sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

[#1048][Out/96] VANDAL HEARTS


Eu ouvi falar de Vandal Hearts pela primeira vez de uma forma bastante incomum: eu conheci esse jogo vendo o video dele no Stargame. O uqe pode nõa parecer grande coisa hoje, mas em 1997 o Stargame era bastante especial pra mim por dois motivos:

A) Falarem sobre videogames na televisão era algo muito raro, tirando o infame Globo Reporter sobre videogames de 92 eu não lembro nenhum outro momento, logo era algo realmente especial ver a coisa que você amava ser retratada numa midia "séria" (sim, a gente acha isso na época);

B) Eu tinha muitas poucas oportunidades de assistir o Stargame na época. Como a minha família não tinha nem perto de ter condições de ter TV a cabo em 1997, eu conseguia filar um programa aqui e acolá na casa de outras pessoas, então eram oportunidades raras;


Seja como for, o que realmente me chamou a atenção na época foi o quanto de sangue esse jogo tinha, algo bastante incomum para o RPG Tático na época... ou mesmo hoje. Com efeito, como esse jogo é da Konami, eu desconfio bastante que eles reaproveitaram o efeito do zumbi de sangue do CASTLEVANIA: Symphony of the Night.



Seja como for, eu acabei gravando Vandal Hearts na memória por conta disso e vinte e seis anos depois, finalmente é hora de ver qual é a desses CORAÇÕES VANDALOS!

Pra começar, Vandal Hearts tem uma história muito interessante: esse jogo é inspirado na Revolução Francesa. Porém não a Revolução Francesa que você aprendeu na escola, de camponeses felizes cantando a Marselhesa de mãos dadas, e sim a parte da Revolução que sua professora de história pulou.

Como de costume, a capa japonesa do jogo (é a mesma para PS1 e Sat) é muito mais elegante

Isso pq ao longo da história da humanidade se pode contar nos dedos - se é que já aconteceu ao menos uma única vez - as vezes que alguém iniciou uma revolução por principios morais e nobres. Usualmente quando alguém se dá ao trabalho de matar e morrer para derrubar um governo não é por causa do amor e da amizade, e simplesmente pq essa pessoa quer ser ela própria o governo. 

E nesse aspecto, nenhum exemplo é mais iconico do que a Revolução Francesa: após a queda da então monarquia e que varios nobres rodaram na guilhotina (sendo essa a parte que é ensinada na escola), o que veio a seguir ... honestamente, não foi muito melhor do que a monarquia estava fazendo não. É um período chamado de "Reinado de Terror de Robespierre", em que os revolucionários pintaram e bordaram fazendo muito pior do que a nobreza deposta fazia.



Os números oficiais indicam que 300 mil franceses foram mortos apenas esse período (no total da Revolução foram 600 mil), sendo que do total dos executados, apenas 8% pertenciam à aristocracia: mais de 30% eram camponeses, em uma ditadura e caça as bruxas de "inimigos da revolução" que faria inveja a muita coisa que aconteceu no século XX. Robespierre e sua gangue comprovam o meu ponto que é muito, muito, muito raro alguém querer derrubar um governo pela pura nobreza de seu coração e sim pq eles querem essencialmente fazer as mesmas patifarias que os governos fazem, só que com eles dando as cartas.

E, acredite ou não, Vandal Hearts é exatamente sobre isso: quinze anos atrás, o reino de Ishtaria tinha como governo uma monarquia filha da puta que filhadaputava filhadaputamente, o que deu inicio a uma rebelião que botou a porra toda abaixo. A boa noticia é que a revolução venceu e instalou uma democracia em Ishtaria, a notícia ruim é que o novo governo "democrático" composto pelos líderes da rebelião se provou pior ainda que o governo anterior. Seu personagem é Ash Lambert, um agente da Força de Segurança de Ishtaria que começa a perceber que ele não exatamente está lutando do lado dos mocinhos.


Agora, enquanto essa premissa é realmente interessante e completamente inexplorada, a verdade verdadeira verdadista... é que ela não é exatamente explorada. O jogo não realmente envereda em tramas políticas aos moldes de TACTICS OGRE: Let Us Cling Together, ele é mais sobre Ash e sua galere conseguindo Mcguffins para derrotar o governo tiranico ou impedir que eles adquiram a proto-arma-X.

Eu não estou dizendo que o jogo é como STAR OCEAN que a premissa recebe um "caguei" completo, e não deixa de ser interessante ver como Ash e a galere vão descobrindo que tem algo de podre no reino da Dinamarca e que a revolução não foi o conto de fadas onde o bem venceu o mal e espantou o temporal que se conta - tal qual a Revolução Francesa, que não foi a coisa bela e honrada que seu professor de história te ensinou na escola.



Porém não tem como evitar reparar que esse não é o foco do jogo. Premissa nota 10, execução uns 7,5 e olhe lá. O que faz esse jogo especial não é isso, definitivamente. E o que faz esse jogo especial? Por incrível que pareça... o jogo. Eu sei, conceito louco, né?

Em primeiro lugar, eu acho a direção de arte muito bonita e eu realmente gosto do traço dos personagens nesse jogo. Eu não sei o que Hiroshi Kyomasu tem exatamente com pessoas narigudas, mas sei dizer que ficou realmente legal. Isso e o esparro de sangue a cada batalha fazem desse jogo visualmente muito único dentre todos os jogos de PS1 na época... ou mesmo até hoje.


Agora, se querem saber mesmo, o que definitivamente me ganhou nesse jogo foi o level design. Eu sei que parece estranho dizer isso em um RPG Tático, mas o que rola aqui é que as batalhas não acontecem em campos abertos e sim em cenários completamente únicos repleto de elevações, descidas, obstáculos e inimigos estrategicamente posicionados de modo que você consegue sentir que cada campo de batalha desse jogo foi cuidadosamente pensado para oferecer uma experiencia única.

Com efeito, muitas vezes você tem a sensação de estar jogando mais um puzzle do que um RPG, pq existe uma abordagem correta para "resolver" o mapa e descobrir qual é sua verdadeira missão aqui. Eu gostaria de citar, por exemplo, a missão da emboscada que seus personagens começam escondidos e conforme os turnos vão passando os inimigos vão atravessando a tela. A pegadinha aqui é que no momento que vc se revela eles tentam fugir, então vc tem que aguardar o momento exato para iniciar o ataque de modo que sua tropa consiga bloquear as rotas de fuga dos dois lados tela. 



Ou então a fase que você começa em um mapa com inimigos ridiculamente mais fortes que você: vc pode tentar vence-los ao bom e velho estilo texano, mas dificilmente vai dar certo. A coisa legal mesmo a se fazer é fugir atravessando o leito seco de um rio e quando eles estiverem atravessando ativar a comporta do dique para a água levar todo mundo.

Ou a fase que você luta dentro de um trem em movimento, mas os vagões vão sendo desconectados a cada 3 rounds - o que adiciona uma sensação de urgencia de sempre ter que avançar, mas sem poder parar de engajar os inimigos pq eles estão ali pra causar dano e não se importam de ficarem para trás caso o vagão seja desconectado. Bem legal.



Enfim, suponho que deu pra entender a ideia de que o cenário é o maior elemento desse jogo, e não existem duas batalhas iguais nesse jogo - sendo a maior parte delas com soluções bastante interessantes.

O que nos leva também ao ponto que esse jogo não apenas faz um controle muito rigoroso sobre qual nível você está em cada batalha, como usa isso como elemento do level design. Explico: assim como em SHINING FORCE: The Legacy of Great Intention, você não pode repetir as lutas - o que quer dizer que vc não pode grindar XP. Porém o jogo sempre equilibra a experiencia (dando XP generoso para quem está no nível abaixo do esperado para aquele combate) e diminuindo a recompensa em XP de quem está acima.

Nessa luta de boss, por exemplo, ele fica mudando o relevo a cada turno, o que impacta na movimentação dos seus personagens

E pq isso é importante? Pq se o jogo tem um controle firme de em que nível seus personagens estão, então ele pode trabalhar com isso como elemento de level design. Ele pode colocar um bando de inimigos fracos como isca para você deslocar um personagem ou mesmo um grupo para um local do mapa que é uma emboscada, ou pode colocar inimigos muito acima para te fazer pensar em como usar elementos do cenário para derrota-lo ao invés de apenas ir pra cima no oba-oba. 

Isso se for para derrota-lo at all, tem um mapa repleto de inimigos com níveis muito acima do seu por todos os lados e o desafio não é limpar o mapa e sim abrir um caminho até a saída com as calças na mão. Eu tenho que dizer que repeti algumas vezes esse combate até entender que o jogo não queria que eu jogasse como normalmente eu jogo RPGs Táticos e isso é absurdamente legal!


Para adicionar mais qualidade ainda a experiencia, tem mais duas coisas: primeiro que o jogo tem um sistema de vantagens e desvantagens (arqueiros são fortes contra criaturas voadoras e magos, magias são fortes contra armaduras pesadas e guerreiros de armadura são fortes contra pessoas sem armadura), adicionando uma camada ainda maior de estratégia... que é o que vc quer em um RPG de estratégia, veja só.

E segundo que esse jogo tem uma das melhores AIs que eu já vi em um RPG Tático até essa época. O computador evita armadilhas óbvias (tipo ele não avança se não tiver alcance para te atacar, pq isso só serviria para deixar o boneco empenhado no meio do caminho e se tornar alvo fácil) e identifica muito bem o alvo mais vulneravel de cada round, explorando bastante bem as brechas na sua defesa. Adicionalmente, ele tem uma predileção por atacar healers e casters que são as unidades mais perigosas no campo de batalha dado que cura e magias de area facilmente decidem o destino de um combate. Então, sim, a IA desse jogo é realmente maneirinha.


Como eu disse, cada elemento do gameplay de Vandal Hearts foi cuidadosamente pensado para construir uma experiencia única não apenas como jogo, mas a cada combate. E pra mim essa é a grande diferença desse jogo para STAR OCEAN, por exemplo: enquanto ambos tem uma premissa realmente incrível que eu não sinto que foi totalmente realizada, sendo substituída pelo seu tradicional ruguru de RPGs, itens lendários para impedir o apocalipse, yada, yada, yada, a real diferença aqui é que o gameplay de VH brilha em cada aspecto de design possível enquanto STAR OCEAN não faz nada particularmente incrível na hora de apertar os botões.

E se o gameplay for realmente bom em um jogo onde todas as criaturas são compostas de sangue pressurizado a 137% (incluindo esqueletos, de alguma forma) não vale uma recomendação de The Best Of... bem, o que estamos fazendo nesse blog então?

MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 027 (Junho de 1996)


Edição 039 (Junho de 1997)