terça-feira, 10 de maio de 2022

[#879][SNES] TRIALS OF MANA (ou "Seiken Densetsu 3" no Japão) [Setembro de 1995]

 

Hoje eu vou começar sem enrolação nenhuma e falando logo de cara pq Trials of Mana é um RPG tão especial, mais bom que descobrir que o latão de biscoitos de metal tem um fundo falso e embaixo tem outra camada inteiramente nova de biscoitos pq eu sou desses.

ISSO FOI... ESTRANHAMENTE ESPECÍFICO, TENHO QUE DIZER.

Tente você perder 40kg e vamos ver com que frequencia você vai pensar sobre latões de biscoito, Jorge. Mas divago. Eu dizia que o que torna Trials of Mana realmente especial é que nesse jogo a Squaresoft consertou aquilo que eu sempre achei o maior problema dos jRPGs. Pense sobre isso, com quem frequencia isso realmente acontece? Imagine um jogo de, sei lá, futebol que uma empresa finalmente resolve aquilo que sempre te incomodou desde o começo. Ou um jogo de luta que você pode dizer "não acredito que FINALMENTE arrumaram isso!". Pois é, Trials of Mana é o jogo que a Square fez isso pelos jRPGs.


Ou seja, esse é o jogo que resolveu o problema que eu costumo chamar de "Mcguffin no Vilarejo da Semana". Ou MVS, se preferir.

É O QUE, MEU AMIGO?

Então, imagine a seguinte situação e me diga quantas vezes na sua vida de gamemaníaco (como diria a finada Ação Games) isso isso já não aconteceu: você está jogando um RPG e o objetivo do jogo é reunir 4 Mcguffins sagrados, mágicos, proibidos, a porcaria que seja. Ou 6. Ou 8 - já vi jogo que você precisa até de 12. Seja como for, você precisa coletar X alguma coisa, ou romper X selos para salvar sei lá o que ou impedir que não sei o que aconteça.

Tá, e qual o problema disso? O problema disso é que isso pauta a estrutura do jogo: você vai até uma vila aleatória com um problema aleatório sem conexão com nada, resolve o problema dessa vila e coleta uma das partes do que você está coletando nesse jogo. Sabe seriado com estrutura de "monstro da semana" que tem um episódio filler isolado que não vai ter repercussão nenhuma ou sequer ser mencionado novamente? É tipo isso, mas o "monstro da semana" é a "vilazinha do dia" com um problema aleatório que você faz uma dungeon aleatória e luta contra inimigos aleatórios pra coletar o que você veio coletar ali.

E eu sempre achei isso muito sem graça. Eu não me importo com aquela vilazinha, eu não ligo pros problemas deles pq eles surgiram do nada a cinco minutos atrás e quando eu terminar essa dungeon jamais serão mencionados novamente - e nada disso tem conexão nenhuma com a história que eu estou jogando realmente. A vilazinha é só um obstáculo a ser superado e então esquecido.

Charlotte e Kevin in a nutshell

Isso não quer dizer que jogos que fazem isso são necessariamente ruins - Pokémon por exemplo vive a trinta anos de fazer isso, você chega numa cidade, tem um problema qualquer, você resolve, luta no ginásio, ganha a insignea e vida que segue - mas dá pra fazer tão, tão mais que isso. Dá pra ser tão melhor. Ao invés de gastar tempo enfrentando os bandidos que roubaram a amoreira do prefeito pra ele me dar o pedaço dele do Cristal Sagrado da Luz Divina (que eu preciso coletar 6) e nunca mais pensar nisso... me dê algo com que eu me importe, jogo!

Me dê desenvolvimento de personagens, faça com que a dungeon tenha um proposito significativo pro jogador, faça com que você saiba quem são aqueles inimigos que você vai lutar e se importe co isso! 

Graças aos Tamagotchis, os sistemas de level up de magias e armas de SECRET OF EVERMORE e SECRET OF MANA foram abandonados por algo que não compromete a sua sanidade mental

Entende agora o meu problema com a o "Mcguffin no Vilarejo da Semana"? Um jogo pode se manter graças as suas mecanicas ou algum colecionável que seja (sim, Pokemon, ainda estou olhando pra vc), mas essas partes que você está enchendo linguiça até a história realmente poder avançar é o que tornam RPGs muito menos do que eles realmente poderiam ser...

... e é aqui que Trials of Mana faz algo realmente especial.

As magias que podem ser usada mudam de acordo com o personagem, ao adicionar um espirito elemental alguns personagens aprendem magias de dano daquele elemento, enquanto outros aprendem magias de suporte.
Além disso, em Secret of Mana, você podia trocar armas entre todos os personagens e nivelá-los individualmente, mas agora os personagens tem funções/classes distintas, então os tipos de armas (e logo o alcance deles em combate) são específicos para os personagens agora

Veja, o primeiro SECRET OF MANA é exatamente um MVS de carteirinha: você precisa visitar vilas aleatórias e ajudar pessoas aleatórias para conseguir os 8 espiritos elementais e com isso ter acesso a salvar a Árvore de Mana para salvar o mundo da devastação e unir os povos de nossa nação. Meh, whatever.

Sua continuação, Trials of Mana não é essencialmente diferente no papel: sim, você essencialmente visita o vilarejo de Biraborinha para conseguir os 8 espiritos elementais e com isso ter acesso a salvar a Árvore de Mana, e o vilarejo de Biraborinha está sendo atacado pelos homens-lagostinha pq é isso que os homens-lagostinha fazem, eu suponho.

PARECE A MESMA COISA PRA MIM. O QUE É QUE ESSA CONTINUAÇÃO TEM DE TÃO ESPECIAL?

Bem, minha querida segunda pessoa narrativa literaria nascida da minha falta de ter com quem conversar, eis o pulo do gato que a Square bolou pra essa continuação: em Trials of Mana existem seis personagens, sendo que você precisa escolher 3 para montar a sua party.

A primeira coisa que o jogo faz é te pedir que você escolha um personagem principal, e em seguida o secundário (o terceiro não importa muito pra narrativa, está ali só pra compor a party). Isso importa porque o jogo abre então contando a história daquele personagem, e mais pra frente o secundário se junta a ele.

Não tankei que mantiveram a dancinha dos lojistas no remake

Por exemplo, Angela é a princesa de Altena, um reino que fica numa região gélida e que a vida só é possível porque a magia da Verdadeira Rainha mantém magicamente o reino aquecido e quentinho. O problema é que Angela é uma negação em magia, e Altena não pode ter uma Verdadeira Rainha que não manja dos paranaue de magia pq senão a bunda de todo mundo congela.

A aventura começa quando a mana do mundo começa a secar e o inverno eterno avança para dentro das fronteiras de Altena. A Verdadeira Rainha então segue os conselhos do seu conselheiro obviamente do mal (isso é um RPG, afinal) e decide invadir os outros reinos para roubar as mana stones deles e assim ter uma bateria de mana que os vá manter aquecidos e confortáveis. Angela obviamente não aceita que sua mãe comece uma guerra e vai confronta-la sobre isso... o que mais obviamente não termina nada bem para a princesa e é assim que sua aventura no jogo começa.

Tá, beleza, mas suponhamos que você não escolheu Angela como sua personagem principal. Você escolheu a pimpolha Charlotte que é fofinha falando com a lingua presa. Logo, sua cena introdutória no jogo é completamente outra, ela tem outra história, com outras tretas rolando e tal.

Os outros personagens jogaveis ainda aparecem como NPCs se você não selecionar eles pra sua party, seus caminhos se cruzam enquanto eles estão cuidando das suas coisas nas suas próprias histórias

Só que em determinado ponto você vai visitar uma cidade que está sendo invadida pelos magas de Altena que estão passando a piroca em todo mundo pra conseguir a Mana Stone daquela cidade em nome Verdadeira Rainha. Jogando com a Charlotte você não faz ideia de quem essa mocreia de "Verdadeira Rainha" é, e seria apenas mais uma cidade aleatória com um problema aleatório que você precisa vencer a dungeon (nesse caso, o palácio invadido) pra seguir a sua vida.

E essa é a verdadeira beleza de Trials of Mana: o "problema do dia" da cidade parece qualquer coisa aleatória tirada da bunda, mas não é. Esse problema é parte da história de outro personagem, existe um desenvolvimento por trás disso, existe uma razão pras coisas acontecerem mesmo que essa razão esteja em outra história.


Mas isso não é tudo: a experiencia de jogo se alinha em pares. Isso quer dizer que Angela e Duran, por exemplo, compartilham das mesmas cutscenes principais, as mesmas dungeons e chefes finais pq suas histórias se encontram no meio do caminho. Se você escolheu Riez e Hawkeye como seus personagens, você vai ter outras cutscenes, outras dungeons e um chefe final totalmente diferente. O mesmo para Charlotte e Kevin.

Ou seja, mecanicamente a Square fez um jogo muito, muito, MUITO ambicioso para 1995. Eu não preciso lembrar a vocês que os cartuchos de Super Nintendo tinham no máximo 4MB (não 4 gigas, quatro MEGA) de espaço de memória e fazer um RPG de vinte e poucas horas de jogo com três narrativas completamente diferentes, cutscenes diferentes e chefes finais diferentes... e tudo isso se costura para construir um mundo coeso onde a maioria das coisas acontecem por um motivo - mesmo que esse motivo não esteja sendo detalhado na história da sua party atual.


Com efeito esse jogo é tão ambicioso e tem tanta camadas de variaveis de cenas, cenários e dialogos que mudam de acordo com a composição da sua party que em 1995 a Square decidiu que foda-se essa joça, não ia se dar ao trabalho de portar esse jogo para o ocidente. RPGs nunca foram tão populares do lado de cá em primeiro lugar, e seria uma quantidade inenarrável de trabalho (até pq caracteres ocidentais ocupam mais espaço no cartucho do que japonês, então é um parto encaixar o texto com as limitações de espaço) para um genero que nem era tudo isso e em um sistema que já estava subindo no telhado - cabe lembrar que esse jogo é do final de 1995, em poucos meses o Nintendo 64 seria lançado para substituí-lo.

O resultado disso é que Seiken Densetsu 3 nunca foi lançado no ocidente... por VINTE E QUATRO ANOS. Isso pq em 2019 a Square (agora Square-Enix, sdds Squaresoft viverá para sempre em nossos corações) fez um remake 3D do jogo, o lançando aqui com o nome de Trials of Mana e adicionando todas as coisas que se espera de um jogo moderno: dublagem, colecionaveis, um sistema de combate hack'n slash muito mais dinamico (embora o original tenha melhorado MUITO a hit detection do Secret of Mana, Deus como o combate do primeiro jogo me irrita), interfaces de usuário muito mais práticas ao jogador... você sabe, todas as melhorias de vida que nos acostumamos a esperar de jogos modernos como jogar sem precisar dizer "TAQUEOPAREO SE EU PRECISAR GERENCIAR MAIS UMA VEZ ESSE INVENTÁRIO ARCAICO COM UMA INTERFACE BOLADA POR NINGUÉM MENOS QUE SATÃ EM PESSOA EU VOU ENFIAR UMA COLHER ENFERRUJADA NO MEU OLHO!". Você sabe, os bons tempos.

O quanto esses menus envelheceram mal é algo que não pode ser descrito em palavras

Mas a parte que realmente importa, sua estrutura, dialogos e cutscenes não é algo que foi mexido. Na verdade jogando o remake, tem algumas cenas que você olha e pensa "Espera, eles fizeram isso originalmente com sprites de Super Nintendo? Não creio!", mas aí você olha o jogo original e vê como a Square revirou o hardware do SNES de ponta cabeça pra fazer animações, chefes e cutscenes nenhum jogo tinha feito até então.

Verdade seja dita, em 2019 Trials of Mana não é um jogo tão impressionante quanto ele era em 1995. Embora o combate seja sólido e o sistema de magias tenha ficado muito divertido, de lá pra cá os jogos já fizeram muito mais do que isso - basta lembrar que Trials of Mana é um jogo do mesmo genero que The Witcher 3 e Nier: Automata, e comparado com esses outros Action RPG ele é indescritivelmente simplório tanto narrativa quanto mecanicamente. Divertido de se jogar, mas simples.


Mas em 1995, ah meu amigo, em 1995 Trials of Mana foi o rei. O jogo mais ambicioso já concebido para um videogame até então. Embora eu ache a narrativa de CHRONO TRIGGER mais complexa e os personagens de FINAL FANTASY 6 mais profundos, não tem como negar que ninguém nunca havia tentado o grau de complexidade de sistemas, gatilhos de evento e dialogos que a Square conseguiu expremer em 4MB, com combate melhorado em relação ao jogo anterior e sem por nenhum momento abrir mão dos gráficos 2D mais bonitos que o sistema foi capaz de gerar.

Se isso não é uma aula de como se faz um videogame, eu não sei mais o que seria.

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 103 (Maio de 1996)


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 015 (Maio de 1995)


Edição 024 (Março de 1996)


MATÉRIA NA GAMERS
Edição 005 (Novembro de 1995)


Edição 011 (Setembro de 1996)