Em 2002, o redator da prestigiada revista Famitsu, Jun Miura, estava fez uma matéria sobre um retro-jogo de 1985 chamado "Ikki" (não muito diferente do "Tunel do Tempo" que a Ação Games ou a SGP faziam). O que é relevante para nossa história, entretanto, é que Miura usou um termo "kusoge" para descreve-lo - que literalmente significa "jogo merda" (kuso = merda, Ge = gemu, a ingrishificação de "game").
Só que ele não se referia a qualquer jogo merda, oh não, e sim especificamente jogos tão ruins que chegam a ser fascinantes em toda sua medíocridade. É como assistir um acidente de carro, é uma coisa horrível, mas você não consegue tirar os olhos daquela catastrofe. É como assistir de The Room, é tão ruim, mas tão ruim, mas TÃO ruim que dá a volta completa e flerta com a genialidade.
Miura não inventou o termo, ele já rolava nas revistas japonesas a algum tempo (especialmente na Famitsu, que é extremamente exigente e crítica), mas é atribuído ao texto dele essa interpretação atual que a internet tem do termo. Seja qual for a origem, o fato que importa aqui é que hoje temos um kusoge tão kusogesco que você não tem como não esfregar as mãos de antecipação pq em toda catastrofe que vem pela frente, não tem como não pensar "ai papai, hoje tem!"
Então, sem mais delongas, vos apresento o estimado Kusoge do dia, Koudelkinha da Massa!
Porém, antes de mergulhar nas complexidades de seu absurdo delicioso, vamos tirar um momento para apreciar como Koudelka surgiu. Porque veja bem, é só ver a história de criação desse jogo e você já sabe que este não é um jogo comum. O diretor, Hiroki Kikuta, era compositor na Squaresoft, tendo no seu currículo algumas trilhas sonoras de respeito como SECRET OF MANA e TRIALS OF MANA. Só que depois de uma longa carreira trabalhando com música e som, Kikuta estava encantado pela ideia de dirigir seu próprio jogo, conta sua história, sua visão de mundo!
Ao que, obviamente, a Square lhe respondeu:
A Square lhe disse MAI NEM FOUDENDO que um músico DUNEIDA ia dirigir um jogo, o que fez Kikuta responder a altura:
IMPRESSIONANTE COMO AS PESSOAS JÁ SE COMUNICAVAM ATRAVÉS DE MEMES EM 1998, HEIM?
Algumas coisas são da própria natureza humana. Seja como for, Kikuta então procurou a SNK e disse "ei, vocês tem todos esses jogos de luta legais e tal, mas... que tal ter alguem que faça RPGs que nós japoneses tanto amamos? E olha só, eu por acaso sou um cara com mais de dez anos de experiencia na Squaresoft, eu entendo alguma coisa disso, heim?".
Suponho que ele esqueceu de mencionar que os seus dez anos de experiencia foram como MÚSICO, mas o que entrou pra história foi que a SNK bancou para ele fundar o seu próprio estúdio - a Sacnoth. Grande nome totalmente não quinta série, campeão.
Seja como for, Kikuta então usou toda experiencia que ele... discutivelmente... tinha em RPGs para combinar elementos de survival horror com mecânicas de JRPG. E sim, eu sei que você está pensando isso, e sim, Koudelka é essencialmente o primo esquisito de PARASITE EVE. Se PE misturava horror corporal com batalhas de turnos Nova York na vespera do Natal, Koudelka faz isso misturando monstros igualmente resident evilnescos com... o monastério do Nome da Rosa... e RPG Tático? Que?!? Espera, tá certo isso mesmo, produção?
A história de Koudelka se passa em uma abadia abandonada nos arredores de Gales, um lugar onde segredos obscuros se avolumam e acontecimentos misteriosos acontecem. Você assume o controle da personagem titular Koudelka, uma cigana psiquica... não, eu não estou inventando adjetivos aleatoriamente, deixem de ser nepomucenicos ululantes... com um passado sombrio. Ela está em uma missão para descobrir a verdade por trás dos estranhos eventos que estão assolando a abadia, mas ela rapidamente percebe que o lugar está infestado de criaturas sobrenaturais e inimigos mortais. Lá ela encontra dois companheiros improváveis: Edward, um ex-soldado com um passado problemático, e James, um padre bem cuzão que claramente esconde alguns segredos sinistros.
O enredo é o típico caso de casa mal-assombrada: forças obscuras estão em jogo, as paredes estão se fechando e todos têm seus próprios segredos para proteger. Mas tudo bem, o que torna histórias de terror interessantes não é tanto O QUE é entregue e sim COMO a experiencia é entregue. E boy, oh boy, definitivamente Koudelka entrega uma experiencia... única.
Só que antes de falar sobre a atmosfera e a história, eu preciso sobre a jogabilidade, afinal isso ainda é um videogame, você ainda aperta botões e coisas acontecem... majoritariamente. Isso pq se PARASITE EVE já de primeira mostrou como misturar survival horror com JRPG, a abordagem de Koudelka para essa ideia é... digamos, menos convencional.
Em essência, o sistema de combate é baseado em turnos, muito parecido com o que você esperaria de um RPG Tático. Os personagens andam tem um grid e se revezam para atacar, usar itens ou lançar magia. Mas é aqui que as coisas ficam um pouco, uh, "únicas". Pra começar, existe uma linha de scrimmage que faz o jogo parecer mais uma partida de futebol americano do que qualquer outra coisa. Explico: seus personagens não podem avançar para qualquer lugar do tabuleiro, eles só podem ir até a linha que tem um inimigo - mesmo que ele esteja em uma coluna do outro lado do grid.
ACHEI BEM CONFUSA ESSA EXPLICAÇÃO. AO MENOS O JOGO EXPLICA MELHOR QUE VOCÊ?
Não porque o jogo não explica nada, leva um bom tempo sem você entender pq não pode caminhar no grid para perceber o que está te trancando. Porém não que isso seja muito problema, pq Koudelka é um jogo ridiculamente fácil por uma razão bem simples: o jogo dá pontos de atributo e níveis como quem está distribuindo bala perdida no RJ.
Veja bem, em Koudelka, subir de nível e ganhar atributo é tão exagerado também é sua principal forma de cura. Não, sério, eu mal usei itens de cura nesse jogo pq sempre que você sobe de nível, seu HP e MP são totalmente restaurados e, como o level up acontece em um ritmo surpreendentemente rápido, você descobrirá que está constantemente com a vida e a mana completa. Eu já vi todo tipo de jogo quebrado nessa vida, mas acho que é a primeira vez que vejo um jogo em que a mecanica é tão quebrada A FAVOR do jogador.
Eu abri o vídeo em um momento aleatório pra pegar uma cena e a primeira coisa que caiu foi uma tela de level up, é nesse nível a pegada |
E como você pode escolher onde alocar os atributos que ganha ao subir de nível, é apenas questão de (bem pouco tempo) até você ter dano , HP e Mana suficiente para não precisar se preocupar com mais nada. Até pq o atributo de defesa (tanto fisica quanto mágica) aqui é o mesmo do atributo de ataque, então ao comprar INT você aumenta seu dano com as magias e diminui o dano mágico tomado AO MESMO TEMPO. Agora, isso pode parecer desequilibrado... e é pra caralho.
Como Koudelka joga atributos e níveis em você como se estivesse sendo pago pra isso, antes da metade do jogo suas magias básicas causam 2.500 de dano enquanto os inimigos que você está enfrentando têm apenas cerca de 600 HP - e causam 0 com as magias deles dado que o atributo é o mesmo. Dado que o tema do jogo é survival horror, eu não acho que foi intencional ser uma power fantasy tão quebrada assim...
Abri outro momento aleatório do vídeo, bam, outro level up. Sério. |
As animações de combate são outro destaque, mas não um positivo. O problema aqui é que elas são lentas, muito lentas. Tão lentas, na verdade, que você frequentemente se pegará se perguntando se os personagens estão lutando em câmera lenta para lhe dar tempo de refletir sobre as escolhas que você fez na vida. Existe um delay muito estranho entre apertar o botão e os personagens fazerem qualquer coisa, o que não é tão catastrófico em um RPG de turnos quanto seria em um jogo de ação, mas ainda sim é ruim. Tipo bem ruim.
E por falar em combate, vamos falar de armas. Eles quebram. Bastante. Yay, a mecanica favorita de todo mundo em videogames... Enfim, você vai passar boa parte do jogo gerenciando freneticamente seu limitado espaço de inventário, rezando para os inimigos droparem armas extras em sua mochila só para repor suas armas quebradas - não é a toa que todos os guias do jogo dizem pra só esquecer TODA PARTE DE ARMAS e focar apenas em magias, sinal de um game design campeão, eu te digo. Tá, eu sei que gerenciar inventário é um clássico do survival horror, e Koudelka sentiu que precisava colocar isso no jogo, mas sério...
Se você é fã de backtracking, Koudelka vai satisfazer essa vontade como poucos outros jogos conseguem. Para as pessoas menos doentes da cabeça, no entanto, isso não é algo que deva ser muito comemorado porque o jogo não tem a menor vergonha de te mandar de volta pro outro lado do mapa pra pegar uma chave e voltar. O que piora ainda mais pq os gráficos geralmente são muito escuros para distinguir itens pixelados, o que significa que você passará um bom tempo tropeçando no escuro, esperando não perder nada importante. Tá que não chega a ser tão ruim de enxergar quanto SHADOWGATE 64: Trials of the Four Towers, mas pelo menos uns 3 graus de visão vc vai perder forçando a vista pra tentar enxergar alguma coisa para coletar.
Suponho que eu deva mencionar os puzzles tambem, embora não tenha muito sobre isso realmente. Você resolverá puzzles no estilo Resident Evil: pegue o item X e leve-o para o local Y. Existem alguns quebra-cabeças de lógica, mas nada que faça você suar a camisa. Os quebra-cabeças existem para aumentar a duração do jogo, mas, novamente, dificlmente você vai lembrar deles após alguns minutos.
Com os aspectos tecnicos tirados do caminho, vamos ao que interessa: a razão pela qual Koudelka conquistou seu lugar nos anais da história dos jogos cult. Apesar de todas as falhas — o combate lento, a mecânica instável e o backtracking do cão — há algo inegavelmente encantador neste jogo.
Eu amo essa cena do monstro caindo que nem um saco de bosta no chão, eu ri alto na hora |
A coisa é que o cenário, as atuações, as próprias cutscenes... este é um jogo que sabe que não é ótimo, mas não se importa. Tem coração. É como um filme B ruim, onde os atores dão tudo de si, mas o orçamento é inexistente e os efeitos especiais são ridiculamente terríveis. As cutscenes são gloriosamente ruins — tudo, desde as animações faciais até as pausas dramáticas exageradas, a música ridiculamente dramática e a entrega dos diálogos. É como assistir a um grupo de atores se levando muito a sério enquanto dizem falas que fazem você rir.
As interações dos personagens são ouro puro. Cada conversa é encharcada de dialogos que fazem você se perguntar se um ser humano realmente escreveu aquilo. Só que aí está o ponto: o jogo entrega isso tão sério, tão comprometido com sua visão bizarra, que você não consegue deixar de torcer por ele. Você não está apenas assistindo a uma atuação ruim; você está assistindo PAIXÃO. E quer saber? Volta e meia essa paixão resulta em cenas não ironicamente boas, você consegue sentir que Kikuta queria muito muito mesmo fazer esse jogo em cada fibra do seu ser.
Tipo a cena em que Koudelka e Edward estão bebados conversando sobre suas vidas é uma das melhores cenas que eu já vi em um jogo, a entrega do dialogo, o peso das suas frustrações, cinema absoluto!
No final das contas, Koudelka não é um jogo para todos. É mecanicmaente desajeitado, seu combate é lento, o level design te enlouquece mais frequentemente do que a sanidade recomenda e você vai sentir vontade de dar uma cabeçada na parede depois de descobrir que passou 5 vezes pelo item que precisava pegar ou a porta que era pra entrar porque VOCÊ NÃO ENTENDEU OS GRÁFICOS. Mas... se você conseguir ignorar suas muitas falhas, há uma experiência única e repleta de coração esperando por você. É o tipo de jogo em que seus defeitos se tornam parte da diversão, onde seu ridículo só aumenta seu apelo.
Ai o saco de bosta não tinha morrido, CORRE BERGUEEEEE!!! ... mas sério, eu acho as CG desse jogo muito bonitas, o character design foi muito feliz aqui |
E embora Koudelka possa não ter sido um sucesso estrondoso no lançamento, ele abriu caminho para a série Shadow Hearts, uma franquia de JRPG muito mais renomada - mas ainda deliciosamente peculiar. É o kusoge por excelência — uma joia impecável que oferece muito mais do que pode parecer à primeira vista. Se você tem uma queda por jogos estranhos, crus e cheios de coração, então Koudelka é uma jornada que vale a pena fazer. Não uma boa jornada o tempo todo, mas então, que jornada dá boas histórias onde tudo saiu como você esperava o tempo todo?
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 155 (Setembro de 2000)
MATÉRIA NA GAMERS