sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

[#1364][Jun/1999] SHADOWGATE 64: Trials of the Four Towers

Em 1989, a Kemco (mundialmente famosa no Brasil por TOP GEAR) teve uma ideia bastante diferente: "E SE, veja bem, E SE a gente trouxesse um daqueles dungeon crawler point'n click para nerds tetudos de porão de PC para o Nintendinho?"

E antes que alguém pudesse dizer que talvez essa não seria a melhor ideia do mundo, especialmente pq o controle do Nintendinho não era tão adequando para apontar e clicar quanto... bem, um mouse... BAM, saiu Shadowgate na sua fuça! Há!

Corta agora para dez anos no futuro, e em 1999 a TNS Company (mais conhecida por... não ser muito conhecida, mas fez os jogos beat'm ups de Sailor Moon para Mega Drive e Super Nintendo) decidiu trazer o point'n click de Nintendinho para a glória dos 64 bits, com todas as instadeths e puzzles com as respostas mais esotéricas possíveis, deu para a IP antiga um banho de loja da quinta geração com um cenário onde você é livre para explorar em 3D, deixou as armadilhas hediondas... e aí você tem uma ideia bastante aproximada do que esperar do jogo de hoje, Portãossombra 64: As Provações das Quatro Torres! 

Ou seja, deve ser como o Senhor dos Anéis: As Duas Torres, só que duas vezes melhor porque agora temos QUATRO torres!

ACHO QUE SERIA MELHOR PARA TODOS OS ENVOLVIDOS SE VOCÊ APENAS NÃO TENTASSE, SABE?

Provavelmente, mas se você acha que as minhas piadas são irritantes, espere até ver os puzzles desse jogo...

Mas muito que bem, nossa história aqui é que você é Del Algodãomadeira, um halfling trabalhando em uma caravana comercial que está a caminho do Castelo Shadowgate quando é atacada por um bando de saqueadoras de beira de estrada. Você sabe, RPG 101, clássicos são clássicos por um motivo e coisa e tal.

Seja como for, Del sobrevive ao ataque e é levado para o castelo Shadowgate para ser preso e torturado (o que deve lhe dar uma boa ideia do que esperar aqui, considerando que VOCÊ foi quem foi atacado e agora VOCÊ está na prisão por isso). Na cela ao lado da sua tem um feiticeiro que também foi preso e que explica sua situação, o homem-fera gigante que guarda sua cela traz para você um pouco de carne que parece já comida, e daí pra frente cabe a você descobrir como sair dessa bagunça.

Eventualmente você escapa da sua cela (pq pouco surpreendentemente esse jogo não é "Um Sonho de Liberdade Adventure Game") e você acaba em uma das torres do castelo - que dado o nome do jogo, eu suponho serem 4. Embora as torres não pareçam torres at all, são meio que mais casas de dois andares, eu não sei exatamente pq eles chamam de "torre" um mansão que não tem mais que dois andares, mas o que eu sei de engenharia realmente?

O ponto é que o espírito de um mago lendário chamado Lakmir revela que Shadowgate está basicamente sendo controlado pelo espírito de um um mago do mal que odeia o bem, e cabe a você ser o Chosen One Para Salvar o Dia™, onde sua tentativa de fuga se torna uma missão para salvar o mundo. Então, apenas para recapitular, você foi preso por ser vítima de um crime e os soldados do castelo parecem não ter objeções ao fato seu chefe é aparentemente o Senhor de Todo Mal que mergulhará o mundo em trevas e Angelica cantando a abertura de Digimon se for revivido.

É, esse definitivamente é um daqueles dias.


No entanto, isso não vai ser tão fácil quanto parece... e definitivamente não parece muito... pq você terá que provar que é digno do favor de Lakmir resolvendo os inúmeros puzzles nas quatro torres que cercam o castelo que o próprio Lakmir usou para testar seus alunos de magia. Claro, você poderia argumentar que Lakmir não devia perder tempo com testes pq o Senhor das Trevas e Ranger de Dentes vai ser revivido em breve e ele literalmente não tem nenhuma outra opção de tentar impedir isso do que você... mas então suponho que o jogo teria apenas 45 segundos, tem isso.

A coisa é que esta sendo a versão 3D de um point'n click de Nintendinho, isso significa muita busca por itens esotéricos, tentando descobrir que importância eles podem ter, se tiverem, e descobrir onde e como você deve usá-los para avançar pelo castelo sem nenhuma indicação de onde exatamente você deve ir.

Sim, esse definitivamente é um dia daqueles.

Oh, bem, ao menos os textos de descrição por clicar no cenário são realmente maneirinhos, lembrando bastante os livro-jogos de RPG dos anos 80

Para dar uma ideia do tipo de coisa que você faz aqui, um dos itens que você precisa obter em sua missão é o Anel dos Mortos, que permite você falar com os mortos. Bem, você não precisa de um anel para falar com um morto, qualquer um pode fazer isso, mas para você ouvir a resposta dele, aí sim nesse caso ajuda bastante ter o anel.

Para chegar até a sala onde o anel está, primeiro você terá que resolver um quebra-cabeça de tocar nos bustos de cavaleiros com armaduras que irá te teletransportar de sala em sala com pouco mais do que tentativa e erro para orientar. E por "um pouco mais" eu quero dizer absolutamente nada, boa sorte pelas próximas duas horas tentando toda combinações de bustos, sem um detonado você vai precisar pq esse jogo retrata fielmente o que se achava muito divertido em 1989.


Supondo que você consiga tatear isso, você terá que resolver outro quebra-cabeça para revelar onde está a fechadura da porta onde o anel está esperando. Veja que eu não disse destrancar a porta, apenas para descobrir onde está a fechadura. Depois de mais alguns saltos de lógica que são o puro suco dos anos 80, você verá três anéis: o verdadeiro Anel dos Mortos, um anel que reverterá seus controles (o que na verdade SERVE a um propósito no fim do jogo, embora pareça só trolagem no momento) e um terceiro anel que simplesmente te mata quando você coloca ele.

Apenas pq Shadowgate é esse tipo de jogo.


Sim, senhoras e senhores, a morte não se esconde em cada esquina aqui, a morte é a proprietária de todas as propriedades do quarteirão, da praça de alimentação e cobra 10 pila pra "cuidar" o carro. A mudança do point'n click para uma navegação 3D adicionaram todo tipo de morte instantanea já concebida pelo homem nos videogames, já que nosso herói agora morre não apenas se cair em qualquer poça d'agua mas se você pisar um pixel errado Deus o ajude porque qualquer queda de 43cm é morte certa. 

Na verdade, para chegar à torre onde você tem que passar pela bobagem mencionada acima para pegar o Anel dos Mortos, você tem que manobrar através de um telhado cheio de buracos, o que é extremamente divertido de navegar quando você não consegue ver onde seus pés realmente estão... e para VER onde você está pisando, vc precisa lidar com um esquema de botões particularmente estranho que os botões C para movimento e o analogico para olhar.

Então você avança no C-Cima, recua no C-Baixo, vira para a direita e para a esquerda no analogico mas olha para baixo e para cima no analogico tambem. Isso funciona na prática de forma tão fluída quanto a descrição soa, e mesmo depois de algumas horas de jogo eu ainda me batia com esses controles.

Por outro lado, a boa noticia é que ao contrário do Shadowgate original, você não tem nenhum combate de verdade, o que é uma bênção, porque HOOOOOO BOY, eu não queria ver o quão desajeitado um sistema de combate seria nessa engine.

A outra coisa boa é que o jogo não tem limite de inventário, nosso pequeno halfling tem costas fortes para carregar o que preciso for

Isso, é claro, supondo que você insista em se degladiar com o jogo depois das dolorosas missões de caças a pixels às quais você será submetido ao longo do caminho. Embora eu não considere os gráficos aqui ruins per se, eles definitivamente não são detalhados o suficiente para fazer o que os programadores esperavam que eles fizessem.

Eu digo isso pq alguns dos itens que você deve caçar ao longo do caminho incluem um punhado de pequenas moedas e o cabelo de um gigante. Permita-me repetir: você deve localizar um CABELO no chão, renderizado com qualidade visual do Nintendo 64 de 1999.  Vamos parar por um momento para permitir que você absorva essas palavras, sim?


Claro, o bom senso (e a minima sanidade) te faria pensar que nesse caso eles colocariam houvesse um sistema como Resident Evil onde itens importantes piscam, ou algum tipo de dica de que algo que vale a pena coletar está por perto. Bem, isso realmente faria sentido... mas sentido é uma coisa que está em falta hoje, fazendo com que mais da metade da duração do jogo seja com vc olhando para baixo e clicando aleatoriamente pra ver se pega algum item que não dá pra enxergar.

Eu não tenho orgulho em dizer que passei quase dez minutos fazendo isso numa sala em que o detonado me disse EXATAMENTE onde ela estaria, apenas pq a coisa é ruim de enxergar desse nível. Pelos (não tantos mais) anos que me restam, eu certamente terei pesadelos com a Rusty Key desse jogo... e isso que eu sabia que ela existia, imagine então fazer isso sem um walkthrough e que você nem sabia que deveria procurar pelo item em primeiro lugar!

Essa abordagem de tentativa e erro e a prevalência da busca por itens muito pequenos e facilmente perdiveis são uma pena, porque a atmosfera aqui é excelente e, para mim, muito possivelmente a única graça salvadora que Shadowgate 64 tem a seu favor. Não há um HUD na tela, o que ajuda na imersão, e todos os cenários retratam uma sensação de desolação com uma pitada de misticismo. Os interiores do castelo são muito escuros, monótonos e ameaçadores, o exterior está inundado por um cinza quase triste, e os vários NPCs (pelo menos aqueles que não matam você cometendo o pecado de tentar interagir com eles) dão o impressão de um grupo de pessoas condenadas tentando tirar o melhor proveito dos últimos dias do Castelo Shadowgate. 

De certa forma, a atmosfera do jogo me lembra um pouco os jogos da From Software - como KING'S FIELD, por exemplo - e aquele clima depressivo de insanidade e derrota que permeia cada pixel do seu ser virtual. E isso é um gigantesco elogio, saiba você, fazer lembrar a From Software não é pouca bosta!

Tem também uma boa quantidade de lore a ser descoberta sobre o universo em que você está, principalmente coletado através de diversos livros, pergaminhos e panfletos espalhados pelo castelo, e embora quase nenhum deles te de alguma ajuda prática de para onde ir ou como resolver os puzzles, eles são fornecem uma história bastante interessante do castelo, seus habitantes e o funcionamento interno do que aconteceu durante a época de Lakmir. A TNS pode ser acusada de muitas coisas (e culpada pela maioria delas), mas que eles não realmente estavam investidos em criar o cenário desse jogo não é uma delas.

Com efeito, eu diria que as melhores partes de SG64 vêm da coleta de anedotas e informações dos vários livros que você encontra. O diálogo do jogo é escrito com um  senso de humor seco e irônico que não se vê muito em videogmes, e clicar em objetos do cenário te dá frases como "Você decide pegar a caneta, sabendo que ela é mais poderosa que qualquer espada" ou "Você pega o diário, embora se sinta um pouco culpado por isso" ou "Você pega a xícara. Você decidiu que sempre quis uma xícara como esta". Tá, não parece tão engraçado quando tento parafrasear, mas confie em mim que funciona no contexto do jogo. 


A música é em grande parte minimalista - quando não ausente - assim como os efeitos sonoros, mas então suponho que isso tenha sido intencional justamente para aumentar que isso aumentava a sensação de solidão e decadência. O Castelo Shadowgate já foi outrora um expoente glorioso da magia e poder, mas isso foi em tempos que ninguem mais lembra. Hoje é um antro abandonado de salas vazias e arruinadas, e quando é habitado é apenas por ladrões e mendigos que não tem mais para onde ir, e tanto as escolhas visuais quanto as sonoras vendem essa ideia com muita competencia.

Essa atmosfera é tão boa, tão imersiva que eu realmente me perguntei se eu não estaria sendo desnecessariamente duro com Shadowgate 64... mas então eu lembrei da Rusty Key. Olha, eu realmente aprecio muito a apresentação e a estética escolhidas aqui, mas não muda o fato que a jogabilidade ainda é desajeitada, na melhor das hipóteses, e, na pior, um exercício de frustração. 


Tá bom que esse jogo não chega a ser um Myst no sentido de nonsense que ele te exige, mas cara, coletar itens que você não sabe que precisa em cenários que você não consegue enxergar não é exatamente o meu conceito de diversão. 

Eu sou totalmente a favor de com um solucionador de puzzles atmosférico em um cenários de fantasia com um pedaço saudável de lore independente e, de fato, o esqueleto de algo interessante está aqui... mas eles estão perdidos em gráficos pixelados de 1999 que te matam se você falar com os NPCs fora de uma ordem muito especifica que você não tem como saber a não ser por tentativa e erro. E cada NPC ainda está em cantos muito longes do castelo. Aí machuca o animal.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 142 (Agosto de 1999)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
EDIÇÃO 064 (Julho de 1999)