Alguns diretores de jogos tem assinaturas narrativas tão são suas, tão intrinsecas ao seu trabalho que você pode dizer que é um jogo dele mesmo sem ter lido na capa do jogo. Sejam os filmes interativos do David Cage, a necessidade quase patólogica de ter um sistema interligado complexo que não afeta realmente tanto assim ou nada no gameplay do Peter Molyneux ou o "essa história fazia sentido quando eu comecei a explicar ela mas agora que eu to falando em voz alta puta merda alguém tomou chá de fita aqui heim" animezisticamente brega do Hideo Kojima.
Nesse sentido, identificar um jogo do canadense Sid Meier é bastante fácil.
PORQUE ELE COLOCA O NOME DELE EM TODOS OS JOGOS, É FÁCIL MESMO
Hã, sim, também, mas não era bem isso a que eu me referia e sim que o seu traço como game designer é um bastante fácil de perceber: o negócio dele é fazer boardgames eletronicos. Seu maior sucesso SID MEYER'S CIVILIZATION, por exemplo, é basicamente um board game que você joga no computador.
Civilization opera sob regras familiares a muitos eurogames. Em Civ, por exemplo, você funda uma cidade que todo turno gera recursos conforme os tiles em que você assentou ela - o que é uma mecanica muito comum de boardgames, afinal. Então com base nesses recursos você literalmente constrói uma civilização, desenvolve tecnologia, politica, comércio com os outros jogadores, guerra e tudo mais.
Oh fuck... |
Civilization não é apenas um boardgame na forma de um videogame, ele é um EXCELENTE board game na forma de um videogame.
HÃ, TÁ, MAS TU JÁ FALOU SOBRE CIVILIZATION. ESSE TEXTO É SOBRE COLONIZATION, ACHO QUE TU SE CONFUNDIU
Não dessa vez, meu imaginário amigo. Isso porque é importante entender o que Civilization é para entender Colonization, já que o segundo jogo começou sua vida como uma expansão do primeiro. Só que durante o desenvolvimento da expansão Sid Meier percebeu que ele estava ficando tão diferente em tonalidade e objetivo que talvez fosse mais interessante lança-lo como um jogo inteiramente separado.
Então enquanto no papel Colonization é uma expansão de Civ (você assenta sua cidade que produz recursos conforme os tiles ao redor dela e com isso você faz outras coisas), Colonization na prática é um jogo inteiramente diferente no sentido da experiencia de jogo.
Hã, essa é uma propaganda estranhamente clean para um jogo dos anos 90 |
A primeira coisa que você vai notar é que Colonization é um jogo bem mais focado do que seu irmão mais velho. Enquanto em Civ você tem várias formas de vencer o jogo (dominação militar, religiosa, diplomacia, etc), em Col você tem apenas duas formas de vencer o jogo: ou você aniquila militarmente todos os outros jogadores, ou você declara independencia primeiro e sobrevive a guerra de independencia que a metropole na Europa manda contra você.
Claro que os outros jogadores podem aproveitar a oportunidade para te atacar também, BUT THIS IS AMERICA! Agradeça apenas que o jogo não é sobre o Brasil, isso sim.
Mas então, Colonization não é sobre começar sua civilização do zero e sim, como o nome sugere, sobre a colonização das Américas. Quer dizer, o jogo literalmente começa em um navio em 1492 e você tem que desembarcar, fundar sua cidade e a partir daí fazer seu caminho negociando com os nativos, as outras colonias e a sua metropole mãe que quer que você tenha sucesso pero no mucho, rumo a independencia.
No começo parece simples planejar uma colonia: você produz tanto por mês, essa parte você vende pra europa, esse outro tanto de recursos você separa para explorar a terra, e uma parte eu vou separar para desenvolver minhas próprias tecnologias para ser menos dependente da Europa. Na sua cabeça parece simples, porém o que você logo vai descobrir é que as Américas não são para principiantes.
No geral, Colonization é um jogo mais simples do que Civ (até porque é mais novo, então o gerenciamento de recursos melhorou muito mecanicamente) porém como o escopo é menor ele se permite ser mais intenso no que faz. Suas mecanicas são menores em número do que Civ, e por isso mesmo são mais profundas - o que faz desse um jogo de entrada até melhor que Civilization, porque ele é mais fácil de entender para começar a jogar o jogo.
Você começa escolhendo uma das quatro nacionalidades: ingleses, holandeses, franceses e espanhois, que tem vantagens de acordo com suas raízes históricas. Os ingleses são os que mais tem colonos querendo emigrar para o novo mundo (não coincidentemente, é isso que a religião faz no jogo, ela atrai colonos europeus já que suas colonias não produzem novos peões por si só), os holandeses são comerciantes melhores (tal como é sua história no Caribe), os franceses são os que tem melhor diplomacia com os nativos (como você nunca ouviu falar do genocidio francês dos povos nativos, e essa é uma das maiores diferenças entre o Canada e os EUA), e por fim os espanhóis são o contrário dos franceses e ganham bonus pra passar fogo nos nativos porque é assim que a Espanha colonial rolava.
Desde o início, suas decisões são cruciais. Estabelecer uma colônia não é apenas uma questão de construir uma nova cidade, é preciso ter cuidado ao avaliar a melhor localização. Você quer estar perto de uma região montanhosa com veios de prata ou cercado por uma terra que poderia render um bônus valioso do tabaco? E o acesso ao mar tem que ser considerado também, você não pode apenas catapultar seus produtos para a Europa - é algo que você debaterá repetidamente ao longo do jogo à medida que colocar mais colônias.
Agora sim. A tela do gerenciamento de cidade do Freecol parece intimidadora, mas é bastante simples na real:
1) É o que a sua cidade está produzindo por turno. Neste caso, 2 comidas, 4 canas, está gastando 27 peles, 2 cavalos, 14 rums (que são feitos com cana), 52 casacos de pele (que são feitas com pele), 33 sinos da liberdade (que inspira o nacionalismo independente e aumenta a rebelião, que é o que você precisa para ganhar o jogo em ultima instancia), uma cruz (que é o atrai colonos da Europa) e 14 martelos (representa mão de obra alocada em construções)
2) Esse é o seu estoque.
3) É o que você está construindo atualmente. No exemplo do caso, você está construindo um Rum Factory que com a sua produção atual de martelos vai ficar pronto em duas rodadas (se alocar mais trabalhadores, fica pronto mais rápido). Também precisa de 100 ferramentas e no momento você tem 88. Isso quer dizer que você tem que ou colocar algum trabalhador para fazer ferramentas (e aí o jogo diz em quantas rodadas vai ficar pronto), ou apenas comprar as ferramentas prontas na Europa (o que é mais simples no começo do jogo, desde que você tenha dinheiro).
E é isso basicamente o que você tem que entender do jogo, é simples até.
Sua relação com a Europa, alias, é bem interessante: no começo do jogo ela é uma parceira fundamental já que é onde você consegue produtos industrializados e coisas que não são nativas da América, como cavalos por exemplo. E também quem melhor paga por seus produtos, não é como se os indios fossem conhecidos por serem ricos né?
Só que conforme seu progresso vai se desenvolvendo você vai gostando cada vez menos e menos da Europa. Você vai ficando autossuficiente em produzir suas próprias ferramentas, o comércio local melhora e os impostos que a sua metropole cobra vão subindo. Tipo o rei da Inglaterra aumentou a taxa de imposto sobre o tabaco (meu principal produto de exportação) de 5% para 8% porque o país entrou em guerra com a França.
Hã, bom pra vc champz, mas isso é problema meu pq mesmo? E mais importante ainda, porque eu tenho que pagar essa conta mesmo? Eventualmente, independencia é um sentimento inevitável e se Sid Meier queria recontar a história da América através de um board game eletronico, me fazer entender como os colonos do continente se sentiram ao longo dos séculos, bem eu diria que esse jogo cumpre a missão perfeitamente.
Tomatecru é vitamina pra ti, "patria mãe", eu to saindo fora de pagar os teus boletos!
Porém não é apenas nos aspectos mais nobres que Colonization reconta a história das Américas através de um jogo, é nos mais feios também. Quando a necessidade aperta a vergonha afrouxa, já dizia o ditado, e é tentador deixar suas boas intenções de lado quando as contas não fecham.
E é assim que começa, você e seu barquinho no meio do nada. Me pergunto o quão pistola você precisa estar com o governo pra largar tudo e entrar numa dessas |
Quando eu jogo, gosto de ser amigável com os nativos, e o jogo recompensa você por fazer isso: negociar com eles é muito lucrativo, eles mandam presentes e você pode mandar seus colonos para suas aldeias para aprender uma profissão. Mas é possível que em algum momento você precise absolutamente daquela pradaria, você não tem dinheiro para pagar por ela, você sabe que se toma-la, a amizade acabará e logo você terá que lutar. E como você é tecnologicamente muito mais avançado,bem, todo mundo sabe como essa história termina. Apesar disso, você decide ocupar o tile.
Nesse ponto, você percebe que alguém esteve na mesma situação há muito tempo no mundo real e entende os motivos que levaram as coisas a ser desse jeito. Não é correto, mas esse não é o ponto.
Entender a História não é sobre ser certo ou errado, e sim sobre entender porque as coisas aconteceram do jeito que aconteceram e nesse sentido Colonization é uma ótima lição de história porque te coloca na pele das pessoas que fizeram essas escolhas. Você pode não concordar com que elas fizeram (e pessoalmente eu espero que não concorde mesmo), mas entende a razão daquilo porque está sentindo em primeira mão.
Colonizar uma ilha é mais seguro, mas você vai ter que adaptar sua cultura para lidar com os recursos e com o comércio limitado... espera, essa não é a história do Japão? |
Ou de repente você se lembra daquela colônia perdida onde um cara está trabalhando duro, colhendo madeira infinita para um armazém que estava cheio cinco anos atrás. Desculpe amigo, mas eu realmente preciso usar uma colonia que tem madeira sobrando. Especialmente uma que é mais fraca do que as minhas tropas.
... o que não pareceu tão boa ideia quando isso começou uma guerra com os holandeses, especialmente porque a frota deles podia piratear meus carregamentos para a Europa. Felizmente para mim, os holandeses estavam em guerra contra os Tupi, então nada que alguns produtos industrializados que eu não podia vender na Europa justamente por causa dos piratas holandeses dados de presente não forjassem uma aliança com os nativos contra os meus novos inimigos.
Como eu disse, a América não é para principiantes.
Você sabe, é claro, que isso significa guerra! |
E é isso que faz de Colonization um jogo tão envolvente, porque embora sua mecanica básica seja simples (sua cidade produz X recursos por turno, use isso como achar melhor - inclusive em desenvolver os tiles para produzir mais ainda), as narrativas emergentes que podem sair daí são praticamente infinitas, e todas diferentes de uma partida de Civilization porque a temática é completamente outra.
Claro que não é um jogo historicamente acurado (definitivamente o jogo sequer toca na questão dos... "trabalhadores não voluntários", que é uma colossal parte da história da América), mas passa bem o espirito geral da coisa. Claro que tem muito mais coisas no jogo. Eu poderia mencionar carpinteiros e pontos de produção, edifícios, educação, imigração e muito mais. Mas você já deve ter percebido a este ponto que, ao contrário de Civ, a Colonização é, em sua essência, um simulador econômico.
Estabelecer uma rede de abastecimento eficiente de matérias-primas, adquirir os trabalhadores adequados, criar as rotas comerciais para construir os bens de que você precisa e vendê-los é um elemento crítico do jogo. De certa forma, a colonização é mais parecida com Puerto Rico (o board game) do que com Civilization. Mas, ao contrário de Puerto Rico, você deve construir seu negócio explorando um novo mundo, descobrindo tesouros e maravilhas naturais, negociando terras ou mercadorias com os nativos, lutando contra outros países europeus e muito mais.
Tománocu, aumentar impostos eu até aceito agora beijar o dedinho real já é humilhação! Independencia ou morte! |
Depois de entender tudo isso, é tão gratificante jogar que, pelo menos no começo, você quase esquece que o objetivo do jogo não é construir uma economia lucrativa, o objetivo é obter a Independência. Até que a "patria mãe" te lembra que a independencia é uma necessidade.
Uma vez que Col é tão bom em colocá-lo neste contexto histórico, quando você finalmente vence e obtém independência, é extremamente gratificante. Outras simulações econômicas, como a série Anno, têm uma excelente mecânica de jogo, mas você não tem a mesma motivação para vencer o jogo. Em Colonization é uma experiência memorável.