Quando eu escrevi sobre LEGEND OF MANA, eu comentei na ocasião que a Squaresoft estava em uma fase tão inspirada, empilhando tantos sucessos que eles podiam se dar ao luxo de serem experimentais. Com Final Fantasy imprimindo discos e sonhos como se a existencia do mundo dependesse disso (com FINAL FANTASY 7 e FINAL FANTASY 8 entrando para o top 10 de jogos mais vendidos do console mais popular de todos os tempos até então), eles tinham dinheiro, reputação e ambição para queimar.
Mas, mais importante, eles tinham um sonho criativo febril acontecendo internamente. Havia equipes se dividindo em unidades menores, cada uma tentando experimentar estilos de jogabilidade, estética e formatos narrativos. Pense nisso como uma escola de arte mal-assombrada por contadores: "Sim, vá expressar sua visão torturada — só certifique-se de que possamos vendê-la em dois discos com CGs". O que nos levou a jogos altamente experimentais como o já citado LEGEND OF MANA, ou esquisitamente ambiciosos como XENOGEARS.
Nesse contexto, Threads of Fate foi criado por uma equipe interna menor — não o esquadrão A de Final Fantasy, mas ainda assim parte de um ecossistema mais amplo de inovação. Ele se encaixa perfeitamente com outras excentricidades de "projetos paralelos" como:
- BRAVE FENCER MUSASHI (RPG de ação com um toque cômico)
- VAGRANT STORY (RPG Dungeon Crawler sombrio e intenso)
- PARASITE EVE (híbrido de survival horror e RPG)
A Square estava expandindo seu portfólio, sim, mas havia outro objetivo por trás dessa virada para os action RPGs: conquistar de vez o mercado ocidental. Eles sabiam que o americano médio torcia o nariz para combates em turno. Por mais que os jRPGs vendessem razoavelmente bem no Ocidente, continuavam sendo um nicho. A ideia era clara: “E se a gente der para esses baka gaijins algo com ação em tempo real, mas com a nossa alma de RPG ainda brilhando por baixo?”
Spoiler: foi exatamente o que acabou se tornando a realidade. Hoje Final Fantasy, sua franquia principal, virou uma série de action RPG em definitivo. Não temos um título principal com combate por turnos há mais de uma década — e é bem provável que nunca mais tenhamos.
Esse contexto esclarecido, fica mais fácil ver que Threads of Fate provavelmente foi concebido como: "Vamos fazer um RPG de ação acessível e leve para o público mais jovem e mercados internacionais, com o charme de um desenho animado de sábado de manhã, mas com profundidade de RPG suficiente para satisfazer os fãs."
Com esse contexto em mente, Threads of Fate começa a fazer sentido: “Vamos fazer um RPG de ação simples e acessível, voltado para o público mais jovem e os mercados internacionais, com o charme de um desenho animado de sábado de manhã — mas com profundidade o suficiente para não alienar os fãs de RPG. E, ao mesmo tempo, vamos testar coisas como:
- Dá pra fazer um RPG de ação 3D com dublagem e cutscenes cinematográficas
- Dá pra contar histórias engraçadas e cativantes sem recorrer ao melodrama?
- Jogadores aguentam jogar duas vezes o mesmo jogo, se oferecermos narrativas diferentes o suficiente?"
Threads of Fate não é o típico RPG da Squaresoft — e isso fica claro logo nos primeiros minutos, quando você percebe que há dois protagonistas jogáveis. E não é só uma escolha cosmética: são campanhas diferentes, com perspectivas e tons próprios. Isso porque a Square, naquela época, também estava flertando com algo que hoje chamaríamos de "meta-escrita de personagens". E sim, isso é exatamente tão pretensioso quanto parece — e exatamente o tipo de coisa que os criativos da empresa adoravam testar.
Rue é o arquétipo clássico: o sadboy trágico com passado sombrio, expressão distante e uma motivação pessoal cheia de angústia. Ele é o JRPG™ em forma de boneco melancólico. Mas a estrela do jogo, e onde a Square claramente queria ver até onde podia ir, é Mint.
Isso pq Mint não é a sua tradicional heroína estóica da Square que também calha de ser uma white mage, e sim que ela é uma peste. Mint é uma princesa mimada e arrogante de um reino que justamente por ser tão insofrível, leva a bota da família real pq o reino não ia aceitar - com razão - ter aquele gremlin como rainha.
Perdendo o posto de sucessora ao trono para sua irmã, Mint faz o que qualquer pestinha no lugar dela faz: passar a ir atrás da lendaria relíquia Dewprism (que é o nome original do jogo em japonês), que lhe daria poder não apenas para recuperar seu posto como sucessora ao trono como efetivamente dominar o mundo, mwahahahaha!
Aqui é onde Threads of Fate se torna mais ambicioso do que parece. A Square decidiu escrever Mint não como uma vilã convencional, mas como uma antagonista carismática demais pra odiar. Na teoria, você deveria torcer contra ela. Sabe aquele tipo de vilão pateta que você acaba torcendo por ele, como a Equipe Rocket do anime de Pokémon ou a Tron Bonne de MEGA MAN LEGENDS. Um tipo de vilão tragicômico, exagerado, deliciosamente irritante — e, de alguma forma, irresistivelmente simpático.
O jogo sabe disso, claro. Ele brinca com isso. Ele vive disso. Porque não há uma grande ameaça de fim do mundo, nenhuma grande profecia e — o mais sacrílego de todos — nenhum adolescente melodramático de cabelo espetado e amnésia (ok, talvez Rue seja culpada por um detalhe técnico). O que você tem é uma princesa-bruxa egocentrica determinada a dominar o mundo, um garoto quieto tentando trazer alguém que ele ama de volta dos mortos.
Só que a experimentação da Square aqui não para em escrever um tipo de personagem que eles não estavam acostumados a escrever, ela permeia também a própria estrutura do jogo. Isso pq vc tem duas campanhas inteiramente separadas, tendo que escolher no começo do jogo entre Mint e Rue.
Enquanto a timeline do jogo é a mesma e Mint e Rue se encontrem durante a narrativa, cada campanha mostra o que cada um deles esteve fazendo quando eles estiveram separados. Outros jogos já tinham brincado com esse conceito de “duas narrativas paralelas em um mesmo mundo” — RESIDENT EVIL 2 vem à mente, assim como TRIALS OF MANA, da própria Square. Mas nenhum deles havia ido tão longe no corte cirúrgico entre campanhas quanto Threads of Fate. Aqui, a ideia era testar até onde dava pra dividir um RPG sem diluir a experiência.
O resultado é que, em média, a campanha de Rue dura cerca de seis horas. A de Mint, oito. O pacote completo entrega cerca de 14 a 15 horas — o que é uma duração normal para um Action RPG — mas fracionado de forma que cada metade se sustenta por conta própria, ao mesmo tempo em que só revela todo o potencial do jogo quando vista em conjunto. Era a Square se perguntando: dá pra fazer um RPG modular, com replays que realmente valem a pena? A resposta é... mais ou menos.
Por mais que eu admire a ousadia da Square em sair da sua zona de conforto — escrevendo personagens fora da sua zona de conforto e testando novas formas de estrutura narrativa — eu não posso, com boa consciência, dizer que essa aventura veio sem alguns... tropeços, vamos dizer assim.
Não vamos adoçar a pilula: Threads of Fate é superficial. O combate é básico demais para seu próprio bem. Enquanto no papel cada um dos personagens tem sua própria gimmick (Mint lança magias, Rue pode se transformar em monstros que ele derrota), na prática é um hack'n slash bem basicão, polido o suficiente pra ser funcional, mas raso como um pires.
Não me entenda errado, não é RUIM. Pelo contrário, o jogo é visualmente charmoso, os controles respondem bem, tem uma fluidez adorável no momento-a-momento. Mas... é só isso. O sistema de magias da Mint, por exemplo, oferece oito elementos diferentes, como na série Mana, mas boa sorte encontrando mais de dois inimigos no jogo que realmente reagem a isso. Na real, a variedade entre as magias é quase cosmética: um ataque forte de curto alcance, um ataque fraco de longo alcance, e o resto é purpurina.
Rue não se sai muito melhor. Suas transformações em monstros são subaproveitadas, tanto em variedade quanto em utilidade. Especialmente pq tem uma tonelada de monstros inúteis por aí, com pouca variação dos ataques normais, e não existem monstros fundamentalmente interessantes. A mecanica como um todo parece mais um rascunho de ideia que não ficou pronta antes do deadline.
Então o jogo passa esse feeling que a equipe de desenvolvimento provavelmente passou mais tempo animando o cabelo da Mint do que equilibrando sua magia. As transformações de monstros de Rue são subdesenvolvidas e o sistema de magia de Mint mal chega a ser um sistema. Os aprimoramentos de armas são risíveis de tão básicos ao ponto que vc pergunta pra que sequer tem um weapon shop nesse jogo.
Sim, a Square estava testando. Sim, a proposta era experimentar. Mas às vezes Threads of Fate soa menos como um projeto experimental e mais como um protótipo que ainda estava no beta. E se tem algo que grita “esse jogo não estava pronto” mais do que qualquer outra coisa, é o ritmo.
ToF tem a pior distribuição entre cutscenes e dungeons que eu já vi em um RPG da Square, ao ponto que não é raro você passar 40 minutos assistindo ceninhas para "jogar" efetivamente dungeons que duram menos de 15. Isso é um claro sintoma de um jogo que ainda estava no desenvolvimento porque esse equilíbrio entre ação e narrativa é uma das coisas que são trabalhadas na fase de polimento do jogo, e uma que parece muito que foi pulada aqui. Os ossos do jogo estão lá... só esqueceram de colocar a carne. Quase dá pra ouvir os desenvolvedores dizendo: “A gente arruma isso depois”, mas o “depois” nunca veio.
No fim das contas, esse foi o momento em que a Square decidiu testar as águas: RPGs mais leves, protagonistas fora do molde, sistemas de combate com ação direta e uma narrativa que trocava o épico pela farsa encantada. Era o lado artístico da empresa espiando por entre os panos do maquinário corporativo — um projeto lúdico e apaixonado, vestido num orçamento modesto, mas entregue com convicção.
O jogo nunca foi um sucesso de verdade, mas conquistou seu público cult. E, com o tempo, passou a parecer uma ponte entre a era dourada da narrativa clássica da Square e a sensibilidade moderna dos RPGs de ação. É possível sentir o DNA de Threads of Fate em projetos que viriam depois e abraçariam essa proposta com muito mais ambição — Kingdom Hearts, Radiata Stories, The World Ends With You...
Em retrospectiva, ToF era a Square dizendo: “E se deixássemos as crianças esquisitas cozinharem?”. E agora estamos aqui, décadas depois, relembrando esse conto de fadas poligonal e esquisito… e percebendo que talvez — só talvez — eles estivessem mesmo no caminho de alguma coisa.