"A Bela e a Fera" é um daqueles filmes feitos em uma época estranha, uma época que a Disney não era dona de metade da cultura pop e sim apenas um estúdio. Na verdade mal conseguia era isso, já que após mais de três decadas sem um grande sucesso o estúdio não ia muito bem das pernas. Tudo mudou em 1989 quando a Disney decidiu voltar as raízes: adaptação de um conto de fadas, muita música, visual impressionantemente bonito para a época... o pacote completo.
Esse foi "A Pequena Sereia" de 1989 , que foi um sucesso pandecapolicademico e hoje é conhecido como o primeiro filme da "Renascença Disney" (ou, mais modernamente, a "primeira renascença" da Disney, sendo Frozen conhecido como a segunda). "A Pequena Sereia" foi tudo isso, mas o que ele fez também foi é... um filme bastante problemático, para dizer o mínino. O curioso é que na época "A Pequena Sereia" foi visto como um filme feminista e de empoderamento feminino. For realz.
O próximo filme da "Renascença Disney" foi justamente "A Bela e a Fera", e sob todos os aspectos é um filme muito melhor que "A Pequena Sereia" ao ponto que foi indicado ao Oscar de melhor filme de 1992 - um feito que seria simplesmente impensavel hoje, mesmo quando uma animação foi de fato o melhor filme do ano como foi o caso com Your Name em 2016 e Spiderman Into Spiderverse em 2018.
A Bela e a Fera é um filme melhor animado (foi a primeira animação da disney a usar computação gráfica e ficou tão bom que muita gente sequer percebeu isso), com personagens (discutivelmente) melhores. O que não o torna um filme menos problemático, saiba você.
Bem, quer dizer, fazem quase trinta anos que esse filme foi lançado e a esse ponto você provavelmente já ouviu falar o suficiente sobre os principais pontos que estão de errado com ele, como sobre a mocinha não deveria se apaixonar por seu sequestrador ou que ele passa uma ideia toxica de relacionamento para as meninas que se você estiver em um relacionamento com alguém agressivo, tóxico e até mesmo perigoso, você pode muda-lo com o poder do amor.
Isso já foi debatido a exaustão muitas vezes antes, de modo que eu não tenho nada a acrescentar sobre esses temas. O que eu quero falar sobre "A Bela e a Fera", no entanto, são alguns outros pontos que são pouco (ou nunca debatidos).
GASTON AGE DA FORMA MAIS EFICIENTE POSSÍVEL
Eis um fato curioso pra você: normalmente os vilões de longas da Disney não são objetos de admiração dentro do seu próprio universo. Eles não tem amigos, no máximo capangas que gostam tanto quanto você gosta do seu chefe numa sexta-feira as 17h. Eles não são aclamados e frequentemente nem mesmo respeitados. Usualmente eles moram em uma caverna (metaforica, embora as vezes literalmente) e de lá só saem para fazer malignidades porque esse é o seu one defining trait: ser mau.
Pense no Scar, Ursula, Hades, Cleiton, Kublai Khan, são todos vilões no sentido mais vilanesco da palavra. Exceto por uma exceção: Gaston. Gaston não é o esquisitão que todo mundo recomenda "não chegue perto desse cara", pelo contrário: literalmente não tem como ele ser mais amado na sua pequena vilazinha de Putaquepariu do Oeste no interior da França.
Os aldeões absolutamente amam Gaston, e não por que ele escondendo quem ele realmente é. Pelo contrário, todo mundo conhece o verdadeiro Gastão e não poderiam o adorar mais por conta disso. Eu me recuso a acreditar que isso ocorre porque a aldeia é povoada inteiramente por vilões, então eu não posso evitar de pensar na mensagem que realmente está sendo passada aqui.
Gastão é egocentrico, machista, tem orgulho de ser ignorante (na verdade, ele tem orgulho em ser chamado de todas essas coisas) e... isso completamente funciona para ele. ESSA é a questão que as pessoas não fazem o suficiente a respeito do porque o bullying existe, bullys existem porque isso funciona. É simples assim. Porque o mano da sua vila passa com o carro com o som no talo as 2 da manhã? Porque funciona para os propositos sociais que ele almeja: os caras querem ser como ele, as mulheres o veem como um macho ideal. Não todos, mas definitivamente um número satisfatóriamente grande de pessoas.
A pergunta que tem que ser feita não é porque o bullying acontece, a pergunta que tem que ser feita é: se as recompensas por agir dessa forma são essas, por que alguém NÃO faria isso? Com os incentivos e recompensas que são dados, a coisa mais eficiente que Gaston pode fazer é ser exatamente do jeito que ele é - mesmo que ele não saiba porque faz o que ele faz, ele sabe que funciona.
Esse é o ponto que não é debatido o suficiente sobre comportamento toxicos, a grande parte das pessoas não age de forma cruel porque acorda de manhã e pensa "ah, eu vou ferrar com a vida de alguém, eu não vou ganhar nada com isso e vai dar trabalho, mas é o que eu preciso fazer". Não é assim que funciona para a grande maioria dos casos (claro, algumas pessoas são apenas más pelo prazer de serem más, mas isso não é tão comum assim). O que normalmente acontece é que a pessoa identifica a forma mais eficiente de ter o que ela quer e faz. É a recompensa que motiva, não o ato em si.
E sabe o que acontece se você tirar a recompensa dos Gastons da vida? Eles para de fazer isso. Foi o que aconteceu na Finlandia, em que foi implementado o programa Kiusaamista Vastaan antibullying. Diferente dos demais, esse programa não se foca na vitima ou esperar que um agressor apareça para então lidar com o caso, o programa se foca na mentalidade do publico e como eles recompensam socialmente o agressor. Tirando isso, o agressor não tem mais recompensas para fazer o que faz, e ele apenas para de fazer.
O KiVA foi implantado na Finlancia em 2007 e já naquele mesmo ano reduziu o assédio em 40%. Atualmente, 90% das escolas finlandesas já o implementaram e conseguiram eliminar completamente os casos de bullying das salas de aula. Como eu disse, algumas pessoas são apenas más mesmo e com essas não tem o que se fazer, mas para 90% dos Gastons do mundo é apenas questão de parar de recompensa-los pelo seu comportamento tóxico.
O PRINCIPE ADDAM ESTAVA CERTO
Todo problema da Bela e a Fera começa quando o principe Addam, que era notoriamente um cuzão mimado, recebeu a visita de uma velha mendiga numa noite de inverno e ela ofereceu uma rosa em troca de abrigo por aquela noite.
Pense sobre isso. O príncipe Adam estava errado por não querer que uma velha estranha dormisse em seu castelo? Você deixaria uma velha sem-teto dormir em sua casa se ela aparecesse na sua porta oferecendo-lhe uma flor em troca de uma cama? E você seria realmente uma pessoa horrível se não o fizesse?
"A Bela e a Fera" também consta como reprodução mais realista de como é ter filhos |
Bem, embora essa questão seja debatível, eis aqui o que não é: o príncipe Addam podia ser um cuzão, mas se tem algo que ele definitivamente não é, bem, isso seria estar errado nessa história. Porque ele não está: a velha mendiga era na verdade uma feiticeira mau como um pica-pau! Bem, eu não sei vocês, mas eu não posso realmente condenar alguém que bateu com a porta na encarnação do mal querendo entrar na sua casa.
Quer dizer, sério. Eu entendo que ela quisesse ensinar uma lição para ele ou algo que o valha, e posso entender que ele possa ter feito por merecer de alguma forma (já que a cena verdadeira nunca é mostrada, apenas é contado por cima o que aconteceu). Agora, por que ela teve que amaldiçoar os criados dele? Eles não fizeram nada. Ela transformou o staff do castelo, que não tinha direito a decidir merda nenhuma em objetos. Transformou crianças em xícaras de chá? O que de tão horrível uma criança pode ter feito para passar pelo menos dez anos no CORPO DE UMA XÍCARA! Não, sério, pense sobre isso: você passar uma decada preso no corpo de UMA XÍCARA!
Taqueopariu, se isso não é malignidade na sua forma mais pura, eu não sei mais o que seria! Existe uma cena que mostra uma prateleira repleta de crianças transformadas em xícaras que são "filhos" da Mrs. Potts, o que provavelmente seriam órfãos que moravam no castelo de alguma forma e ela decidiu tomar para si cuidar deles. Porque, claro, ser órfão na época da revolução francesa já não era ruim o suficiente, claro, você tem que ser transformado numa fucking xícara!
Diabos, até um doguinho foi transformado em um descanso para pés! QUEM É QUE AMALDIÇOA UM DOGUINHO, SUA BRUXA DOIDA DO INFERNO?
Pensando bem, eu retiro o que eu disse. O príncipe Addam não estava certo em bater com a porta na cara da maluca do inferno, ele tinha é que ter ligado para o John Wick.
A BELA E A FERA É NA VERDADE SOBRE AIDS E SER GAY
Hoje, AIDS não é exatamente uma grande coisa para a maioria das pessoas que não tem a doença. E todo mundo mais ou menos entende como funciona, como se pega, o que acontece, é um fato relativamente bem sabido. O mesmo, entretanto, não podia ser dito da realidade em 1991. Imagine a AIDS menos como "ah, é, isso existe, né?" e mais para histeria. Pense na mídia fazendo a farra do boi brabo com a onda de panico que se criou, adicione a propaganda que foi feita que AIDS era "coisa de homossexuais" com a ideia que se tinha na época.
Porque, é claro, tudo que você precisa para piorar uma pandemia é meter moralismo (o que trás junto politicos sempre) e religião no meio, o que possívelmente poderia dar errado? Bem, eu estou falando de uma situação realmente ruim, tipo linchamento ruim.
Tá, mas e o que isso tem haver com "A Bela e a Fera"?
Howard Ashman era o letrista da Disney, o que no caso de filmes pesadamente musicais quer dizer que você é meio que o roteirista da coisa já que as letras da música é que dão a diretiva emocional do filme. Então o letrista de um musical é alguem com muita influencia dentro da produção de um filme.
Ashman era abertamente gay, e tinha AIDS na pior época possível para isso. Não que hoje seja bom ter AIDS, mas o começo dos anos 90 foram cyberpunk 2077 em vários sentidos. E é aqui que entra a metafora da rosa no filme.
A rosa é a metáfora de Ashman para a , na qual a Fera precisava encontrar o amor verdadeiro antes que a última pétala caísse e o seu tempo acabasse. O que tem todo um outro sentido quando consideramos que isso foi pensado por um homem que estava literalmente morrendo.
O chefe da Disney, Jeffrey Katzenberg, que pagou do seu próprio bolso uma enfermeira particular para que Ashman pudesse continuar trabalhando (o que, nos Estados Unidos, é muito, muito caro), explica também a canção da turba enfurecida "Kill The Beast" foi a chance de Ashman expressar seus sentimentos em relação à luta contra a AIDS e o estigma que acompanhava a comunidade LGBT então.
Eu totalmente consigo visualizar o "cidadão de bem" dizendo que "pessoalmente não tem nada contra, mas tem que proteger as crianças dessa abominação". Com efeito, eu já vi isso ser dito com palavras bem próximas a essas.
Howard Ashman faleceu de complicações da AIDS apenas 4 dias após a estreia da Bela e a Fera nos cinemas, mas algumas letras que ele deixou prontas foram usados por alguns anos ainda nos filmes da Disney como Aladdin e O Rei Leão.
Bem, essas eram as coisas que eu queria falar sobre A Bela e a Fera. E quanto ao jogo do SNES? Meh, é uma versão piorada do BEAUTY AND THE BEAST: ROAR OF THE BEAST de Mega Drive.
Nesse jogo você joga inteiramente com a Fera e enquanto é melhor ter um jogo completo do que metade de um jogo (originalmente esse jogo e BEAUTY AND THE BEAST: BELLE'S QUEST eram um só e que foram transformado em dois jogos separados pela distribuidora, vulgo a Sega) e só por isso seria melhor não fosse que a inércia do personagem é medonha.
Eles quiseram passar a sensação que a Fera é pesadão porque, bem, ele é um monstrão... e o resultado é um daqueles jogos que você tem que "pegar distancia" antes de fazer qualquer pulo senão o personagem não sai do lugar. Pena que esqueceram de avisar isso as plataformas do jogo, que não tem espaço suficiente para isso sempre, e ao posicionamento dos inimigos que ferra com essa pretenção.
É um jogo ruinzinho, mas mais esquecível do que ruim realmente.
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