Hoje é bastante claro que o que a Sony fez em 1994 com o Playstation não foi apenas um console de (muito) sucesso, foi uma aula do começo ao fim de como fazer um videogame. Hardware, preço, relação com os fornecedores, relação com as softhouses, jogos lançados, dá pra dizer que a Sony fez tudo certo e criou um império para si que dura até hoje – não por acaso, durante muitos anos seguintes o Playstation foi a única divisão da Sony que dava lucro.
O modelo de negócios do Playstation foi uma coisa tão boa que se tornou a base que seria seguida diligentemente pela hoje sua maior concorrente (e única, já que a Nintendo vive numa bolha a parte e a Sega faliceu a muitos anos já). Mas não é da Microsoft que eu quero falar hoje, e sim de uma das pessoas diretamente responsáveis pelo sucesso do Playstation no ocidente: Steve Race.
Não, não Speed Racer, eu disse Steve Race!
Da série "imagens que você pode ouvir" |
Ah, agora sim, bem melhor. Mas então, quem foi Estevão Corrida? Posso dizer que ele não foi uma pessoa muito... fácil de lidar, vamos dizer assim. Ou muito agradável, ele era daqueles tipicos bullys bem bulinescos, sabe, uma fusão do Caruso com o Dudley, se assim preferir. O que meio que sempre foi um empecílio na sua carreira, já que ele era um representante comercial de venda da Atari que com o morrimento dessa nos anos 80, migrou para a Nintendo quando a indústria dos videogames foi reerguidas das cinzas.
A coisa é que enquanto ele indiscutivelmente era eficiente no seu trabalho, a Nintendo achava os seus metodos um tanto quanto... abrasivos demais, vamos dizer assim. Você pode argumentar que esse estilo de passar por cima de todo mundo para ter o que quer combinava mais com a Sega e sua postura “Genesis does what Nintendon't”... ao que ele concordou.
Ai volta Bergue que deu ruim! |
Toda a coisa da ATITUDE SEU COROA da Sega combinava perfeitamente com a sua postura de fratboi machinho alfa nos negócios, certo? Então... não. Mesmo a Sega achou que ele era um pouco agressivo demais no seu comportamento e deu uma podada nas suas politicas profissionais.
Por isso quando a Sony estava scouteando uma equipe para a sua representante na América para gerir o Playstation, Steve se candidatou ao cargo de chefe de planejamento. Sua politica era bastante simples: para vencer você só precisa garantir que os outros não sejam melhores que você, e a Sony gostou disso.
Uma das suas primeiras atitudes como chefe de planejamento da Sony da América foi usar parte do orçamento que tinha para recrutar os principais “operários” dentro da Sega. Gente que não tinha muito destaque e certamente não tinha seus nomes veículados nas revistas ou mesmo nos créditos dos jogos, mas que entendia muito de logistica, contatos comerciais, relações com os revendedores, relacionamento com as revistas e coisas do dia-a-dia assim que ninguém dá muito valor mas é o que faz uma empresa realmente funcionar.
Oh não, é o mecha colonialismo! |
A principio a Sega da América não viu porque eles deveriam dar um aumento ao seu representante de vendas apenas para não perde-lo para a Sony, ela entenderia isso apenas quando ela precisasse daquele cara que tinha o telefone do gerente regional do Walmart para negociar uma posição melhor na prateleira da loja, aí seria tarde demais. Steve Race foi cirurgico quanto a minar os pilares da Sega, e quanto a Nintendo... bem, ninguém fazia a mais remota ideia do que a Nintendo estava planejando e ele lidaria com o Nintendo 64 quando chegasse a hora.
Porém nem todas as suas decisões foram puramente tecnicas, algumas foram apenas pra tirar a Sega do sério mesmo. Por exemplo, é uma pratica comum na E3 – e na CES antes disso – as empresas alugarem um saguão de hotel próximo ao evento para tratar de negócios particularmente, a portas fechadas longe da bagunça da feira.
Na CES do começo de 95, imagine então qual não foi a surpresa de Tom Kalinske (então presidente da Sega da América) ao chegar para suas reuniões particulares de negócios... e descobrir que TODOS os guardanapos do hotel haviam sido impressos a mensagem “O PSX dá boas vindas a Sega na CES!”. Mas todos os guardanapos mesmo!
Nota sobre outro ocorrido que rolou naquela CES, conforme a EGM de março de 1995 |
Tom Kalinske ficou puto com aquilo e exigiu que todos aqueles guardanapos do hotel fossem trocados, embora as lendas dizem que mais tarde lhe foi servida uma cerveja e quando ele viu ainda estava segurando a mensagem em suas mãos. Issso foi apenas o começo da guerra, e é exatamente esse clima de guerra que Steve queria.
Esse é o tipo de pessoa que Steve Race era, oscilando entre o infantil e o preciso, ele não descansaria enquanto não visse seus concorrentes destruídos – o que nos leva ao iconico episódio da E3 de 1995 onde ele tinha um discurso todo pronto sobre o Playstation, mas quando viu que a Sega fez a pataquada do tamanho do mundo de lançar o Saturn “de surpresa” apenas pregou o último prego no caixão do Saturn com o iconico “TWO HUNDRED NINE NINE, mic drop”.
Mas porque eu estou falando disso tudo e especialmente de Steve Race? Porque Steve Race é extremamente importante para o jogo de hoje já que sua decisão mais radical foi uma que moldou a própria indústria dos videogames até os dias de hoje: ele decidiu que na América o Playstation não teria jogos de plataforma 2D (salvo raras exceções).
Quando você pensa nisso parece uma coisa incrivelmente radical, jogos de plataforma 2D eram a forma de videogam mais comum da quarta geração, era literalmente a imagem mental de quando você pensa em um jogo de Super Nintendo ou Mega Drive, como o Playstation poderia esperar ter sucesso vetando isso?
O que Steve sabia, entretanto, é que o Playstation APENAS teria sucesso se ele vetasse isso. Pode parecer contraproducente excluir a categoria mais popular de jogos até então do seu console, mas ele estava certo.
Mesmo sem os hiragana, daria pra saber que esse jogo é japonês apenas por essa careta |
Imagine que você é uma criança em 1995 e tem um Super Nintendo ou um Mega Drive. O que significa que a este ponto você já jogou um bazilhão e meio de jogos de plataforma. Se a próxima geração de consoles oferecesse uma versão marginalmente melhor do que você já conhece, então seriam bem poucas as chances de que você se sentisse inclinado a mudar do que você já conhecia.
É assim que pessoas funcionam, a menos que você lhes dê um bom motivo para mudar elas ficarão com as marcas que já conhecem, e a verdade é que jogos de plataforma 2D não tinham muito realmente o que evoluir. Você pode fazer jogos com animações melhores e sprites mais detalhados, mas meio que é até onde dá pra evoluir mesmo que você tenha um PS5 rodando os jogos.
Embora o jogo tenha dois jovens ultranamicos cheios de atitude para escolher, a diferença é apenas cosmética |
A única chance que o Playstation tinha de vencer era mudar radicalmente o tom da conversa, era jogar na cara do consumidor “isso não é uma versão 1.5 de algo que você já conhece, é algo inteiramente novo que você só pode ter aqui!” e esse é um dos principais motivos do sucesso tão massivo do Playstation mesmo sendo um console sem base previa de usuarios ou renome da empresa (o que no Japão principalmente importa muito).
Como eu disse, claro, algumas exceções pontuais foram feitas por motivos especificos. Mega Man X4 é um jogo de plataforma lançado no Playstation porque Mega Man é Mega Man, e Gex foi lançado também apenas para dar o tiro de misericordia no 3DO: era mais importante para Steve Race que o 3DO não tivesse um exclusivo bom, tirando assim uma das poucas razões para escolher o console da concorrente. Porque é assim que Estevão rola, sempre dê dois tiros por garantia depois que o adversário está caído.
Porém esses títulos 2D do Playstation são analisados caso a caso, e a verdade é que houve um longo e acalorado debate sobre se Gunner's Heaven seria lançado no ocidente no PSX. Gunner's Heaven foi um jogo que a Sony do Japão encomendou a Media Visin (hoje mais conhecida pelas séries de RPG como Wild Arms, Valkyrie Chronicles e Digimon Cyber Sleuth) que fosse basicamente um jogo da Treasure, só que para Playstation.
A Treasure era conhecida até então por ser a empresa que mais conseguia tirar do hardware do Mega Drive, fazendo jogos estilo run'n gun incrivelmente bonitos e até mesmo com efeitos que muitos julgavam impossível de ser feito no hardware da Sega, como rotação de sprites e efeitos pseudo-3D.
Para os fãs de Mega Drive, os jogos da Treasure como GUNSTAR HEROES e DYNAMITE HEADDY eram grandes pontos de venda para a Sega, e a possibilidade de ter algo assim no Playstation não era de todo desprezível já que tiraria um fator de venda do competidor.
Ao que o jogo realmente cumpre o que se propõe a fazer, já que Gunner's Heaven é sem tirar nem por alguém tentando muito fazer uma versão de Gunstar Heroes para PS1. A diferença gráfica entre um console da quarta e da quinta geração é bem nitida se compararmos este jogo com Gunstar Heroes. Sprites bem maiores e com mais detalhes, enorme quantidade de inimigos na tela, chefes gigantescos, explosões por toda parte e tudo isso sem dar um único slowdown durante o jogo.
Esse é o Gunner's Heaven do PS1... |
... e esse é o jogo de Mega Drive, Gunstar Heroes |
Gunners não vem sem algumas alterações, no entanto. Em vez de usar 4 armas que podem ser combinadas, aqui os protagonistas Axel e Ruka possuem quatro armas personalizadas e cada tipo de tiro tem uma forma padrão e uma variante aprimorada ... que funciona de uma forma estranha.
Alguns inimigos dropam cristais "P", esses cristais adicionam tempo a um contador e enquanto você estiver dentro do timer, seu ataque está na forma alternativa e mais forte. Como o timer está sempre em contagem regressiva, vc precisa continuar matando inimigos para seu tiro não regredir, certo?
Na teoria é uma forma criativa de recompensar o jogador a ir pra cima (algo que me lembra o que Doom de 2016 fez tão bem), mas na prática... faltou combinar com os russos. Nem todos os inimigos dropam cristais e, mais importante, nas lutas contra chefe voce não ganha reabastecimento. O que quer dizer que na hora que você mais precisa, você só pode contar com o tiro simples. Que bosta, heim...
Muitas coisas na tela pra te matar, yay... |
E enquanto o jogo captura um dos melhores pontos de Gunstar (a pura alegria de explodir coisas), também traz à tona o principal problema dos run'n gun: o design dos níveis é inexpressivo e os estágios são bastante enfadonhos quando você é forçado a repeti-los várias vezes devido a dificuldade exagerada do jogo. Até mesmo os chefes, um ponto alto de Gunstar e outros jogos da Treasure, são bem sem graça aqui. E considerando que esse é um jogo que não usa memory card ou passwords, o jogo acaba sendo mais cansativo do que deveria.
O Paraíso dos Artilheiros também carece de algo que se esperaria de rip-off de Gunstar: um modo para dois jogadores. Jogos do tipo Run'n Gun exigem esse recurso, e Gunners teria sido uma experiencia bem melhor se fosse um jogo cooperativo. Infelizmente, Gunners é um ato solo, e esse é o ponto que voltamos ao começo da nossa história.
Quando Gunners Heaven foi levado a Steve Race para o lançamento do jogo na América, ele ficou interessado no case de um jogo de plataforma que roubaria um ponto de venda da Sega. "Vc não precisa ter um sistema da Sega para jogar os jogos da Treasure que vocês gostam tanto" é algo com que ele poderia trabalhar, e ele seriamente considerou abrir uma exceção para lançar esse jogo 2D para o PS1 na América.
O jogo também tem essa cordinha 3D manuveur gear-like, mas em nenhum momento ela é particularmente importante |
Porém a coisa de ser apenas single player foi um enorme deal breaker, o Playstation lançar um jogo parecido com um jogo de Mega Drive só que com um recurso a menos - e um recurso tremendamente fundamental como o modo para dois jogadores - é um pesadelo de marketing que ele não se permitiria ter em mãos.
Um jogo que é para dois jogadores no Mega Drive e no poderoso Playstation ser apenas single player? Not on my watch, sir!
O resultado final é que Gunner's Heaven é um jogo bonitinho, mas sendo single player acaba sendo esquecível. O seu maior legado realmente é ser um bom exemplo de como a Sony da América conduzia seus negócios, e em sua maior parte essas decisões se provaram acertadas. Dessa história o grande real legado de Gunner's Heaven é que algum tempo depois a Media Vision reaproveitou o design dos personagens (que é muito bonitinho, afinal) no seu RPG Wild Arms.
Curiosamente, essa não seria a aparência final de Axel e Ruka, eles aparecem em Wild Arms 2 como os proprietários de um bar chamado, pouco surpreendentemente, "Gunners Heaven". Talvez a Media, apesar de ter feito cinco jogos de Wild Arms, secretamente queria mesmo era Gunners e nunca encontrou ninguém para pagar por isso. O que não é a maior tragédia da história da humanidade que esse segundo jogo nunca tenha saído.
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 014
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MATÉRIA NA GAMERS
Edição 003
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