se for fisicamente igual e pensar igual a ele - o que é uma linha de pensamento bem comum ainda hoje em dia, mas isso é outra discussão.

Isso é um arco de personagem, certo? Ele começa um cuzão de marca maior e aprende a ser um ser humano de verdade. Tipo Top Gun... se o Maverick ao invés de só ser um babaca que resultou em um acidente tivesse deliberadamente cometido genocídio... mas a ideia é essa. O problema é que essa "mudança" só acontece pq ele vê a novinha peituda de minivestidinho e fica doido pra agasalhar a agasalhar a coxonilha. Hã, acho que ficar de pau duro é o bastante para desculpar genocídio, quem sou eu pra julgar também né...

Suponho que todos os outros "selvagens" que ele se orgulha de ter matado não eram adolescentes gatinhas, então também eles não se ajudam né? MAS OI? E tá tudo certo, a gente vai meter essa mesmo? Mas enfim... ele fica stalkeando a moça pq ele tá muito afim de comer ela e eles se apaixonam perdidamente em uma música pq isso é um filme da Disney, afinal. Verdade que a música é filhadaputamente boa, isso tem que ser dito.


Tá, essa música é boa pra caralho mesmo. Mas voltando ao filme, aqui começam os problemas. Pra começar, os dois protagonistas tem uma quimica pavorosa. Por um lado, todos os indios no filme são tratados com a profundidade do "bom nativo em comunhão com a natureza pq por algum motivo indios e druídas são a mesma coisa", e Pocahontas (a protagonista) não é exceção.

Ela é a tipica protagonista de filme da Disney que tem um sonho que a sua sociedade não entende (e no caso do filme nem ela sabe o que ela quer), só que, você sabe poderes xamanisticos bccause nativos. Mas vá lá, Pocahontas não é o meu maior problema com esse filme e sim que o Romeu aqui é dublado pelo Mel Gibson que apesar do personagem ser desenhado como da mesma idade que ela soa como se tivesse pelo menos uns 45 anos e fala como um tiozão da Sukita dando em cima de adolescente. Vishhh...



Muita quimica, de fato, embora a maior parte dela venha de substancias legalmente vetadas. Então temos um romance baseado em um casal que só não é a pior quimica na tela da história da Disney pq depois eles fizeram A Princesa e o Sapo. Mas tá, isso só faz o filme ser ruim enquanto filme ... e o fato de que não tem história suficiente nem pra um filme de uma hora e vinte, tendo que encher linguiça com o sidekick animal fazendo whatever... é isso, faz o filme ser bem ruin também. 

E chato. Deus como esse filme é arrastado, se tivesse como cortar alguma coisa e ainda esse filme poder ser vendido como longa metragem eles fariam, eu senti como se estivesse assistindo os primeiros filmes da Disney e não de uma forma boa.




Porém meu problema com o filme vai além de ser apenas de ser apenas um filme com pouco conteúdo pra sua duração apesar de curta, dos personagens rasos terem a quimica um programa da Nickelodeon, tudo isso faria apenas o filme ser ruim. Só que Pocahontas vai um passo além e é terrívelmente... incomodo, pra dizer o minimo. Okay, "incomodo" é o maior eufemismo da história do espaço tempo, mas eu realmente não tenho adjetivos pra explicar o que esse filme faz. Sério.

E o que esse filme faz? Vamos lá: como eu disse a coisa toda é sobre ingleses aprendendo que pessoas de outras cores de pele e religiões são seres humanos, o que é bom. O que é menos bom é o que filme, e eu juro que eu não to de sacanagem com vocês, mete o seguinte discurso: "olha, os ingleses cometeram erros, mas os nativos também, todo mundo se passou um pouquinho, ninguém é perfeito, todo mundo errou".

Mais uma vez, eu não to de sacanagem com vocês, o climax do filme literalmente tem uma música sobre isso:


Então, é. Vc tá lá sua, cuidando da sua vida quando chegam uns caras com pé na porta e trabuco na mão metendo assassinato, pilhagem, estupro, trafico humano, roubo de terras, 57 tipos novos de doenças... mas vc também tá errado pq tentou se defender. Ambos os lados estão errados igualmente, né?

Disney... o que? Mano do céu, eu sei que anos 90 é uma terra sem lei, mas sério que vocês meteram essa? Serião mesmo?



E o pior é que isso não é uma cena isolada, é o tom do filme inteiro. Esses ingleses estão a dois segundos de fazer um genocidio? Claro, mas se tirar o cara realmente mau todo mundo mete a desculpa de Nuremberg ("eu só estava cumprindo ordens, não fiz nada de errado") e tá tudo certo. Quer dizer, tirando uma maçã podre ou duas o colonialismo foi super de boas e quando teve erros foram cometidos pelos dois lados, né?

Caceta Disney... que que eu vou dizer depois disso?


Não, imagine a seguinte proposta de filme: um soldado nazista que soa como se tivesse uns 50 anos de idade se apaixona por uma adolescente judia em 3 minutos pq ela é realmente gostosa. Aí dá umas tretas dos dois lados, e o tom do filme é que os nazistas cometeram erros sim mas os judeus também, e se tirar uma ou duas maçãs podres do nazismo tá tudo certo e os dois lados tem culpa igual. Pocahontas é EXATAMENTE isso, só que na América colonialista.

Mais uma vez: caceta Disney, aí tu me quebra véi. Nem sei como é que eu vou continuar depois disso. O que eu posso dizer é que temos a receita para um desastre. Um filme fraco, arrastado que não preenche nem uma hora e vinte sem fillers e com personagens escritos num guardanapo que tenta ser um romance family friendly em um dos cenários mais tenebrosos da história humana. Você não realmente deveria mexer com isso se não souber o que você está fazendo... mas se você REALMENTE for fazer isso, não faça o tom do filme de "e quem nunca errou, né?".

Humanizar os vilões é okay, mas quando se trata de desumanizar os oprimidos... cara, presta bem atenção onde vc tá pisando. Vai com calma. Pode ser feito, se você souber o que você está fazendo... mas eis a minha dica pra vocês: se o que você está fazendo é ESSE nível de profundidade...


... talvez você não devesse estar contando ESSE tipo de história. Apenas um palpite. (Mas mais uma vez, as músicas são boas pra caceta viu)

Não é tudo ruim, entretanto. Como eu disse, as músicas são realmente boas (mesmo "Savages" tem uma batida puta legal), e a animação é a Disney no topo do seu jogo. Mas mais importante que isso, a Disney reconhece que foi um erro.


Foram necessários os erros desse filme para a Disney entender que a resposta não é evitar fazer filmes sobre outras culturas, mas sim fazê-los com vozes dessa cultura no processo criativo. Com efeito em 2016, a Disney refez "Pocahontas", agora intitulado "Moana". Pq tirando a parte do romance (felizmente), Moana é essencialmente o mesmo filme que Pocahontas, só que dessa vez a Disney passou muito tempo formando um comitê polinésio que trabalhou para garantir que a mesma tragédia não acontecesse de novo.

Eu não tenho interesse em discutir em maior extensão Moana, para isso eu vou recomendar o video abaixo, mas o meu ponto é que pelo menos eles estão tentando melhorar com base nos seus erros passados - e por "erros" eu quero dizer Pocahontas.


Mas tá, passei já muito tempo falando desse filme já, vamos então falar do obrigatório jogo licenciado dele pq é anos 90 afinal. O que significa que obviamente temos aqui... um jogo não tão ruim assim, na verdade. Com efeito, eu diria que ele é bem interessante no que se propõe a fazer.

Hã, por essa eu não esperava...



Se você está pensando que esse é o bilhonésimo oitavo jogo de plataforma baseado em filmes... bem, você estaria certo em pensar isso pq é uma aposta bem provavel, só que nesse jogo em particular você estaria errado pois Pocahontas é um conceito de jogo bastante incomum. Pelo menos tentando se encaixar no tema não violento do filme [ruídos ininteligiveis], você corre pela floresta ajudando amigos animais e tentando impedir a guerra enquanto dança descalço pela floresta, correndo com o vento, cantando sob as árvores, sentindo o orvalho entre os dedos dos pés e a luz do sol em seu rosto.

Isso porque ao invés de um jogo de ação, Pocahontas é um puzzle plataformer que tem mais em comum com OUT OF THIS WORLD do que com o seu tipico hop'n bop. Isso significa que as fases consistem em uma série de obstáculos que tem que ser superados não pulando e reagindo, mas descobrindo como usar suas habilidades abrir caminho.



E quais habilidades você tem para solucionar os puzzles das fases? É aqui que as coisas ficam interessantes: em primeiro lugar esse jogo se inspira bastante em THE LOST VIKINGS: você pode alternar livremente entre Pocahontas e seu racoon Meeko, cada um com habilidades e movimentações diferentes para juntos abrirem caminho um para o outro.

Por exemplo, Meeko não entra na água, Pocahontas sim. Então para atravessar uma poça vc precisa atravessar a água com a garota e empurrar um tronco que boie para Meeko poder usar como plataforma para pular. Por outro lado Meeko escala arvores e entra em tocas que Pocahontas não passa, então você pegou a ideia de como um ajuda o outro.



Isso por si só já faria o gameplay desafiante o suficiente, com sempre formas diferentes de um abrir caminho para o outro, mas tem mais. Conforme você avança pelas fases, Pocahontas e Meeko encontram animais que precisam de ajuda. Como amiga da natureza, a nativa americano obviamente não será capaz de resistir à oportunidade de devolver um filhote de pássaro ao seu ninho, ajudar lontras a brincar ou guiar um filhote de urso em uma árvore.

O que rola é que ajudar os animais não é apenas fofinho, desbloqueiam habilidades de movimentação. Ajudando o veado você pode correr, por exemplo, ajudando o urso você consegue assustar os ingleses (embora isso não seja um "ataque" exatamente, é mais uma habilidade que vc usa em locais especificos para resolver puzzle na fase)



É importante ressaltar as habilidades são automáticas, então não é o caso de selecionar a habilidade certa em um menu e sim resolver os puzzles através de gameplay. Novamente, a maioria dos puzzles nesse jogo é relativamente simples, como uma pedra que pode ser empurrada para permitir o acesso a um lugar mais alto. Não é um jogo revolucionário, mas é bem implementado e agradável. - você definitivamente não se sente entediado jogando o jogo.

Complementando os níveis vem toques incidentais que remetem a cenas do filme. Pocahontas faz seu icônico mergulho de cisne, confunde as velas do navio com nuvens e, claro, mostra a John a beleza da natureza enquanto eles passeiam por um arco-íris de folhas. Enquanto isso, o desajeitado Meeko quebra panelas e é perseguido por um pug inglês. São pequenos detalhes discretos que são integrados ao level design e jogabilidade, ao mesmo tempo em que fazem referencias legais para quem quer um jogo baseado no filme.



A jogabilidade, sendo um puzzle plataformer como PRINCE OF PERSIA, é meio bosta. Mas então isso não importa  muito porque rodopiar e saracotear aloucadamente não é o foco do  jogo - embora algumas poucas sessões que exijam esse tipo de ação - como atravessar um lago pulando de vitória-régia em vitória-régia com Meeko - são bem merda também.

A Disney tinha grandes esperanças para o filme, convencida de que ganharia pelo menos uma indicação ao Oscar assim como "THE BEAUTY AND THE BEAST". A coisa curiosa é que na mesma época o filme "THE LION KING" também estava em produção, e muitos animadores optaram por trabalhar no "drama épico de época" considerando que Pocahontas era um filme muito mais respeitavel e com potencial maior - de modo que o time B foi relegado a um dos maiores sucessos da história cinema. 


Para o jogo, se aplicou a mesma lógica: THE LION KING foi passado para a Virgin Interactive, enquanto a própria Disney trabalharia no jogo do filme (que eles julgavam ser) mais prestigioso. Bem, pelo menos aqui deu certo: THE LION KING é um exercício de sofrimento e dor, Pocahontas é um jogo bem interessante. Simples e curtinho, mas interessante. 

Se pelo menos o mesmo pudesse ser dito do filme...

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 026 (Maio de 1996)


MATÉRIA NA GAMERS
Edição 009 (Julho de 1996)