Quando eu falei de XENOGEARS, eu comentei que aquele projeto nasceu de quando a Squaresoft estava reunindo mundos e fundos para o seu grande jogo que tomaria o mundo de assalto. Então todo mundo que tinha uma ideia OZADA podia tentar a sua sorte.
XENOGEARS foi um desses projetos que acabou não sendo aprovado para ser o big gigantesco jogo de orçamento infinito - que, suponho que todo mundo saiba a essa altura, acabou sendo FINAL FANTASY 7. Porém a ideia de XENOGEARS era tão promissora, tão chocolatante que a Square decidiu tentar levar adiante esse projeto. Mas bem, isso foi a história que eu contei aquele dia, hoje eu quero falar de outro jogo nascido desse mesmo modo: Parasite Eve foi cogitado ser o FINAL FANTASY 7, acabou não sendo porém a Squaresoft gostou da ideia que decidiu tornar esse projeto um jogo independente.
A capa japonesa do jogo é bem mais... cinematica? ... eu suponho?
E que ideia era essa? Bem, era uma das ideias favoritas de Hironobu Sakuchi (o grande produtor da série): fazer uma continuação do livro de horror japonês "Parasite Eve". Considerando o quanto RESIDENT EVIL... bem, foi RESIDENT EVIL e fez o sucesso planetógico de RESIDENT EVIL, a Square estava muito inclinada a tentar fazer o seu survival horror.
ESPERA, SURVIVAL HORROR? O QUE CARALHAS A SQUARESOFT ENTENDIA DE SURVIVAL HORROR?
Nada. Absolutamente nada. E é por isso que eles fariam um survival horror na forma de um jRPG.
QUE?!
Parece interessante, huh? É o que veremos hoje!
Imediatamente ao iniciar o jogo, a primeira coisa fica aparente é que a Squaresoft aprendeu MUITO a trabalhar com cutscenes nesse ano e pouco desde FINAL FANTASY 7. Mas não apenas num aspecto tecnico, as cutscenes do jogo têm uma direção extremamente cinematográfica, criando uma identidade bastante polida que chama atenção de um ponto de vista artistico mesmo. Com isso eu quero dizer que desde o primeiro segundo de jogo, Parasite Eve tem um foco muito bem definido do que quer fazer e de onde quer chegar.
E onde que ele quer chegar? Bem, essa é a parte interessante.
Parasite Eve quer ser um filme de terror, mas daqueles terrorzão bão mermo e toda fotografia, iluminação e angulos de camera escolhidos - tanto nas cutscenes quanto no jogo mesmo trabalham nesse sentido. Mas não é só isso: além da ótima direção visual, a trilha sonora é composta Yoko Shimomura e isso por si só significa alguma coisa.
A mulher é um monstro, e suas monstruosidades ela soltou aqui porque foi a sua primeira chance de compor a trilha para um survival horror. Ao que ela aproveitou imensamente, a trilha sonora desse jogo supera muito a de RESIDENT EVIL porque ela tem tambem a coisa de criar uma atmosfera mesclando o silencio com os passos, como RE faz, mas Shimomura aqui mete um pianinho nervoso que faz a coisa ter um tom que é ao mesmo tempo tenso e triste. É uma coisa das histórias de terror japonesas que elas costumam ser muito mais trágicas que suas contrapartes americanas (onde o monstro usualmente é maligno because evil, nas histórias japonesas é comum vc sentir pena do monstro quando sabe a sua história) e Shimomura naileia a ideia como a gênia que ela é.
Para grande felicidade da raça humana, a mulher, a mito, a lenda continua em atividade hoje em dia e assinou as trilhas sonoras de jogos como Smash Bros Ultimate, Kingdom Hearts 3 e Xenoblade Chronicles. Tá fraca não, heim
Agora que abordamos os aspectos tecnicos do jogo, que são ótimos, vamos esclarecer o ponto que eu abordei no começo do texto: o conceito original desse jogo é que ele foi pitcheado para ser o FINAL FANTASY 7. Nesse conceito, FF7 se passaria com uma policial em Nova York e não é dificil de ver os resquícios dessa origem, pq o character design da nossa protagonista é essencialmente a versão feminina do Cloud Strife de FF7. Sério:
Porém não é apenas o conceito visual da personagem que foi reaproveitado em FF7: aqui Aya também tem a coisa de lutar contra celulas dentro de si (que em FF7 viriam a ser as Jenova Cells do Sephiroth) enquanto tenta descobrir o que RELMENTE aconteceu no seu passado ao mesmo tempo que carrega o fardo de não conseguir salvar todo mundo.
Protagonista assombrado por visões de si mesmo? Check
Isso posto, vamos falar do jogo per se: o capítulo inicial de Parasite Eve é provavelmente uma das melhores introduções a qualquer jogo neste blog até então. Ou de todos os tempos. Nossa heroína, Aya Brea, é uma policial novata em Nova York que está assistindo à ópera com seu acompanhante não identificado. Estranhamente, ela comenta mais tarde que sequer gosta de opera ou mesmo do seu acompanhante, ela não sabe realmente o que a motivou a se meter nesse programa embora todos saibam que usuarios de stands são atraídos uns para os outros
Mas enfim, em uma cena pré-renderizada ricamente dirigida, você vê o início da ópera, que é interrompida por uma mudança sinistra na atriz principal. Quanto ela cruza os olhos com Aya, os outros atores no palco simplesmente entram em combustão espontânea, um fenômeno que rapidamente se espalha para a plateia. É uma cena terrivelmente bela, o caos comendo, as pessoas pegando fogo, caindo das bancadas superiores, dedo no cu e gritaria... enquanto a causadora disso tudo continua cantando sua ópera serenamente.
Sério, é uma cena espetacular.
No meio dessa balburdia, nossa heroína que é da PULIÇA não deixa as coisas assim e vai dar voz de prisão a meliante que esta causando combustão espontanea na galera. O que é uma atitude muito valente, tenho que admitir, mas que talvez eu não tomaria já que pessoas que tem a capacidade de causar COMBUSTÃO ESPONTANEA não são alguém que eu veria rendido por uma voz de prisão... mas o que eu sei realmente de procedimentos policiais?
Seje como for, as coisas só ficam mais estranhas quando você entra nos bastidores e descobre que a moçoila incendiária não apenas tem habilidades piroclásticas, como é capaz de causar mutações grotescas. E eu quero dizer REALMENTE grotescas:
Uou salsicho, a Squaresoft não estava brincando quando abraçou ter uma classificação etária M na capa, pq o gore desse jogo faz RESIDENT EVIL parecer filme de Sessão da Tarde. O horror corporal aqui é pesado nesse jogo ao ponto que em 2023 eu joguei esse jogo e fiquei "... mano... uou...". Basta dizer que o ultimo chefe desse jogo é literalmente um feto deformado grotesco do inferno - decadas antes de The Witcher 3 apresentar o Botchling como chefe. Frequentemente o horror corporal nesse jogo é asqueroso e revoltante.
Ou seja, amei pra caralho essa porra.
Mas não é apenas o visual desse jogo que é perturbador: sua história é muito boa também. Quero dizer, boa para o padrão terror, ela é meio ruim, mas é o tipo "tão ruim que é boa" que é o melhor tipo de ruim. Eis o que rola: Parasite Eve, o livro original japones, foi escrito por uma farmacologista chamada Hideaki Sena e assim como The Last of Us se baseia em conceitos cientificos reais.
Vamos lá: um dos principais componentes das celulas animais é a mitocondria, a parte responsável pela respiração celular. Ou seja, ela faz os paranaues de queimar o oxigenio para converter em energia e que é o que faz a celula ter energia pra funcionar. Só que essa não é a parte mais louca da história e sim a seguinte: a teoria mais aceita atualmente sobre a origem das mitocôndrias é que há cerca de 2,5 bilhões de anos atrás a mitocondria era um ser vivo independente que por algum motivo qualquer foi absorvido por um organismo maior (provavelmente uma bactéria) sem ser digerida. Isso gerou uma relação simbiótica onde o organismo hospedeiro conseguiu obter um maior aproveitamento energético de seus alimentos, sendo que o organismo simbionte favoreceu-se da presença de alimento, bem como do abrigo e proteção.
Neste jogo: a Eva Mitocondrial tenta roubar um banco de esperma para se autoengravidar a si mesma e dar origem ao messias anticristo mitocondrial. A Square realmente não desperdiçou o rating M desse jogo, eu te digo.
Eventualmente, tanto a coisa que viria a ser a mitocondria perdeu a capacidade de viver independentemente do organismo hospedeiro e o contrário foi verdadeiro ao ponto que a produção de mitocondrias foi incorporada pelo DNA do hospedeiro. E hoje, embora hoje a mitocondria não seja mais considerado um ser vivo, ela ainda retem o seu próprio DNA. E eu não sei vocês, mas quando eu descobri que dentro de cada uma de nossas celulas tem o que restou de um ser vivo assimilado, eu achei completamente louco isso.
Pois bem, Parasite Eve trabalha com uma tese interessante: as mitocondrias tem mais energia do que qualquer celula do corpo porque elas literalmente produzem a energia. Então trabalhando com niveis tão elevados de energia, as mitocondrias teriam como evoluir mais rapidamente que o seu hospedeiro. Todos comigo até aqui? Ótimo.
Sim, um dos chefes desse jogo é uma grávida peituda mutante de quatro braços e vc desce o pipoco na buchudaça, eu já disse que amo esse jogo?
O que nos leva a antagonista EVE, que é uma colonia de mitocondrias evoluídas capaz de não apenas produzir energia infinita (já que essa é a coisa das mitocondrias) e por isso causar as combustões espontaneas através de gerar calor, como controlar as mitocondrias dos outros e muta-las ao seu bel prazer.
OKAY, VOCÊ DEU O EMBASAMENTO CIENTIFICO E TUDO, MAS... CARA, A REBELIÃO DAS MITOCONDRIAS MUTANTES É UMA DAS COISAS MAIS ESTÚPIDAS QUE EU JÁ OUVI NA VIDA!
Com certeza é, e isso não é a coisa mais maravilhosa que você poderia querer para uma história de terror? Quer dizer, não é uma loucura totalmente tirada da bunda - existe uma base cientifica - mas ao mesmo tempo soa tão incrivelmente estúpido que casa maravilhosamente bem com doses cavalares de gores e horror corporal. Eu arriscaria dizer que Parasite Eve é o filme trash mais bem produzido do mundo!
Pq é claro que o parceiro da Aya seria um policial negro veterano que está de saco cheio dessas merdas, como era obrigatório nos anos 90
E acredite, o clima de filme trash só fica melhor conforme o jogo avança as coisas vão ficando mais e mais ciencia-trash quando explica o envolvimento da policial Aya Brea com a Parasita (bem, mitocondria) Eve e pq apenas Aya é imune ao churrascamento mitocondrial!
VOCÊ... USOU REALMENTE A EXPRESSÃO "CHURRASCAMENTO MITOCONDRIAL"?
SIM! Esse jogo não é a coisa mais fabulosa da história da humanidade desde a invenção do Fandangos sabor uva? Pois eu acho que é.
Alguem na produção desse jogo claramente assistiu The Thing. Niiiice.
Porém o jogo não se chama "Parasite Eve" apenas por causa da Parasita Eva, e sim pq ele também se passa na véspera de natal de 1997 (daí o "eve" também de ser Christmas Eve). Conforme mais e mais coisas mitocondricas mutagenicas sobrenaturais acontecem, a cidade de Nova York é evacuada e apenas a policia e meia duzia de malucos ficam para trás para investigar o caso Eve. E pq isso é importante?
Pq esse clima de uma semana (o jogo de passa da vespera de natal até o ano novo) em uma cidade abandonada tem muito o feeling, o ar de história do Stephen King. Só que ao invés de ser no interior do Maine, é uma nova york quase pós-apocaliptica de vazia. Cara, se esse não é o melhor cenário que alguém poderia querer para uma história de terror, eu desafio alguém a me sugerir um melhor.
Um survival horror em cenários pré-renderizados que você salva em telefones, onde eu já vi um jogo assim?
Adicione agora a todas essas coisas que o jogo tem um ritmo excelente (esse não é um jogo muito longo), e temos um jogo que seria um dos grandes filmes de terror trash dos anos 90. Um dos grandes, eu te digo. Se parasse por aí já seria bom o suficiente, só que Parasite Eve não é um filme e sim um jogo. Mais precisamente, um jRPG Survival Horror... e eu ia dizer que é "aqui que as coisas ficam loucas", mas elas já estavam loucas o suficiente até então. Seja como for, adelante!
Como a coisa funciona: o combate do jogo funciona essencialmente como um jRPG, encontros aleatórios e tal, sendo que a grande diferença é que você tem que esperar sua barra de ação carregar para poder dar os comandos (como em um jRPG clássico), porém aqui vc pode andar pela tela pra desviar dos ataques dos inimigos, numa pegada meio Action RPG. Note-se que esse é um jogo de PS1 que não usa os famigerados controles tipo-tanque de RE1, então desviar dos ataques inimigos é infinitamente mais fazível.
Sério, não é louco quando apertar pra cima vai pra cima, pra baixo vai pra baixo e para os lados vai para os lados? Eu ainda estou para entender o tesão que eles tinham com os controles tipo-tanque nessa época, mas enfim... quando a sua barra carrega você não ataca imediatamente, vc abre um menu de opções como em um jRPG.
E quais opções vc tem? Atacar, lançar magia e usar itens SÓ QUE CONTUDO TODAVIA ENTRETANTO como esse jogo tambem é parte survival horror, aqui seu ataque envolve munição contada. Com efeito, gerenciar não apenas sua munição como seu inventário limitado parece algo saído diretamente de RESIDENT EVIL.
E, mais importante, esse jogo tem uma grande diferença para o seu jRPG típico que é que os combates não se passam num limbo. Eles acontecem exatamente onde vc está e foda-se. Vc está passando numa ponte estreita quando triggou o combate aleatório? FODA-SE. Tá passando num lugar cheio de obstaculos te trancando o caminho?
"Ah mas não tem espaço pra lutar nesse cenário que eu to agora!"
Jogo:
Isso realmente faz muito pela imersão do jogo, pq o fato de vc não sair do cenário para ir lutar no limbo (como é o normal em combates por turnos) mantem a tensão sempre presente. Isso e a já citada trilha sonora da mestra Shimomura, né?
Porém se vc acha que o jogo não está RPG o suficiente, saiba não apenas que você tem atributos e experiencia, como existe uma mecanica para transferir os upgrades de uma arma para a próxima - só que com uma pegadinha: vc só pode transferir UM atributo da arma. Então vc tem uma arma com dano base 44 e achou uma com dano base 55, vc pode transferir UMA das propriedades dela (tipo "scatter shot" ou dano elemental de fogo) ou os power ups bonus que vc colocou nos atributos dela.
O jogo aqui é a escolha. Ah, e pra transferir os stats vc precisa gastar um item chamado Tool - ou seja, vc precisa carregar um ou mais desses (ou torcer pra achar) quando for entrar numa dungeon, então boa sorte gerenciando seu espaço de inventário ae. Classic Survival Horror.
Então a ideia da coisa é essa, Parasite Eve fica nessa dança de um pé no jRPG e um no survival horror, e dessa linha tenue acaba gerando um jogo completamente único. Some a isso o ambiente isolado de uma Nova York evacuada, excelente sci-fi ruim de filme trash, gore fantabulosamente perturbador, a duração do jogo é perfeita para contar sua história sem ficar arrastado, trilha sonora monstruosa, combate sem nada remotamente parecido, gráficos absolutamente topo de linha... antes de jogar esse jogo eu fazia ideia de que Parasite Eve era uma experiencia bastante única de uma das fases mais criativa da Squaresoft, mas eu realmente não esperava gostar tanto.