Ok, a de hoje é uma bem facilzinha pq eu estou de bom humor: responda aí, qual é o jogo de computador mais vendido dos anos 90 - e que permaneceu com esse recorde até ser desbancado por The Sims no ano 2002. Barbadinha, né? A reposta simplesmente se desenha sozinha, dá praticamente ouvir ela...
Espera, o que? Não, eu não estou falando de DOOM! Pff, DOOM queria ter os números de venda de... MYST!
QUEM?
Pois é, Myst é um dos jogos que eu mais tinha curiosidade de conhecer antes de começar esse projeto porque eu sempre ouvi falar dele: além de ser o jogo de computador mais vendido de todos os tempos até o fim do milênio, sempre é citado como "um clássico" e nostalgico e sei lá mais o que... mas eu nunca vi ninguém explicar de forma satisfatória POR QUE esse jogo fez tanto sucesso.
Bem, tendo jogado o jogo eu posso dizer que acho que entendo... mais ou menos. Em primeiro lugar, o fator mais óbvio é que é um jogo de computador inteiramente renderizado em imagens 3D... em 1993. Isso explodiu as cabeças das pessoas, como era possível um jogo tão bem acabado rodar em um computador sem que ele implodisse no processo?
Esse é VIRTUA FIGHTER, o melhor jogo a rodar em 3D em 1993 e que rodava em um arcade - o que era anos mais poderoso que qualquer PC doméstico na época
E esse é Myst, lançado no mesmo ano
De fato, não tem a menor comparação, Myst é eras inteiras mais bonito que qualquer coisa que saiu até os primeiros jogos do XBOX 360. Mas como eles conseguiram fazer um jogo rodar isso em 1993? Super simples... eles não fizeram.
Myst não é um mundo em 3D e sim uma coleção de slideshows montados para parecer um mundo em 3D. Então você está numa tela que é uma foto parada, ao "ir" para a direita o jogo apenas troca a foto. Não é nada diferente do que o JURASSIC PARK do Sega CD fez, só que Myst fez primeiro.
Isso não são fotos separadas, é o jogo rodando normalmente mesmo
Tá, explicando como funciona parece bem menos impressionante - tanto que como eu disse houveram outros jogos que fizeram isso e ninguém perdeu seus marmores por isso. Só que tem duas coisas aí que você tem que considerar: não apenas Myst fez antes, como naquela época não tinha internet. As unicas fontes de informação eram revistas, especialmente para jogos de PC que precisa instalar o jogo e não é assim pra ter um PC rodando o jogo na loja pra olhar. E vendo só as fotos na revista, não tem como saber que o jogo são apenas fotos separadas.
TÁ, OKAY, PARECE MEIO GOLPE DOS CARAS, MAS OKAY. PARECE MEIO FORÇADO ESSE JOGO SER O JOGO MAIS VENDIDO DA DECADA APENAS PORQUE OS GRÁFICOS DIFERENTES BAITEARAM AS PESSOAS?
Não é como se nunca tivesse acontecido antes...
O curioso caso de Avatar, a maior bilheteria de todos os tempos que não é o filme favorito de ninguém... ou que alguém ao menos lembra de uma fala dele.
Então dizer que o truque dos gráficos de Myst é grande parte da resposta, mas não é toda ela. A segunda parte da resposta é o proprio jogo em si: Myst foi um jogo feito para quem não é gamemaníaco. Videogames são meio que uma midia com uma barreira de entrada maior que qualquer outra mídia.
Qualquer pessoa alfabetizada pode ler um livro, qualquer pessoa que enxergue pode ver um filme - com maior ou menor facilidade, dependendo do material e o publico. Videogames são bem menos acessíveis que isso - quantas pessoas você conhece que não cresceram jogando videogames e depois de adulto entrar nesse mundo? Não é muito comum, videogames tem requerimentos de skill bem exigentes para serem divertidos a um leigo.
É bastante consenso que The Witcher 3 é um dos melhores jogos de todos os tempos (discutivelmente, o melhor), mas não é qualquer pipoqueiro de shopping que um dia decidiu jogar videogames e vai entender a linguagem, o fluxo da coisa. Compare isso com Parasita, por exemplo (comparativamente, discutivelmente um dos melhores filmes de todos os tempos) que é bem mais acessível.
E é aí que Myst entra, porque ele é um jogo completamente acessível para quem não joga videogame. Com efeito, pesquisando sobre o jogo eu li diversos comentários do tipo "foi o único jogo que eu joguei com a minha mãe" e coisas do tipo. Mas pq?
Bem, essencialmente Myst é um point'n click ultra minimalista. Você anda pela ilha de Myst, pega alguns itens (bem poucos, nem tem um inventário - o que você pega fica no cursor mesmo), resolve puzzles e é isso. E isso faz muita diferença, pq enquanto Myst é todo clean desse jeito, tradicionalmente point'n clicks não são exatamente a interface mais amigável do mundo.
Myst não, Myst o que você vê é o que você tem. Com efeito, Myst é muito mais um Escape Room (só que numa ilha) do que um Point'n Click, ele definitivamente joga muito mais parecido com The Room (o jogo para PC, não o filme do Tommy Wiseau) do que com THE SECRET OF MONKEY ISLAND.
Porém se vc me perguntar, o que realmente vende Myst é a experiencia. Hoje, Walking Simulators são relativamente comuns e não raramente premiados: jogos em que você anda por um cenário sem nenhuma pressão "de game" (não tem vidas, não tem perigos, não tem como falhar) resolvendo puzzles e, mais importante, aprendendo o que aconteceu naquele mundo através de narrativa ambiental.
Jogos como "Gone Home", "What Remais of Edith Finch" ou "Firewatch" são conhecidos por empilhar prêmios, mas em 1993 não havia absolutamente nada do tipo. Você começa jogado em uma ilha com algumas construções, mas estranhamente vazia - como se as pessoas simplesmente tivessem sido arrebatadas no meio da noite. O que aconteceu? Onde foi todo mundo? Pq vc está ali? São perguntas que serão respondidas através das pistas que você descobre explorando o cenário.
E se a premissa de Myst te parece alguma coisa familiar, sabia que é porque é mesmo: Myst foi uma das grandes inspirações para uma das séries mais populares desse século, Lost. Palavras do próprio showrunner da série, Damon Lindeloff:
Lindelof: (...) For me certainly, the big game-changer was Myst. There's a lot of that feeling in Lost. What made it so compelling was also what made it so challenging. No one told you what the rules were. You just had to walk around and explore these environments and gradually a story was told. And Lost is the same way. The problem on Lost has always been, no one has told the characters what to do. 1
Lost foi um dos maiores sucessos da televisão, e não sem motivo: era tudo tão estranho, as coisas que aconteciam naquela ilha pareciam quase aleatórias e todo mundo ficou muito curioso para ver as explicações de como tudo aquilo se conectava. Claro, depois se descobriu que nunca houve plano nenhum, eles meio que só iam atirando coisas na tela e foda-se, mas o ponto aqui não é esse e sim que isso é imensamente intrigante para o publico.
E se deu certo pra Lost em 2004, igualmente certo deu pra Myst quase uma decada antes. Então, é, eu definitivamente vejo o apelo de Myst e entendo, afinal esse é um genero que eu gosto e ver uma das primeiras encarnações dele "se não a primeira" é algo muito interessante de um ponto de vista histórico. Limitações tecnicas a parte, Myst é um jogo que eu deveria ter gostado muito.
DEVERIA?
É, então... tem isso, né? Porque enquanto eu respeito a criatividade pra superer o fato que os PCs da época não rodavam um jogo 3D, e enquanto o clima de mistério surreal é deveras interessante... "jogar" o jogo não é. E por "não é interessante" eu quero dizer que esse jogo é colossalmente horrendo!
Mas não é pouca coisa, sério!
MYST, (a grafia oficial é em letra maiuscula, então seu nome é gritado?), começa com um homem resmungando algo sobre um livro. Então tem um livro. Depois, tem uma imagem em movimento em um livro. Então você clica naquela imagem e é "transportado" para aquele mundo. Um mundo de prédios pré-renderizados em tons pastéis, o mar suavemente não batendo contra o cais e uma caixa projetando-se do chão com uma alavanca. Quando você puxa a alavanca, nada acontece. Bem-vindo a [gritos] MYST.
Após subir algumas escadas, você encontrará outra caixa com uma alavanca, mas desta vez é triangular! Então você puxa a alavanca triangular e... mais uma vez nada acontece. Bem, não "nada", ela faz um barulho de click quando você mexe ela em qualquer direção. Palmas ao jogo por ter efeitos sonoros, eu acho, mas isso não me ajuda realmente.
Mas espere! Os interruptores têm uma função mais imediata! Porque você encontra um bilhete na grama que explica como eles funcionam! E me parece bastante simples, conforme as instruções:
"Catherine,
I've left for you a message of utmost importance in our fore-chamber beside the dock. Enter the number of Marker Switches on this island into the imager to retrieve the message.
Yours, Atrus"
Olha, eu não sei quem o Atrus é, não sei quem a Catherine é, eu só sei de uma coisa na vida: Atrus definitivamente odeia a Catherine. Porque, sério, o que ele está pedindo é que ela percorra uma ilha inteira para contar os interruptores, em vez de apenas dizer a ela o código no que presumivelmente sempre foi planejado para ser um bilhete particular. E mesmo que não fosse, se a ideia fosse que ele temia que outras pessoas vissem a nota, talvez ele não deveria dizer que o código secreto é baseado em um número que absolutamente qualquer outra pessoa poderia encontrar com a mesma facilidade.
A menos que a mensagem tenha como objetivo evitar apenas as pessoas que não aguentam que querem saber mas não tanto a ponto de caminhar e contar pra isso, o que é um objetivo estranhamente espefico.
Seja como for, eu então visitei todos os slids da ilha passando por aproximadamente 47 milhões de portas diferentes, para descobrir 47 milhões de máquinas diferentes, totalmente inexplicáveis, com alavancas e interruptores e dials que podem ser pressionados, talvez tendo um efeito em algum lugar ou talvez não.
O meu ponto aqui é que o bilhete do Atrus é o "tutorial" do jogo. Agora imagine, apenas imagine, que você tem que adivinhar que o código pra ativar determinada máquina é contar quantas alavancas tem na ilha sem pista nenhuma. Podia ser quantas arvores existem, podia ser o 19o número primo, podia ser o número de Copas do Mundo que o Brasil ganhou, podia ser qualquer coisa no multiverso, e imagine que o jogo não te dá nenhuma dica disso.
Roda a roda jequiti oee
Agora imagine, apenas imagine que não é apenas uma variavel que você tem que inserir na máquina e sim várias, as vezes até mesmo mais de dezenas. E que eles tem que inserir numa ordem especifica, que o jogo não te diz também.
Então vamos recapitular: os "puzzles" do jogo são operar mecanismos usando informações que os desenvolvedores tiraram da bunda e você não tem pouca (e as vezes literalmente nenhuma) pista para entender a linha de raciocinio deles, várias delas na mesma máquina. Com varias máquinas em assim em cada ilha.
Conseguiu imaginar uma coisa assim? Bem, isso é EXATAMENTE Myst. Sem mentira.
Achou que eu tava brincando? Eu nem faço ideia de por onde começar com isso
Existem diferentes "eras" nesse jogo, que é como o jogo chama cada mundo, e você nunca vai adivinhar o que acontece nos outros mundo! Adivinha só: é outra coleção de alavancas e mostradores inexplicáveis, rodas e botões, todos os quais devem ser pressionados aleatoriamente em um esforço para discernir o que podem fazer. Não há direção, nenhum sentido para o caminho, nenhum fluxo narrativo. É apenas um grande controle remoto sem rótulo, e você deve se sentir bem consigo mesmo ao descobrir qual botão muda de canal.
Intrigado para saber se havia algum padrão discernível para as ações pretendidas do jogador, talvez apenas eu seja anormalmente burro, eu dei uma olhada em alguns walkthrougs para ver como eles justificavam o caminho que eu tinha tomado por meio de cliques arbitrários. Nada é mais revelador do que a primeira pergunta no Universal Help System: "Qual é exatamente o objetivo desse jogo?" Tendo terminado o jogo, eu ainda não sei responder.
Isso é simplesmente terrível. Não há desculpa para esses "puzzles", não é atoa que esse jogo é a grande inspiração para Lost! Os puzzles são simplesmente absurdos (o elevador no puzzle da árvore é definido pela Convenção de Genebra como crime de guerra), outros são inacreditáveis (coloque nesses números, agora coloque esses padrões em ordem, agora faça isso em outro lugar). E a narrativa/construção de mundos, cuja intenção é o ponto forte de Myst na teoria, na prática ... vamos dizer que a narrativa do jogo é mais ambicioso do que o seu design consegue transmitir. O que não é surpreendente, dado como o design dos puzzles foi.
Não tem nada que grite mais world building preguiçoso do que socar todo o lore do mundo em livros dentro do jogo com paredes de texto ou, deus nos ajude, poesia escrita por programadores de videogames
Agora cada vez que eu pegar um jogo pra jogar que exigir que eu leia todo o seu enredo em uma pilha digital de "livros" horrivelmente escritos, eu vou me virar e olhar para Myst com um desprezo tão profundo que as mães dos seus criadores voltarão no tempo para aborta-los, porque foi aqui que essa desgraça começou.
Sério, este é o jogo que tornou normal para os desenvolvedores pensarem: "Nah, que se dane, contar uma história, vamos apenas fazer o jogador pegar tudo em nossos romances virtuais impressos com fontes manuscritas. É muito mais fácil arranjar desculpas pra uma coleção de quebra-cabeças sem sentido e desconexos se houver um livro sobre gatos voadores ou algo assim. E um diário. Não, espere, 18 diários. 18 diários cheios de páginas e páginas de nossa prosa amadora, em que um parágrafo de informação se relaciona de alguma forma com um puzzle a 15 telas. Isso é narrativa. "
Pra que colocar a história do seu jogo no cenário, em cutscenes, nos dialogos, no level design... quando você pode ter um "livro" dentro do jogo contando tudo? Deus como eu odeio livros dentro dos jogos, e apenas por ter começado essa moda isso já seria suficiente para eu detestar esse jogo. E aí tem esses "puzzles". É um monte de aspas, como você pode ver.
Ah sim, lembrei de outro motivo pelo qual esse jogo era tão popular: ele era dado com absolutamente tudo. Se você comprou um PC, ganhou Myst. Nova impressora? Myst. Atualizou sua RAM, aqui, tenha uma cópia do Myst. Vastas pilhas de Myst causando terríveis deslizamentos de terra matando centenas de crianças em todo o mundo.
Se vc tinha computador, você tinha que ter Myst. Era a lei. Qualquer pessoa encontrada com um PC sem uma cópia seria presa, espancada e deixada para morrer. Seis milhões de vítimas de Myst, e nunca um pedido de desculpas.