quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

[#1383][Ago/2000] DRAGON QUEST 7: Fragments of the Forgotten Past

A chuva cai torrencialmente, cortando a noite como pequenas lâminas cruéis. Uma substituição pobre para as lágrimas que eu não mais vertia, essa capacidade foi uma das coisas que eu perdi nessa longa jornada de sofrimento e dor. Mas a esse ponto, isso não importava mai. Sentei contra uma parede de tijolos em ruínas em algum beco esquecido, o fedor de podridão e arrependimento pairando no ar ao meu redor. O zumbido de neon de uma placa quebrada tremeluzia no alto, lançando rosas e verdes doentios no pavimento escorregadio pela chuva.

Procurei o maço de cigarros no bolso do meu casaco, apenas para lembrar que os tinha esmagado na ultima luta — ou talvez isso tenha sido três noites atrás. O tempo se tornou um borrão, cada dia se mesclando nas memórias com o seguinte, uma longa sequencia de miséria amarrada por uísque barato e decisões ruins. Minhas mãos tremiam quando acendi o último cigarro que consegui salvar, a chama do fósforo lutando para se manter viva contra o vento. Mais ou menos como eu.

Sabe, eu nem sempre fui essa... coisa. Essa casca vazia. Houve uma época em que eu tinha um nome que as pessoas diziam com respeito. Amigos que me olhavam nos olhos. Uma vida. Eu até pensei que tinha um futuro. Engraçado, né? Eu pensei que poderia interpretar o herói em uma história como a minha. Mas se tem uma coisa que aprendi, é que o mundo não lida com finais felizes — não para caras como eu.

Você quer saber como eu cheguei aqui? Como eu me tornei essa bagunça de ossos, bebida e promessas quebradas? Tudo bem. Você quer a verdade? Aperte o cinto. Porque não é o tipo de história que você sai se sentindo bem. É o tipo que fica com você. Que te mancha.

Essa é a história de minhas 150 horas com Dragon Quest 7.


Mas, como de costume, vamos começar do começo... pero no mucho. Quero dizer, DQ7 é o terceiro jogo da franquia que eu jogo nesse blog (depois de DRAGON QUEST 3: The Seeds of Salvation e DRAGON QUEST 6: Realms of Revelation), e eu já contei algumas vezes sobre o que essa série é essencialmente. 

A versão rápida da história é que  existe algo quase mítico sobre a série Dragon Quest no Japão. Imagine uma franquia tão amada no Japão que é praticamente patrimônio nacional. Tão popular, na verdade, que tem uma lenda urbana afirma que o governo japonês teve que intervir e aprovar um projeto de lei para impedir que os jogos Dragon Quest fossem lançados durante a semana, para que toda a força de trabalho e o sistema escolar não entrassem em colapso no caos. Embora isso não seja tecnicamente verdade, também não está longe da realidade — o lançamento de Dragon Quest no Japão realmente faz o país parar, imagine algo tipo o Brasil em dia de jogo da Seleção na Copa. É esse nível a coisa.

O que nos leva ao caso de hoje: a tão aguardada primeira (e única) iteração da franquia para o uber popular console de 32 bits da Sony. O Japão estava salivando tanto por esse jogo que quando Dragon Quest VII chegou às prateleiras para o PlayStation 1, a Enix relata que o jogo vendeu mais de dois milhões de cópias nas primeiras 24 horas. Dois. Milhões. de cópias. E isso foi só no Japão! O frenesi foi tão intenso que remessas adicionais foram apressadas para atender à demanda insaciável. Sério, se algum momento na vida você conseguir visualizar japoneses se comportando como aqueles memes de Black Friday nas lojas, esse dia foi o lançamento de DQ7

Mas a pergunta que realmente importa é: e aí, o jogo justifica esse hype todo? E a resposta que eu posso te dar para isso é que Dragon Quest 7 é o maior RPG que eu já joguei na vida!

UAU, ELE É BOM DESSE JEITO?

Não, Jorge, você não entendeu, eu estou dizendo que ele é literalmente o maior RPG que eu já vi na vida. Quero dizer, sério, essa é uma foto da transcrição do texto do jogo publicada pela própria Enix do Japão: 

E isso que japonês é um idioma conciso onde um único caracter representa uma silabas ou mesmo ideias inteiras (vulgo "kanji"), na romanização do texto é pelo menos três vezes esse tamanho! Agora que você entendeu o tamanho da brincadeira, caro leitor, é que a nossa jornada começa — ou melhor dizendo, onde minha lenta descida à loucura começa.

Por isso mesmo, vamos começar pelo slime branco no meio da sala: meu santo Miyamoto, como esse jogo é lento. Mas puta que o pariu o araketu araketu quando toca fica todo mundo pulando que nem pipoca, essa desgraça é insanamente a coisa mais lenta que eu já vi na vida! Não, corrijo, você não entende o quão lento esse jogo é, você não TEM como entender! 

Você pode achar que esperar ser atendido na fila da CEF é lento, você pode achar que assistir tinta secar enquanto ouve Enya no repeat é lento. Mas Dragon Quest VII olha para tudo isso, ri, acende um cigarro, e diz: "Segura minha cerveja." Porque essa porra eleva a lentidão a uma forma de arte. É o Tarkovski dos videogames, só que sem a poesia visual. É um desfile de escargots competindo em câmera lenta, embalados por uma trilha sonora que soa como um karaoke de flauta doce desafinada. E ainda assim, de algum jeito, eu continuei jogando. Talvez por curiosidade mórbida. Talvez porque, depois de 30 horas, eu já não sabia mais onde terminava o jogo e começava minha alma em desintegração.

A esse ponto você pode achar que eu estou exagerando, mas segura essa manga: leva mais de uma hora para chegar à primeira batalha. Uma. Hora. E isso se você estiver focado. Se você é do tipo que conversa com NPCs e absorve a atmosfera, pode levar ainda mais tempo. Conseguir seu quarto membro do grupo? Isso levará de 8 a 9 horas. Desbloquear Alltrades Abbey, o sistema de mudança de classe característico da franquia? Umas 20 a 21 horas chutando baixo. Quando você rola os créditos, está olhando para cerca de 150 horas de jogo — e não, isso não é um erro de digitação. 

Tirado do HLTB

Mas aqui está a coisa: toda essa duração seria perdoável se o jogo tivesse o conteúdo para justificá-la. Não tem. Eu certamente tenho mais tempo de jogo com Witcher 3 ou Persona 5 e você não me vê reclamando disso... só que, suponho que de pra imaginar, DQ7 não é Persona 5 e certamente não Witcher 3.

Dragon Quest nunca foi conhecido por uma narrativa incrível... ou mesmo por fazer muito esforço pra ter uma... mas Dragon Quest VII leva a mediocridade a novos patamares. São quase 100 horas de escrita de nível de filler de anime, o tipo em que você pode prever o que cada personagem dirá porque é tão sem graça e clichê que dói fisicamente. Na hora 50, comecei a ouvir o diálogo deles enquanto dormia. Na hora 100, eu não tinha certeza se ainda estava vivo ou se toda minha existencia era apenas o cliché superficial 7418 de anime do jogo.

A premissa aqui é que o filho de um pescador salva o mundo (muito lentamente), o que é surpreendentemente moderada em comparação com seus antecessores. Esqueça as missões para salvar o mundo da escuridão total ou uma aventura com protagonistas da nobreza. Aqui, você joga como o filho humilde de um pescador na ilha isolada de Estard. É um lugar tranquilo, a única massa de terra em um mar sem fim. As lendas falam de uma época em que haviam outros continentes fervilhando de vida, mas essas são apenas histórias... até que nosso herói tropeça em um misterioso fragmento de pedra. Junto com seu melhor amigo o Príncipe Kiefer, um membro da realeza com atitude, e Maribel, uma amiga de infância tsudere, você desafia as ordens do rei, descobre um santuário proibido e...


Espera, acho que estou me precipitando. Quero dizer, leva uma hora inteira correndo e conversando com NPCs que não tem nada de muito interessante pra dizer antes mesmo de chegar ao santuário. Quando você finalmente coloca o fragmento em um pedestal e ativa alguma magia antiga, você é "levado" para uma nova terra. Eu uso "levado" com muita reticencia aqui, porque nada neste jogo acontece rapidamente. Seja como for, só após estar chegando quase na sua segunda hora de jogo você vivencia sua primeira batalha.

DUAS HORAS PRA PRIMEIRA LUTA DE CHEFE NEM É TÃO RUIM ASSIM, VAI

Jorge, eu não disse primeira batalha contra chefe. Eu disse primeira batalha. At all.

NÃO.

Sim.

NÃO?

Sim.

SIM?

Não! Digo, sim! Enfim, nesse pique de serviço publico as 18h de sexta, o conceito central de Dragon Quest VII é que você coleta fragmentos, desbloqueia novas ilhas no passado, resolve seus problemas e então observa como elas reaparecem no presente. Enxágue e repita. É uma ideia legal... por cerca de cinco horas. Após o 10º cenário você estará considerando arrancar seus olhos com uma colher, especialmente quando perceber que tem mais 10 cenários pela frente. 


Não ajuda muito que você não faz ideia de quantos fragmentos existem em cada cenário, se é que existem, então a menos que você esteja seguindo algum detonado boa parte desse tempo vai ser revisitando dungeons para ter certeza que você não deixou passar nada - um problema que pelo menos foi removido no remake de 3DS onde a tela de baixo te avisa se tem fragmentos naquele mapa.

Mas como isso não existe no PS1, é só questão de tempo para em algum momento o desespero se instalar, e o ritmo do jogo parecer menos uma jornada e mais uma sentença de prisão. Na hora 75, eu estava falando com minha TV como se fosse uma companheira. "Você está fazendo isso de propósito, não é?", sussurrei roucamente. Ela não respondeu. Eu acho.

Agora, verdade seja dita, a história fechada de cada ilha (e é por isso que o jogo se chama "fragmentos do passado perdido") não é a pior coisa ever. Certamente foram escritas por seres humanos e não um algoritmo programada em java, e certamente são mais interessantes que 89% das histórias dos seus Einherjar em VALKYRIE PROFILE. E verdade que depois de resolver a treta no passado e voltar para ver como ficou no presente é interessante - alguns personagens que você conheceu que eram meio bunda foram contados como grandes heróis pela história ou verdadeiros heróis que se sacrificaram foram vilanizados pq quem conta a história são os vencedors. 


Mas essa é a coisa: elas são apenas "vagamente interessantes" no seu melhor, e "hã, okay, essa certamente é uma das histórias que já foi contada em um videogame" na imensa maioria. O que seria passável em um jogo com umas 100 horas a menos, mas aqui essa mediocridade pesa na sua alma

AINDA ESTOU TENTANDO ASSIMILAR QUE É UM JOGO QUE LITERALMENTE DARIA PRA CORTAR UMAS CEM HORAS DELE

Agora você está começando a entender minha vida, Jorge. E não é como se os seus personagens ajudassem muito, sabe? Chamá-los de "genéricos" seria um insulto à palavra. Eles são tropos de anime ambulantes: a amiga de infância espevitada, o príncipe imprudente e o protagonista silencioso. Os designs de personagens de Akira Toriyama ajudam menos ainda. 

Não me entenda mal, Toriyama é uma lenda, mas na sétima entrada na franquia seu estilo de arte parece um álbum de greatest hits que  já era velho 20 anos atrás. Aqui temos a 10ª iteração de Goku. Lá está Trunks só que loiro. Olha a Arale de cabelo crespo. Era uma curiosidade nas primeiras horas do primeiro jogo, agora é apenas desinteressantes. 


Mas bem, pelo menos o jogo é visualmente bonito e envelheceu bem na sua pixel art misturada com 3D... o que é mais do que eu posso dizer do combate, que envelheceu tão bem quanto leite no asfalto dia 31 de janeiro as 16:47 na Avenida Brasil no Rio de Janeiro. Vamos colocar assim: se você espera inovação no departamento de jogabilidade, você definitivamente está procurando na franquia errada. 

Dragon Quest VII serve o mesmo combate baseado em turnos da velha escola que a série tem oferecido desde 1986. Ataque, feitiço, item, repita. Não há nada de novo, nenhuma tomada de risco, nenhuma evolução mecânica. É como se o jogo estivesse congelado no tempo, recusando-se a reconhecer os avanços que o gênero fez ao longo das décadas.

Se às vezes Final Fantasy tenta muito e falha (como o sistema de junção em FINAL FANTASY 8), pelo menos eles tentam, porque Dragon Quest não tenta nada novo. Nunca. Por mais de cento e cinquenta horas. Você consegue entender o quão dolorosamente chato isso é? Você pode achar que consegue, mas não consegue - não até jogar DQ7


Para piorar as coisas, a taxa de encontros é altíssima. Mesmo no remake do 3DS, onde os inimigos aparecem na tela, você é constantemente puxado para as batalhas sem poder fazer nada a respeito. E tirando as lutas de chefe, o que você faz em todo o resto do jogo é colocar tudo no automático e macetar o botão para o combate acabar logo. Combine isso com o grinding pesado que o jogo exige, e você tem uma receita para o tédio em uma escala com mais de três digitos de horas. No milésimo encontro, eu não estava mais grindando, eu estava sendo grindado pelo jogo.

Existem sidequests para tentar aliviar um pouco o tédio, claro. As mini medalhas tradicionais da série retornam, então você estará vasculhando gavetas e quebrando barris como um lunático. Você pode recrutar monstros e enviá-los para Monster Meadows, mas a recompensa é basicamente um zoológico glorificado. Depois, há The Haven, onde você pode coletar NPCs para construir uma cidade. Essas atividades são boas distrações, mas não são atraentes o suficiente para quebrar a monotonia da missão principal.

Eu juro pra vocês que eu tentei me importar. Eu realmente tentei. Mas na hora 120, até mesmo o pensamento de encontrar mais uma mini medalha parecia uma piada cruel. "Aqui está uma medalha!", o jogo parecia dizer, "Você não está feliz?". Eu não estava.

O jogo tem um sistema de classes, mas tudo que elas fazem é ensinar magias e habilidades (que são a mesma coisa que magias, só que não gastam mana) que você não vai usar 98%. Não espere combos loucos, nem nada, certamente não é nenhum FINAL FANTASY TACTICS... sequer um Final Fantasy 5

Veja, eu não estou dizendo que é um JRPG ruim de forma alguma, ou que faz algo particularmente mal feito. Tudo nele é okay, o problema é o conjunto da obra, pq 150 horas de okay-ish logo começam a se arrastar para o lado PELO AMOR DE DEUS SÓ ACABA da coisa.


Verdade que dá pra sentir que como os desenvolvedores sabiam que Dragon Quest é o fenomeno que é no Japão e que venderia apenas por ser Dragon Quest, dá pra ver uma certa arrogancia de de não seguir certos princípios de um bom game design. É um jogo que desperdiça seu tempo sem a menor vergonha porque sabe que pode.

Um exemplo bem iconico disso é que ao derrotar o último chefe o jogo não termina ali, nem começa uma cutscene, nem nada. Você só fica ali parado na dungeon. Você então tem que fazer todo o backtracking de volta da masmorra e falar com alguns NPCs especificos para começar a sequencia final do jogo. Quais? O jogo não te diz, vai falando com todo mundo DO MUNDO INTEIRO e uma hora vai.



Eu não estou exagerando, esse tipo de game design é premente durante o jogo todo e qualquer RPG que fizesse algo tão boçal assim levaria um murro no meio da boca. Mas Dragon Quest sabe que é Dragon Quest e que o Japão vai amar qualquer porcaria que ele fizer, então foda-se. É um behemot enorme e dolorosamente mediano que testa sua paciência a cada passo, e que está cagando pra isso pq sabe que é Dragon Quest e que ele pode.

Na época, Dragon Quest era tão popular no Japão que eles estavam confiantes de que conseguiriam se safar com praticamente qualquer coisa — e se safavam mesmo. Se qualquer outro JRPG demorasse mais de uma hora para chegar ao seu primeiro combate enquanto te afogava em textos de preenchimento, seria condenado como um dos piores jogos de todos os tempos. Apenas Dragon Quest poderia fazer isso e ainda ter fãs. De certa forma, Dragon Quest VII é o Senhor dos Anéis dos JRPGs. Você fica feliz por tê-lo experimentado porque é um pilar do gênero, mas fica ainda mais aliviado quando acaba. 


E essa é a história de como eu passei 150 horas encarando o abismo, e ele passou 150 horas me encarando de volta. Caso você esteja se perguntando, o abismo parece um Slime azul, sorrindo enquanto rouba minha sanidade, uma hora lenta de cada vez. Arceus me ajude, eu vou continuar ouvindo aquela música de batalha genérica e desinspirada em meus pesadelos até o fim dos tempos...

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