terça-feira, 28 de janeiro de 2025

[#1391][Set/1994] SYSTEM SHOCK

DISCLAIMER: Tecnicamente, essa review deveria ser de System Shock 2 que saiu em 1999, esse é o jogo que saiu na Gamers. Entretanto poucas coisas são mais ingratas que rodar um jogo de computador de 1999, usualmente isso é nada senão sofrimento e dor. A boa notícia é que foi anunciado um remaster enhanced para 2024 desse jogo, a noticia não tão boa é que ele foi adiado e até a data desse post não há uma previsão oficial - a estimativa é que ele lance em algum ponto de 2025... espera-se.

Bem, pero no hay problemo, amiguemo, porque em 2023 foi lançado um remake do primeiro System Shock de 1994. Enquanto o remake atualiza os gráficos e principalmente a interface (felizmente, mais sobre isso daqui a pouco), ele não mexe quase nada no level design e na estrutura do jogo e isso me serve muito. Por isso, sem mais delongas, é hora de CHOQUE DE SISTEMA OLHA AQUI PEDERNEIRAS AI AI!

Me diga se essa cena lhe é famíliar: você acorda em uma cidade isolada do mundo. Você não sabe o que, exatamente, aconteceu mas sabe que o pau tá cantou na casa de Noca. Corpos (frequentemente em pedaços) por todo lado, mutantes loucos correndo por aí, pixações nas paredes com palavras de ordem de algum tipo resistencia, papeis espalhados e caos em toda parte. Parece que algum tipo de revolução aconteceu e claramente os mocinhos não venceram.

Sem saber o que caralhas está acontecendo, você começa a andar pelos corredores claustrofóbicos armado da primeira coisa que você encontrou pelo caminho: uma chave inglesa - que logo é posta em uso amaciando o maxilar dos já citados mutantes selvagens. Ao longo do caminho você vai encontrando trechos de audios e emails de pessoas que provavelmente não estão mais vivas que te fazem começar a entender o que porra aconteceu ali. Isso tudo em um jogo de tiro em primeira pessoa.


HÃ, TÁ, ESSA É A DESCRIÇÃO DE BIOSHOCK. É UM JOGO BEM FAMOSO, TODO MUNDO CONHECE ELE.

Certo... exceto que o ano aqui é 1994. Mais especificamente, setembro de 1994, o Brasil ainda está de ressaca pelo tetra, o Plano Real é um sucesso e o dolar vale R$ 0,70 e Cavaleiros do Zodíaco é a coisa mais quente na televisão.

Uma decisão muito feliz da Looking Glass é que a dificuldade nesse jogo é customizável. Você pode configurar a dificuldade do combate, dos puzzles, de quantos marcadores o mapa te dá (em Mision) e das batalhas no cyber-espaço separadamente

Enquanto DOOM ainda era relativamente uma novidade e o mundo ainda apreciava essa ideia de atirar em coisas em primeira pessoa, os mamelucos da madeira da Looking Glass Studios já estavam pensando em como puxar os limites desse recém-nascido genero além da imaginação.

Puxar os limites do FPS para além do que já se sabia ser possível era meio que a coisa da Looking Glass, só lembrar do outro FPS deles que eu já joguei aqui: THIEF: The Dark Project.

Nossa história aqui é que no ano de 2072, você é um hacker... conhecido apenas como Hacker... que tenta invadir os sistemas da toda poderosa megacorp TryOptimum Corporation apenas para descobrir que megacorporações meio que não gostam disso.

FBI OPEN UP!

Um murro na boca e ser arrastado para o outro lado do sistema solar depois, você é levado para uma estação espacial chamada Citadel de propriedade da TryOptimum, orbitando Saturno. Edward Diego, um executivo da corp, te faz uma proposta que você não pode recusar: você usar suas habilidades de hacker para um servicinho simples pra ele, você só faz um biquinho e ba-da-boom, tudo certo, sua ficha é limpa, nada desse mal entendido jamais aconteceu e você ainda ganha um cyberimplante military grade. Só vantagem!

... claro, você pode escolher não fazer isso, mas aí ele não pode garantir que as comportas da estação também não vão escolher dar defeito, vai que você acabe ACIDENTALMENTE ejetado no espaço em direção a Saturno? Essas coisas acontecem, infelizmente.


Compelido por esse argumento bastante razoável, você decide ajudar, porque você é uma pessoa que ajuda, afinal. E qual é o serviço, você pergunta? Um bem simples, Edward Diego precisa fazer modificações em alguns registros do log da estação (ou seja, esconder algumas coisas... não exatamente legais... que ele está fazendo ali), mas pra IA da estação permitir isso você precisa remover seus limitadores éticos. Super fácil, sequer um inconveniente.

Satisfeito, Diego cumpre a parte dele do acordo e você acorda seis meses depois com seus implantes de cybermarine 007, como prometido. Ah, e você também percebe que a porra toda foi pras caralha, porque - olhando em retrospecto - talvez tirar os limitadores éticos da Inteligencia Artificial da estação pode não ter sido a melhor das ideias...


É... foi uma ideia realmente meio ruim... Seja como for, não adianta chorar pela IA megalomaniaca louca derramada, e você precisa picar a mula pra fora da estação, impedir que a IA SHODAN expanda seus dominios para o resto do sistema solar e sobreviver, não necessariamente nessa ordem.

Como dá pra ver, narrativamente e ambientalmente, System Shock é absurda, inacreditavelmente a frente de tudo que havia sido pensado em jogos até então - lembrando que jogos de tiro em primeira pessoa eram uma coisa a menos de um ano ainda.


A estação Citadela não é apenas uma dungeon formada por labirintos, como era comum naquela época, e sim um massivo complexo de 9 andares interconectados e todos tematicamente adaptados para representar que eram um lugar com vida e um proposito - a parte da vida até a IA louca fazer a sua coisa, você sabe. Você começa no andar da MedBay - dado que você está se recuperando do implante ainda - e conforme vai recuperando acesso aos outros locais da estação vai para o setor de Pesquisa e Desenvolvimento, a area habitacional e assim por diante.

E quando eu digo que é interconectado, não é figura de linguagem: conforme você avança, você ganha novas autorizações de acesso e novos implantes que te darão habilidades que permitem acessar areas que você não tinha acessado antes - ou seja, esse jogo é essencialmente um metroidvania.


Não é estranho você ver uma passagem que você não consegue acessar no primeiro andar, apenas para ganhar o upgrade necessário para fazer a travessia várias horas depois em um andar completamente diferente. Então System Shock não é apenas um FPS profundamente ambicioso menos de um ano depois de DOOM existir, ele TAMBÉM é um metroidvania profundamente ambiocioso apenas seis meses depois do lançamento de SUPER METROIDE novamente, são NOVE ANDARES, todos com mapas fodendamente massivos. Quero dizer, sério:

Esse é o mapa apenas do nível da MedBay

Seus conceitos, como dito, são profundamente ambiociosos para a época (ou mesmo para hoje), porém não é só até aqui que eles vão. Isso porque não bastasse ser um FPS ambicioso e um metroidvania, ele ainda passa um vibe muito forte de Survival Horror - pelo menos dois anos antes de Survival Horror ser uma coisa com RESIDENT EVIL

Você não é um space marine armado e parapetado para tocar terror corações dos demonios como o Doomguy, você é um hackerzinho moloide que é facilmente esmagavel - algo que SHODAN gosta de te lembrar constantemente. Sua munição é limitada, seus itens de cura são limitados, seu espaço no inventário é limitado (com efeito, gerenciar o inventário é quase 1/3 da experiencia do jogo), e SHODAN - que é a própria estação - sempre sabe onde você está e vai mandar suas forças para eliminar esse inseto correndo por suas entranhas, ou seja, você.

Por isso você tem que jogar tomando cuidado nas esquinas e procurando cameras de segurança para destruir, pra literalmente tirar os olhos de SHODAN de cima de você, ou correr pelos cantos cegos da vigilancia pra ver se a IA te dá um refresco (meio que como em Portal 2, quando você entra nas frestas da instalação e foge da vista da GLaDOS) pq definitivamente você não tem munição e energia o suficiente pra ir no modo full Rambo contra a estação inteira.

ENTÃO SYSTEM SHOCK É UM FPS A FRENTE DO SEU TEMPO, UM METROIDVANIA A FRENTE DO SEU TEMPO E UM SURVIVAL HORROR A FRENTE DO SEU TEMPO?

Basicamente isso. Ah, e até onde eu sei, esse é o primeiro FPS que você mira com o mouse - dois anos antes de QUAKE tornar isso o padrão da indústria!

TUDO ISSO, EM UM CENÁRIO RICO COM UM ANTAGONISA INCRÍVELMENTE CARISMÁTICO EM SUA MEGALOMANIA INFINITA?

Certamente que é, Jorjoleto! System Shock é um jogo frequentemente lembrado por sua vilã e com razão. Não apenas as falas dela são muito boas como a dublagem é espetacular, o jeito que ela fala com nojo "quem É você?!" quando você destroi seus servidores em um andar é espetacular, você consegue na voz dela sentir todo o desprezo de um Deus olhando para um inseto que OUSA aborrece-lo! Como esse inseto possívelmente não entende o lugar dele?!?

UAU, ISSO REALMENTE É MUITA COISA CERTA EM UM JOGO SÓ! COM CERTEZA SYSTEM SHOCK FOI UM DOS GRANDES SUCESSOS DE VENDA DA DECADA, CERTO?

Hã... então... sobre isso... apesar de todas as incriveis ideias que a Looking Glass teve e executou, tinha uma coisa que eles não podiam resolver com criatividade: falta de dinheiro. Isso quer dizer que System Shock não é um jogo muito bonito e sua HUD grita "esse jogo é só para nerds cabeçudos morando no porão", meu deus, é só olhar pra uma tela desse jogo que meus olhos sangram!



Olha caras, eu entendo que vocês estavam tentando uma estética cyberpunk de overinformação, mas claramente eles não tinham o dinheiro suficiente para polir isso de forma adequada. O resultado é que System Shock não é um jogo muito visualmente apresentavel (novamente, OLHA A BAGUNÇA DESSA TELA, CACETA CROCANTE!) e como tal não vendeu o suficiente para sequer pagar os custos da produção.

Não ajuda muito também que, para um jogo de tiro em primeira pessoa, a parte de atirar não seja a coisa mais emocionante do jogo. Funciona e tal, mas não tem nada de realmente especial aqui, nenhuma arma muito marcante, atirar não é muito gratificante, nada para escrever para casa nesse departamento. Meio dificil vender esse peixe na época, sabe.


System Shock de 1994 nunca foi um enorme sucesso de público, porém seu legado é algo que moldou a própria forma com que jogos são pensados. Sua ideia de fazer um único grande cenário foi a inspiração para HALF-LIFE. Combinar os recursos limitados do survival horror com ambientes claustrofóbicos espaciais gerariam Dead Space e Doom 3. A narrativa ambiental - a história é mais contada pelo que você encontra no cenário do que por cutscenes e NPCs - se tornou um padrão ouro para os videogames, sendo usado em jogos desde The Last of Us a Dark Souls. A já citada influência da SHODAN na GLaDOS (você é uma pessoa horrível, alias, e é adotado). Isso apenas alguns exemplos, de tantos outros.

Isso para não falar dos inúmeros jogos que não apenas usam um ou dois elementos de SS, mas sim são sucessores espirituais da experiencia inteira: Deus EX, Dishonored, Prey, Alien: Isolation, SOMA (só filézinho, heim) e, é claro, seu mais famoso sucessor espiritual: Bioshock (que herda até o shock do nome).


Remake do jogo, feito em 2023 na Unreal Engine

Como dá pra ver, o legado de System Shock é uma coisa que não pode ser medido em palavras, mesmo que o jogo em si  não tenha feito tanto sucesso assim na sua época. Ou, como dizem as celebres palavras de Marty McFly, "Acho que vocês não estão preparados para isso. Mas seus filhos vão adorar!"

MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 163 (Maio de 2001)



MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 043 (Agosto de 1999)