quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

[#1054][Mar/97] BLOOD

Quando DOOM foi lançado em 1993, foi um daqueles fenômenos que dividem os videojogos, não, a própria humanidade em antes e depois. A visão em primeira pessoa, os ambientes pseudo-3D e o foco na boa e velha ultraviolencia de arrancar intestinos de demonios em Marte ao som de metal pesadão impressionou o mundo inteiro. 

Tanto que após o lançamento de DOOM, os muitos jogos de tiro em primeira pessoa que sairam tentando emular a DOOMmania não eram chamados de FPS como hoje e sim de Doom-clones. Embora o termo Doom-clone possa não parecer tão elogioso, o raciocínio básico é definitivamente adequado: em essência, um Doom-clone é um jogo de tiro em primeira pessoa feito utilizando uma mistura de sprites 2D e ambientes 3D, simulando a experiência de andar por um mundo 3D crível. Com muitos tiros. Porém o que realmente faz um Doom-clone ser um Doom-clone é o foco em armas bizarras e fantasticamente violentas misturadas com um level design estilo labirinto com objetivos centrados em encontrar a chave certa para abrir a porta certa.


Ao longo dos anos que se seguiram 1993, muitos, muitos e muitos jogos seguiram essa formula e talvez seja esse o meu problema com os FPS do começo do começo dos anos 90: ele tentaram no melhor das suas habilidades (que as frequentemente não eram muitas) copiar a mecanica de DOOM, mas pouca gente tirou um tempo para tentar ser um sucessor espiritual da sua atitude.

Você sabe, metal no talo, sangue pra todo lado, aquela sensação de poder de que você é um cara foda fazendo algo ridiculamente foda (tipo tocar terror em demonios), aquela vibe de "eu não estou preso aqui com vocês, vocês estão presos aqui comigo". Rock'n roll na sua mais pura forma, isso é algo que DOOM oferecia muito além dos labirintos pseudo-3D e das armas espalhafatosas. E era isso que faltava.


Mesmo o sucesso de DOOM feito pela própria ID Software, QUAKE, tem tanto carisma quanto uma sopa de chuchu com pedras de gelo servida no hospital. Poucos jogos realmente entenderam que atitude e a sensação de poder para o jogador era tão importante quanto a engine do jogo, e um desses raros exemplos que eu consigo citar é DUKE NUKEM 3D.

Ese foi um jogo que entendeu muito bem que o segredo do sucesso de DOOM estava tanto na sua ambientação quanto estava no seu gameplay. Infelizmente, DUKE NUKEM 3D tem um problema bem fundamental na sua premissa. Alias não é nem um problema, e sim mais uma especificidade: ele só funciona se você tem 14 anos. 

O jogo vinha com um segundo CD bonus que tinha coisas como essa versão de "Love You to Death" da Type O Negative

Toda essa atitude de macho alfa fodão que não liga pra nada do alto da sua fodelice é muito maneira quando vc é um adolescente hormonalmente confuso, para publicos mais amplos esse conceito é apenas bobo. Não em entenda errado, pode ser um bobo divertido se vc entrar na brincadeira, mas ainda sim... não é DOOM.


Mas então, pq eu estou falando isso tudo? Pq é necessário dar esse background para que vc possa entender quando eu digo que finalmente encontrei o sucessor espiritual de DOOM. Um jogo que não apenas atualiza suas mecanicas (mirar com o mouse, graças ao capiroto), como entende que vc achar que o jogo é cool é metade do caminho para ele ser, de facto, cool.

Do que eu estou falando? Bem, segura essa manga: nosso herói aqui não é realmente um herói e sim um miserável, pestilento, sarnento, arruaceiro, gato polar, cultista de um deus das trevas. Sim, nosso protagonista aqui pertence a unanimemente odiada raça de criaturas que, junto com nazistas e zumbis, não são considerados seres humanos de verdade e podem ser mortos sem peso algum na consciência. Como tem que ser.

A boa noticia para nosso boy-magia Caleb é que ele tem sucesso na sua empreitada e sua seita ressuscita o Senhor das Trevas e da topada com o dedinho na quina no meio da noite, Tchernobog. A noticia ruim para ele é que o Bog Techo é um demonio filho da puta e todo mundo sabe o que acontece com os cultistas quando eles conseguem ressuscitar o seu senhor das trevas: todo mundo toma no Tchernoboga.

Nesse caso em particular, Tchernobog decidiu que sua trupe fez um serviço meio porco e decidiu foder com a vida de todo mundo, apenas pq ele é um demonio odioso do mal, o que é que vcs esperavam dele, caras? Gratidão e amizade? Porra, é ÓBVIO que isso ia acontecer, que parte de "ODIOSO E DO MAL" vcs não entenderam?

Tcheco-Boga então leva embora a amada de Caleb, Ophelia (que tambem era cultista), para ser torturada indefinidamente por demonios menores, e só de zoas mata Caleb pq ele tava afim. Depois de matar Caleb, Tchernobog resolve então tirar umas férias matando todo mundo que aparecesse na sua frente apenas porque ele é desses e isso seria isso, não fosse o fato que Caleb ficou putasso com o desenrolar dos eventos e não aceita que as coisas terminem desse jeito.

Mas o que vc pode fazer realmente quando já transcorreu o fato de que vc contraiu óbito? Bem, um começo seria escalar de volta do inferno movido apenas na pura força do ÓDIO. Caleb pode não ser a bolachinha mais esperta do pacote, mas pelo menos ele tem determinação, isso tem que ser dado a ele.


E o resto vc já pode imaginar o que acontece: Calebão da massa agora percorre o mundo em sua vingança contra o demonio traiçoeiro que o traiçoeirou, passando o fogo nas suas hordas que dominaram o mundo, na esperança de (alem botar Tchernobog pra dormir com os peixes, obviamente) por fim a tortura de sua amada Ophelia. Sim, pq Caleb sabe que a esse ponto ela não pode mais ser salva, mas pelo menos pode ter o descanso de uma morte definitiva. Não é o final mais romantico do mundo, mas é o que a casa oferece. E sejamos honestos, parece o tipo de coisa que Shakespeare aprovaria, adora uma desgraça esse daí. 

He kill that guys because that guys insulting him for saving the world. 
And Caleb is not saving the world

Seja como for a primeira coisa a ser dita a respeito de Blood é que ele é pesadamente influenciado pela obra-máxima de Sam Raimi!

OS FILMES DO HOMEM-ARANHA?

Não, Jorge seu herege inculto, estou falando de Evil Dead! Com efeito, diversas falas do Caleb no jogo são citações de Evil Dead, como:

"I live... again!"
"I'll swallow your soul!" 
"Good... bad... I'm the one with the gun" 
"Give me some sugar, baby" 

Além da clásica "Grooovy", claro. Alias tem um easter egg que um espelho nesse jogo pode ser quebrado e sairão pequenos Calebs para te sacanear a vida. Se vc pegou a referencia, vc pegou.



Porém não é apenas nas citações, o jogo tem aquela vibe de terror de baixo orçamento com um herói fodão e mais violencia do que qualque Associação de Mães Desocupadas da América poderia conceber em seus piores pesadelos. E quando eu digo que o jogo é violento, eu quero dizer que para os padrões de 1997 ele é ABUSIVAMENTE violento, definitivamente o jogo não se chama SANGUE de sacanagem.

E é aqui onde a coisa da atmosfera entra. Seu objetivo como Caleb é simples: matar tudo da forma mais violenta possível. Essa parte não é novidade, FPS já fazem isso desde WOLFENSTEIN 3-D. A grande diferença, além da ambientação de terror trash como em Evil Dead, é o fato de o protagonista não ser um herói em qualquer sentido da palavra. 


Duke Nukem era um machão idiota, mas ele atirava nos bandidos e sempre lutou para salvar a humanidade porque era o único durão o suficiente para lidar com isso. B. J. Blazkowicz era Capitão América dos games, lutando contra o Terceiro Reich onde quer que ele erguesse sua cabeça feia. Basicamente, em todos os outros jogos de tiro dos anos 90, você era um herói ou anti-herói lutando contra as forças do mal pelo bem da raça humana.

Caleb se destaca desse rebanho como uma raposa em um galinheiro: ele é uma força do mal, um bastardo mesquinho, maníaco e assassino que ri e canta Frank Sinatra enquanto explode as pessoas em tripas ensanguentadas (sério, ele canta mesmo), para vingar a si mesmo e sua namorada (provavelmente) tão maluca quanto ele. Salvar o mundo da presença maligna do Tchernobog e suas hordas é apenas um subproduto de sua matança. 

Vc pode se perguntar pq explodir um mimico inofensivo com uma escopeta de cano serrado, mas a real pergunta é pq vc NÃO faria isso?

Em Blood, você provavelmente é o cara mais malvado do jogo: ninguém mais está incendiando as pessoas com lança-chamas de spray de cabelo, jogando dinamite em pessoas inocentes apenas para pegar um ou dois zumbis ou torturando vítimas com um boneco de vudu. Sim, isso é uma arma nesse jogo. 

E totalmente funciona, especialmente porque você sabe que suas vítimas merecem. Provavelmente. É impossível não se apaixonar por Caleb, principalmente graças à voz sarcástica e rouca de Stephan Weyte enquanto ele canta, faz gracinhas e frases de efeito enquanto ateia cultistas em chamas, com seus gritos desesperados ao fundo implorando uma morte rápida que não virá. Em qualquer outro jogo, Caleb claramente seria o vilão do jogo (o que ele era, dado que ele foi um dos cultistas que ressuscitou o Tinhoso) mas aqui ele é a sua arma para passar o pipoco nos exércitos do mal.

"Ai o Eriberto voltou, corre Berg!"

"Desculpe caras, eu sei que provavalmente vcs queriam um herói honrado e com principios para lutar, mas eu é tudo que vcs vão ter. Esse definitivamente não é o seu dia de sorte" é a tonica do jogo. Como eu disse, passa bastante a vibe e a atitude de DOOM, só que BEM mais violento e com uma engine bastante melhorada (até pq é um jogo 4 anos mais novo, né).

Esse jogo usa a última versão da Build Engine – a engine mais prevalente dos FPS nos anos 90 - antes dela ser abandonada em favor dos jogos realmente 3D. Isso quer dizer que Blood é mais polido que POWERSLAVEDUKE NUKEM 3D, e uma série de outros shooters da época. 



Após anos de aperfeiçoamento, a edição final da engine aperfeiçoou a arte da atmosfera do Build Engine, com zumbis cavando paredes para chegar ao jogador, aviões bombardeando ruas da cidade, portas e outros dispositivos com uma série de partes móveis complexas e mapas extensos e altamente detalhados que transmitem melhor os locais do mundo real do que qualquer um de seus predecessores. 

Nesse jogo, o jogador atira em todos os cenários concebíveis: um trem em movimento, uma casa de ópera, um supermercado, um hotel mal-assombrado, uma mansão mal-assombrada, um hospital, um labirinto de sebes, uma catedral demoníaca, um navio pirata, cavernas geladas e as entranhas de um monstro gigante, só para citar algumas das coisas que vc vai se deliciar remodelando com bombas e balas. Sim, é verdade que a Build Engine já estava datada em 1997, mas também é verdade que a ambientação colocada no seu canto do cisne não é nada senão puro entretenimento.

Nada entrega mais que esse é um jogo de 1997 que uma referencia a THE CROW

Porém não é apenas nos cenários que a engine é bem utilizada: Blood é frequentemente lembrado por seu arsenal incomum de armas, o que mudança revigorante em relação ao padrão de outros shooters da mesma época. 

Abandonando a linha obsoleta de foguetes-pistola-espingarda-chaingun, o arsenal de Caleb mostra que durão engenhoso ele é: incendeie monstros com um sinalizador ou lata de aerossol (apenas para assisti-los se debaterem e gritarem em desespero na rua), exploda-os ao meio com uma espingarda de cano serrado ou uma Tommy-gun; cause-lhes uma dor inexplicável nos olhos com um boneco vodu... e até mesmo espete-os com um ancinho! 

Acho que esse deve ser o único jogo em todos os tempos a ter uma referencia a Seven...

Melhor ainda, quase todas as armas têm um modo de disparo normal e alternativo para maximizar seu prazer destrutivo (mas que gasta mais munição).

Essa coleção de armas resulta que Blood está facilmente entre os dez jogos mais violentos já feitos, mesmo para os padrões de hoje: inimigos derramam fontes de sangue e explodem em nuvens de entranhas regularmente, inimigos em chamas se debatem e gritam em agonia desesperada, e cada grito de morte é horripilante de uma forma perturbadoramente divertida. 

... ou ao "O Iluminado", para esse propósito

Adicione a isso que o jogo tem um modo campanha cooperativo, e temos algo realmente digno de nota aqui. Como eu disse, a Build Engine já estava datada em 1997, mas dado que a Monolith escolheu usa-la, eu diria que eles tiraram tudo que podia ser tirado desse conceito.

A combinação de violencia, atmosfera, cenários e pequenos easter-eggs por toda parte fazem de Blood a rendição definitiva do que vc pode tirar de um Doom-clone (ou Boomer Shooter, como se está chamando hoje em dia). Se é para os Doom-clones morrerem, essa definitivamente é uma grande forma de cair atirando... e fazendo um esparro de tripas pelo caminho, como deve ser.


MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 039 (Junho de 1997)


MATÉRIA NA GAMERS
Edição 016 (Março de 1997)