domingo, 31 de julho de 2022

[#935][Nov/95] MARSUPILAMI


"Marsupilamis vem correndo pela selva
mas que cauda grande, quanta empolgação!"

Se tinha algo que eu odiava na minha infancia, era ouvir essa abertura. Eu não sabia dizer o que era exatamente na época, mas tinha algo que me incomodava profundamente nesse desenho. Bem, isso e o quanto assistir um desenho medíocre simbolizava a falta de opção de entretenimento na época, mas vamos nos focar aqui na parte que dá uma boa história: eu sentia que tinha algo muito errado com Marsupilami quando ele passava no Disney Club porque tinha de fato algo terrivelmente errado com esse desenho. 

Apenas que eu não fazia a mais remota ideia do quanto e vou contar pra vocês, minha nossa senhora da waifu molhadinha, não é pouca bosta não... Mas vamos começar do começo!



A indústria belga de quadrinhos é uma força gigantesca na Europa, tendo vários títulos que são tão conhecidos para eles quanto a Turma da Monica é parte da nossa cultura aqui. Estou falando de obras do tamanho de Asterix e Tintin, que certamente você já conhece mas não realmente faz ideia do quão grande isso é lá.

Pois bem, um dos quadrinhos belgas mais populares da Europa são as aventuras de Spirou e Fantasio, que existem desde os anos 30 e até mesmo ganharam um jogo para Super Nintendo exclusivo da Europa.


Em uma das suas aventuras, Spirou se vê em altas confusões com Marsupilami - um marsupial de cauda quilométrica que apronta mil e uma traquinagens com a cara dele, bem ao estilo Pernalonga como era comum na época. E como era também comum na época, o bicho ganhou tanta popularidade que passou de antagonista de uma história isolada para ser personagem recorrente nas histórias de Spirou, até se tornar protagonista da sua própria revistinha - o mesmo caminho que o Pica-Pau ou o Patolino fariam mais ou menos nessa época também.


Considerando então não apenas os quadrinhos, mas os brinquedos, pijamas, o já citado videogame licenciado e tudo mais, era apenas questão de tempo até ele chamar atenção de gente de fora da Europa como já haviam acontecido com Asterix, por exemplo.

E de quem ele chamou atenção não foi pouca bosta não, pq diz a lenda que o então CEO da Disney Michael Eisner estava visitando Europa no final dos anos 80 e se deparou com toda popularidade de Marsupilami. Ele rapidamente correu para um telefone, ligou para o escritório e mandou o pessoal do licenciamento da Disney para começar elaborar algum acordo para levar esse personagem par a a América.

E sua pressa era justificada: os anos 80 foram uma decada tenebrosa para a Disney onde eles não conseguiam emplacar nem carteira de motorista. Os parques ainda davam pé, mas as animações da Disney estavam em um estado catastrófico sendo espancadas nas bilheterias pelos filmes de Don Bluth como "Em Busca do Vale Encantado" ou até mesmo AN AMERICAN TAIL: Fievel Goes West.

O período entre 1970 e 1988 é conhecido como "Dark Age da Disney", com títulos... menos que excepcionais, vamos colocar assim

Então o cachorrão da Disney, Michael Eisner, estava realmente com pressa em encontrar alguma coisa que emplacasse e pq não Marsupilami? Assim foi feito, e pela bagatela de 10 milhões de dolares a Disney e a MarsuProductions chegaram ao seguinte:

- A Disney teria que fazer uma série animada de 13 episódios de meia hora estrelando Marsupilami até o final de 1993.
- Tentar ao máximo possível colocar esse desenho em algum canal (a Disney não tinha o seu próprio canal na época)
- E produzir várias tralhas licenciadas.

Okay, easy-peasy lemon squeezy, certo? Um acordo simples que seria interessante para ambas as partes, certo? Então, é aí que os problemas começaram.



Isso pq os anos 90 começaram com a Disney arrebentando a boca do balão nos cinemas com um sucesso de bilheteria atrás do outro - algo que literalmente não acontecia a decadas. A chamada "Renascença da Disney" começou com o sucesso megamastodontico de THE LITTLE MERMAID e o trem sem freio não tinha mais hora pra parar: BEAUTY AND THE BEAST, ALADDINTHE LION KINGPOCAHONTAS... tá, esse último não, mas fora isso era só traulitada atrás de traulitada. O Mickão da Massa tava ON FIRE, YO!

TÁ, MAS E O MARSUPILAMI?

Quem?

O PERSONAGEM BELGA QUE A DISNEY PAGOU DEZ MILHÕES PELOS DIREITOS E FEZ CONTRATO PARA CRIAR UM MONTE DE PORCARIA PRA ELE, LEMBRA?

Aaaaaahhhh... putz, a Disney tinha esquecido completamente. Quer dizer, agora eles tinham novas IPs e personagens super quentes que eram 100% deles, precisava MESMO gastar recursos, tempo e espaço na televisão promovendo um personagem cuja grana não ia 100% pro bolso deles?

PRECISA, ELES LITERALMENTE TINHAM UM CONTRATO OBRIGANDO ISSO.

Okay, isso é verdade. Ao que a Disney decidiu resolver a questão Barbosseando a porra toda:


A Disney decidiu que ia macetar a porra toda e foda-se. Então eles o que eles disseram pra MarsuProductions é que antes de se comprometer a fazer uma série completa do Marsupilami, eles iam fazer alguns curtas para apresentar o personagem e vender ele mais facilmente para as emissoras. Os europeus deram uma olhada esquisita, mas tá, a Disney deve saber o que está fazendo, certo?

Assim foram feitos os tais curtas ... e socados dentro do Raw Toonage.

SOCOU DENTRO DA MÃE DE QUEM?

Então, na época a Disney tinha um bloco fechado de desenhos que eles vendiam esse pacote para as emissoras, o Disney Afternoon (que em alguns lugares do mundo foi vendido como "Disney Club", incluindo o Brasil). Foi nele que passou DUCKTALESCHIP'N DALE RESCUE RANGERS (que alias em 2021 ganhou um filme em live action mais divertido do que qualquer um poderia esperar) ou DARKWING DUCK.



E dentro do Disney Afternoon havia um sub-bloco onde eram desovados os cartoons que ou a Disney não sabia se ia dar em alguma coisa e estava apenas testando a água (como "Sardinha e Filé", que era a versão family friendly da Disney para THE REN & STIMPY SHOW), ou coisas que deram errado e eles eram obrigados a passar para pelo menos tentar recuperar algum dinheiro (como BONKERS)... ou porque estavam presos a algum tipo de situação contratual.

E olha só, não era esse último exatamente onde Marsupilami se encontrava?


No Brasil esse bloco foi chamado de "Uma Turma da Pesada", pq aparentemente o concurso de nome mais genérico de todos os tempos está sempre aberta...

Pois é. Então eu suponho que agora que você entende o contexto que a Disney criou esse aterro de cartoons fica mais fácil entender não apenas pq parecia que tinha algo errado com Marsupilami, como não deve ser chocante saber que o Raw Toonage foi cancelado no mesmo ano de seu lançamento, ainda em 1992.

O problema é que a MarsuProductions (com razão) não engoliu a balela que o contrato havia sido cumprido e que Marsupilami tinha ganho uma série de 13 episódios de meia hora. Eles então apertaram a Disney com um "Então, vai sair esse desenho ou tá dificil?" e a Disney tinha contratualmente até o final de 1993 para dar jeito na vida.

Como o Raw Toonage não colou, eles deciram que iam ir full maluco na macetagem. Eles criaram um bloco dentro do Disney Club com o nome Marsupilami onde passariam 3 coisas: um novo curta do Marsupilami, a reprise de um curta do Marsupilami que já tinha passado no Raw Toonage e pra fechar o tempo de meia hora um curta do Sebastião (o da Pequena Sereia) ou algum porcaria aleatória qualquer que eles catassem do Raw Toonage (como Sardinha e Filé, por exemplo).



Aí sim a Disney entendeu que tava feito o desenho de 13 episódios do Marsupilami, resolvido o problema, certo? Ah, e apenas pra ficar tudo certo mesmo eles colocaram o minimo esforço possível também na divulgação do personagem: ele apareceu em UMA capa da revistinha da Disney, foi brinde do Mclanche Feliz do Pizza Hut (que na época fazia isso na gringa) e seu boneco foi colocado em um canto do parque da Disney.

Agora sim, problema resolvido e contrato cumprido, certo?

Bem, ao que os europeus simplesmente responderam:


E aí o processinho comeu. Ao que a Disney não estava muito preocupada, já que eles tinham (e ainda tem) o time de melhores (e portanto mais caros) advogados conhecidos pelo homem, então não é como se eles realmente perdessem casos na justiça. E olha que naquela época eles nem tinham o Matt Murdock, imagina hoje...

Só que a Disney forçou tanto a amizade nesse caso, que a coisa não estava bonita pro lado deles. Ficou pior ainda quando veio a tona memorandos internos da Disney dizendo que a Disney tava mesmo empurrando o personagem com a barriga de qualquer jeito já que eles queriam se focar apenas nas IPs 100% suas e aí a casa caiu de vez pro time do Mickey.



O resultado dessa brincadeira é que a Disney tomou uma multa de 10 milhões de dolares por quebra de contrato, e embora o dinheiro não seja absurdo para os padrões da Disney ainda sim fica para a história é um dos raros casos em que a Disney perdeu uma ação na justiça... até que a Disney conseguiu piorar a situação ainda mais.

Meio que por orgulho, meio que por medo de cabeças rolarem porque eles perderam uma ação pra uma empresa francesa que não tem 1/1000 do tamanho da Disney, a Disney decidiu que ela iria processar a MarsuProductions por quebra de contrato! Aha!


O contrato também previa que a MarsuProductions teria que pagar pra Disney uma porcentagem da venda dos quadrinhos do Marsupilami, com o argumento que o cartoon explodiria a popularidade do personagem e isso aumentaria a venda dos quadrinhos - o mesmo esquema de simbiose que animes e mangas tem até hoje. E a Disney argumentava que nunca viu a cor desse dinheiro.

O que realmente é um argumento válido... não fosse o caso que a MarsuProductions mostrou toda contabilidade e provou que fez o pagamento direitinho sim, a Disney que se embananou com a SUA contabilidade. E aí meu amigo, a casa caiu. Não apenas a Disney perdeu o SEGUNDO processo contra a MarsuProductions, como teve que pagar as custas do processo (o que definitivamente não é barato em processos desse tamanho) e mais importante, o RH cantou bonito e a chinela começou solta nas demissões.

A emenda ficou catastroficamente pior que o sonetto, e várias cabeças rolaram não apenas no departamento juridico como na contabilidade da Disney.



Mas bem, depois de tudo dito e feito suponho que agora seja fácil entender pq o desenho do Marsupilami passava a sensação de ser uma porcaria xuxada de qualquer forma... pq foi exatamente isso que ele foi. E também não é surpresa saber que esse desenho jamais foi relançado em DVD, Blu-Ray ou streaming, a Disney meio que quer apenas esquecer que essa desgraça toda aconteceu.

Já o Marsupilami em si, vai bem. O personagem ainda é muito popular na Europa ao ponto que ganhou um novo desenho no ano 2000 (dessa vez fiel aos quadrinhos, onde o personagem sequer fala - quanto mais falar como uma lavadeira na beira do rio), um filme em live action em 2012, um jogo para Nintendo Switch em 2021 e... um jogo pra Mega Drive em 1995. Que é o ponto do post de hoje, afinal. E que tipo de jogo é esse, afinal?

Então, não tem uma forma pouco dolorosa de dizer isso, então eu vou falar de uma vez só: é um jogo de plataforma europeu de escolta. É, taí, eu disse. PTSDs kicks in!


O que eu posso sugerir a essa altura, além de formas rápidas de suicídio, é ver meu texto sobre EEK THE CAT (o jogo merda definitivo para encerrar um ano merda como foi 2020) e imaginar tudo que eu disse nele... SÓ QUE PIORADO!

Sim, eu não achava que as leis da fisica permitiam isso, mas de alguma forma Marsupilami que vem correndo pela selva com sua cauda grande consegue ser uma versão TERRIVELMENTE PIORADA do desastre de trem termonuclear que é EEK THE CAT pq a esse ponto que Deus não apenas existe como ele devota toda sua infinita existencia a ativamente nos odiar.


A jogabilidade básica em Marsupilami é bastante simples: escolte seu amigo elefante Bonelli até a saída na direita da fase. Ou seria simples, não fosse duas coisas bem básicas: primeiro esse jogo tem um limite de tempo bolado por alguém que todo dia de manhã ia até a praia atirar canudos no oceano para matar tartarugas, segundo pq os controles são AQUELE padrão de qualidade que você poderia esperar de um jogo europeu de Mega Drive.

Então imagine, apenas imagine, juntar EEK THE CAT, a jogabilidade do seu tipico Eurotrash de Amiga e um limite de tempo que remete a KRUSTY'S FUN HOUSE. Eu queria estar exagerando, acredite em mim, mas não estou.



Isso quer dizer que Marsupilami também tem aquele salto hiperativo com o peso todo cagado e a rolagem de tela bosta que você frequentemente espera em jogos europeus de Mega Drive, e pior que isso gerenciar o elefante é um exercicio de insanidade pois ele está constantemente em movimento e é complicado colocá-lo no lugar certo na hora certa - especialmente quando "o lugar certo na hora certa" são plataformas minusculas e se ele cair (e ele vai) não dá tempo de colocar ele de volta. 

Teoriacamente vc pode usar frutas para para-lo no lugar por alguns segundos, mas isso funciona tão bem quanto todo o resto do sofrimento. Adicionte a isso que a detecção de acertos para seus tapas de cauda que fazem ele mudar de direção é errática (para dizer o minimo) e ele é absolutamente picky quanto a qual pixel vc pode colocar escadas para ele subir. Em 935 jogos nesse blog, poucas coisas se mostraram mais frustrantes que tentar manter Bonelli em uma pequena plataforma móvel, ou fazer com que ele suba as escadas que você colocou - especialmente devido ao limite de tempo desgracento.


Alias falando nisso, a curva de dificuldade geral também não faz muito sentido. Embora os últimos níveis tenham um ou dois puzzles, eles não são tão difíceis quanto os primeiros estágios (os Alpes são especialmente implacáveis). Marsupilami literalmente gastou todas suas ideias nas primeiras fases e depois disso o jogo só faz volume para terminar genericamente. Level design 10/10 GOTY.

E apenas como a cereja no bolo de sofrimento e dor, para ver o good ending do jogo vc precisa resgatar os filhotes do Marsupilami em cada fase. O problema é que o sistema de passwords não registra os Marsupimpolhos, então não tem como fazer o good ending usando passwords. 


Pobre Marsupilami, aparentemente tudo relacionado a ele que chegou as Américas não foi nada senão miséria e desgraça. E se quando eu era criança eu já achava aquele desenho feito de qualquer jeito bosta pelos  motivos aqui explicados, eu realmente não fazia ideia do quão fundo o buraco realmente podia ir por não conhecer o compendio de desgraça que é esse jogo.

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 029 (Agosto de 1996)