segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

[#1056][Abr/97] ALUNDRA

Alundra é um daqueles jogos dos quais eu reconheço o nome por grande parte da minha vida, mas nunca soube exatamente sobre O QUE ele era. Quer dizer, eu sabia que era um Action RPG... e meio que é isso.  Agora, tendo jogado algumas dezenas de horas dele, posso afirmar que a descrição mais precisa que eu posso fazer desse jogo é um meio termo entre The Legend of Zelda: Breath of the Wild e um livro do Stephen King. 

UAU, ALGUÉM ESQUECEU DE TOMAR OS SEUS REMÉDIOS HOJE, HEIM...

Pelo contrário, Jorge! Eu tomei uma grande dose de Alundra! Pq, vc sabe, o nome do jogo parece nome de remédio para alergia ou algo assim... e é essa é a piada...

...

Hã, seja como for, meu ponto é que se essa não é a descrição mais única que eu já vi nesse blog em mais de 1055 jogos, então eu não sei mais o que seria! Então, vamos começar do começo...


Normalmente eu começo minhas reviews pela história e cenário do jogo (quando existe uma, isso não é algo que possa ser dado como garantido em videogames), e então passo para a mecanica. Porém dessa vez eu vou fazer o contrário e falar do cenário no final, pq esse é o meu blog e eu faço o que eu quiser do jeito que eu quiser.

Mas então, a primeira vista - e 99,98% das reviews desse jogo dirão isso - esse jogo é essencialmente o que THE LEGEND OF ZELDA: A LINK TO THE PAST seria se tivesse sido feito em CD. Emjbora essa seja uma descrição super generalista do jogo... ela não está de facto errada.


Quer dizer, o jogo é construído ao redor de um menino-elfo entrando em dungeons e ganhando equipamentos que o permitirá acessar novas dungeons antes inacessíveis. E por equipamento eu quero dizer bombas de arremessar, arco e flecha para ativar alavancas a distancia e cetros que tem magias elementais de fogo e de gelo.

Além disso, o jogo tem dois slots de equipamento que vc pode configurar a vontade. Isso não é nem sequer uma referencia, isso são EXATAMENTE as mesmas mecanicas!


O mesmo vale para luvas que permitem vc erguer mais peso,  botas que permitem andar em lugares antes inacessíveis, o mesmo ruguru. De igual forma, você também anda pelo mapa coletando itens que aumentam as unidades da sua barra de energia, assim como outros colecionaveis que aumentam sua mana e outras melhorias de vida nesse sentido. 

A grande real diferença aqui é que Alundra é como se THE LEGEND OF ZELDA: A LINK TO THE PAST tivesse sido feito em CD, então imagine MUITO mais espaço para mapas maiores, maior variedade de inimigos, mais dungeons, mais colecionaveis, mais MAIS de tudo. Vc pegou uma ideia da coisa. Então, sim, a comparação não deixa de ser de inevitável de certa forma.

Porém, se é para ser justo, Alundra não é tanto um clone de Zelda quanto é o sucessor espiritual de outro jogo: LANDSTALKER para o então já finado Mega Drive. Isso pq esse foi o primeiro jogo feito pela Matrix Software, que foi fundada por ex-funcionários da Climax Enterteinment - ou seja, literalmente os caras que fizeram LANDSTALKER.

Até que o jogo do nosso pezão rendeu, huh?

Jogando o jogo você tem essa clara sensação, o peso do personagem sente muito parecido, as sessões de pulo tão dificeis que fazem vc querer desenvolver uma máquina do tempo para jogar de volta no oceano o primeiro protozoário que tentou ir para a terra firme, o velho esquema com exceção que o jogo abandona a desgraçosa camera isometrica para algo que desafia (apenas um pouco menos) sua sanidade.

Mas se tudo mais falhar, basta olhar as capas dos jogos para ver a semelhança:


Suponho que nenhum juri do mundo condenaria os cara por sairem de um estúdio que fez uma continuação para LANDSTALKER chamada Lady Stalker e não viu nenhum problema com isso. LADY STALKER. É, eu também pediria as contas e fundaria o meu próprio estúdio pq claramente os meus antigos chefes não fazem ideia do que estão fazendo da vida.

Mas de qualquer forma, se eu precisasse resumir então eu diria que sim, esse jogo é essencialmente o sucessor espiritual de LANDSTALKER usando mecanicas do Zeldinha raíz, o Zeldinha moleque, o Zeldinha toco y mi voy.

E O BREATH OF THE WILD?

O que tem?

VC DISSE QUE ESSE JOGO ERA UM MEIO TERMO ENTRE O ZELDA BOTW E UM LIVRO DO STEPHEN KING... BEM, ONDE O JOGO DO SWITCH ENTRA NISSO?

Ah sim, eu disse, né? Bem, então, na verdade entra sim. Isso pq acontece que como bom jogo da família Zelda, esse jogo é focado em dungeons. Faz uma dungeon, ganha uma coisa, dá um role pelo mapa pegando colecionaveis, próxima dungeon para avançar o jogo. E as dungeons tem, obviamente, puzzles nela... e é aqui que a comparação com o jogo do Switch entra.


A grande coisa pelo qual o jogo do Switch é mais famoso é justamente que ele tem um sistema de física  consistente que tem que ser explorado para você resolver os puzzles. O metal das espadas e escudos conduz eletricidade, então em alguns templos vc tem que fazer um circuito de metal atirando objetos no chão para ligar a eletricidade de um ponto a outro. As coisas que deveriam ser inflamaveis de facto pegam fogo, então vc pode colocar fogo na grama, disparar uma flecha através do gramado pegando fogo e voilá, flecha incendiária. Claro, depois o jogo se espalha, mas aí vc não pode resolver tudo, né.

Enfim, meu ponto é que esse é o grande ponto do jogo, é o que faz dele único como ele usa características, peso, volume dos objetos para resolver seus puzzles. E nesse sentido, os puzzles de Alundra são uma primeira versão incrivelmente arcaica e rudimentar disso.


É óbvio ululante dançafogado que o PS1 não tem as condições de emular regras de fisica como o console mais-ou-menos-mas-não-exatamente-portátil da Nintendo faz, mas isso não quer dizer que esse jogo não brinque com algumas ideias. Isso quer dizer que a solução de vários puzzles nesse jogo envolve gambiarrar os objetos do cenário para chegar onde vc quer chegar, tais como empilhar caixas de uma maneira bem macetante para formar uma escada improvisada, usar lampiões do cenário para queimar arbustos ou usar goteiras para apagar chamas.

Novamente não é algo que se diga "minha nossa, mas é o bafo do selvagem isso", mas não tem como negar que o jogo tem regrinhas de física consistentes e exige pensar fora da caixa para você macetar seu caminho através das dungeons. Nesse sentido, alguns puzzles são descabeladoramente dificeis e mais de uma vez eu admito que tive que pesquisar um walkthrough de como avançar, mas em nenhum momento eu senti que eles eram ilógicos ou injustos - especialmente pq, como eu disse - a fisica rudimentar desse jogo ao menos é consistente.

Heart Container? Check

Ainda sim, precisa ser ressaltado o quanto esse jogo é dificil como o inferno! Este é possivelmente um Action RPG - se não um dos jogos - mais difíceis que já joguei. Mesmo quando vc entende o que tem que fazer no puzzle, o jogo ainda espera de você frequentemente exigindo uma sequencia de saltos de precisão pixelar em um limite de tempo bastante apertado, sob punição de ter que voltar várias telas.

O que não é nada novo para quem já jogou LANDSTALKER (ou seu sucessor espiritual para Saturn, DARK SAVIOUR) e pelo menos tem cameras e controles melhores, mas ainda sim, rapaz como é dificil essa porra. A satisfação de resolver um puzzle duro e difícil se extingue rapidamente quando você percebe que ele só foi substituído por um desafio ainda mais difícil que é seguido por outro - repita isso a beira da insanidade, ao ponto que não é incomum as dungeons terem um ou até dois save points dentro delas.


Então, é, eu diria que a dificuldade pega bem pesado e esse é o meu principal aspecto negativo a respeito desse jogo. Porém eu diria que ele oferece o suficiente para valer o seu esforço - seja no quesito recompensas pela exploração, dado que falta de conteúdo não é um problema - quanto narrativamente.

E é aqui que as coisas ficam realmente loucas, porque enquanto eu já expliquei pq esse jogo é um tataravô de Bafo do Selvagem, agora é a parte que eu falo pq ele é um romance do Stephen King.


Então suponho que eu precise explicar o que é, conceitualmente, um romance do Stephen King: usualmente é sobre uma pequena comunidade isolada, mais usualmente ainda no interior do estado americano do Maine, onde algo estranho começa a acontecer e logo esse evento estranho console toda comunidade.

Bem, essa é essencialmente a estrutura do jogo aqui: existe uma pequena vila localizada no centro do mapa, chamada de Inoa onde algo estranho está acontecendo. E por estranho, eu quero dizer que algumas pessoas estão ficando "presas" dentro de pesadelos até que toda sua energia vital seja consumida. Não é uma coisa que acontece com todo mundo o tempo todo, e mais um processo que vai consumindo um a um os moradores da vila de uma forma ... estranha. 


E é aqui que você entra: Alundra é um elfo que acaba indo parar em Inoa depois de um naufrágio, e calha de ele ter a habilidade de entrar nos sonhos das pessoas. Então quando alguem está "preso dentro de um pesadelo" vc entra lá, resolve o problema e o dia esta salvo, certo? Tipo um Phantom Thief, 25 anos antes, certo?

Então, sim, mas é mais complicado do que isso...



Por um lado, Alundra descobre que quem está por trás disso é o maligno demonio Melzas, que está zoando com os pesadelos dos habitantes das vilas. Porém Melzas não está tirando os pesadelos da bunda, e sim explorando os traumas que os habitantes da vila carregam e eu vou te dizer, tem coisa mais pesada aqui do que vc poderia esperar de um jogo de 1997.

Eu estou falando de coisas tipo alcoolismo e violencia doméstica, ou uma menina que testemunhou sua mãe ser acusada de bruxaria pela igreja e queimada em praça publica pela inquisição. É por aí a coisa, fazendo esse jogo não apenas um ancestral de Breath of the Wild, como um Persona 5 primitivo. Ou Psychonauts, para esse propósito.


Como os habitantes da vila passam o jogo com você (as dungeons são localizadas ao redor da vila, afinal, e ela é o hub recorrente como única cidade do jogo), esses desdobramentos são significativos porque vão sendo construídos ao longo do jogo. E, mais importante que isso, Alundra não é um super-herói infalível que salva todo mundo - frequentemente ele falha em sua missão e o habitante da vila bate as botas.

E não pense você que a morte de um habitante da vila é um evento leviano: há literalmente um enterro para o personagem, e o cemitério da cidade vai enchendo com seus antigos moradores. Mais importante que isso, na verdade, é que conforme mais gente vai empacotando o clima vai ficando mais pesado, os sobreviventes vão ficando mais ansiosos, prontos a trocar acusações e em especial procurar um culpado, no que o seu forasteiro Alundra é um alvo perfeito.


Isso também emula a sensação de história do Stephen King, onde não apenas o evento sobrenatural é importante como o crescente clima de ansiedade e animosidade entre os sobreviventes conforme a coisa vai apertando.

Adicionalmente, a história é contada não apenas por meio de diálogos, mas também por meio de uma narrativa cuidadosa e minimalista que alguns jogos mais antigos usavam para compensar as limitações técnicas. Os personagens podem expressar profunda tristeza simplesmente afastando-se da câmera. Depois de um funeral, a elfa Meia se aproxima de Alundra, para, abaixa a cabeça e depois se afasta em silêncio. Depois que você conhece Meia, você entende por que ela faz isso - não há grande razão, apenas que ela conhece a perda e sabe que as palavras não são suficientes.


Se parasse apenas aí, o jogo já seria diferencial o suficiente sendo um hibrido de Persona/BOTW/Stephen King, porém Alundra vai um passo além dos padrões da época quando vc começa a entender o que é Melzas. Porque, você sabe, o padrão da época seria ser um demonio maligno do mal que odeia o bem... mas, como várias outras coisas, é mais complicado do que isso.

Vê, a coisa aqui é que Melzas não é exatamente um demonio malvadão e sim um deus que era adorado na região. Por algum motivo que não é especificado, em algum ponto um rei qualquer proibiu o culto a essa religião e o culto de Melzas começou a cair no esquecimento - sendo a vila de Inoa um dos ultimos lugares do mundo que ainda adorava o antigo Deus.


Isso é importante porque é um conceito muito antigo na cultura humana que deuses se alimentam de adoração e fé (com efeito, o épico de Gilgamesh realmente tem o conceito de que os deuses morreriam de fome sem seus sacrifícios, e os astecas também acreditavam que seus sacrifícios fortaleciam seus deuses) e logo ele passou a perder poderes ao ponto de quase desaparecer.

Sua sacada foi começar a implantar pesadelos nos moradores de Inoa, assim como atiçar o equivalente aos orcs do cenário para tornar a vida de todo mundo na vila uma merda. Pq? Pq pessoas desesperadas e na merda se voltam para a religião como salvação mágica desesperada de seus problemas, como qualquer pastor do "Fala que Eu te Escuto" pode te dizer.


O que, me ocorreu, é uma saída cosmológica que funciona na nossa realidade. Pensa só, existimos em um mundo onde uma forma de vida necessariamente precisa tirar energia de outra forma de vida. É um mundo desenhado para ser conflituoso pela própria estrutura básica da coisa, o que totalmente faz sentido se vc considera que esse conflito inevitável existe com a função de causar sofrimento que vai retroalimentar um deus que precisa do desespero gerado por  um mundo onde os recursos são limitados e competitivos.

Faz vc pensar, huh?


Mas enfim, o ponto é que com o pouco de poder que ainda lhe restava, Melzas tornava a vida de seus seguidores um inferno para que eles em resposta o alimentassem com oração e fé. Quando Alundra descobre isso e o que está rolando, é claro que ele mete a real para o pessoal da vila... e meua migo, aí é que ele compra um problemão.

Isso pq o real inimigo desse jogo não é tanto Melzas quanto a sua religião, e bater de frente com uma religião é comprar problemas do tamanho do mundo. Um fato pouco conhecido, por exemplo, é que na maior parte do mundo espiritismo é uma piada que é imediatamente associada a charlatões que tentam arrancar uns trocados de uns pobres coitados que ou são burros o suficiente, ou estão emocionalmente vulneraveis. "Medium" é sinonimo de golpista, pq é isso que é mesmo


No Brasil, entretanto, Chico Xavier teve a sacada de transformar isso em uma religião e  pronto, ninguém mais podia falar mais um A dos golpes dele. Decadas antes, Joseph Smith aplicou o mesmo migué com o mormonismo, por mais estapafurdia e patética que fosse a sua história. Religião é um escudo mágico que é complementa imune ao pensamento racional em troca de dar as pessoas respostas simples (e frequentemente infantilizadas) sobre seus medos e dúvidas.

E, acredite ou não, Alundra toca nessa tecla. Por mais que ele salve pessoas, Alundra ainda tem que lidar com não apenas a desconfiança, como a perseguição e até mesmo o assassinato de seus entes queridos pq ele está batendo de frente com a religião de Melzar, e o processo de fazer a vila ver a verdade é uma jornada ardua, espinhosa e repleta de passos para trás antes de poder dar um passo para frente.


O que é surpreendentemente complexo, e em especial para um Action RPG de 1997 não apenas por ter temas tão pesados, como ter uma história desenvolvida quando o padrão da época era apenas "colecione X Mcguffins". É realmente impressionante, mesmo esse sendo um jogo traduzido pela Working Designs e por isso podemos esperar suas galhofadas habituais como tendo um "dude surfista" em uma vila zelote medieval por razão nenhuma que são Working Designs.

Então, é, Alundra é um do raros casos que é a tal "hidden gem" do PS1, pq enquanto ele é uma evolução natural de Zelda do SNES (narrativamente, em tamanho e em recursos), dificilmente recebe o reconhecimento devido. 


O que, eu tenho que ser honesto aqui, eu meio que entendo o pq disso. Não dá pra ignorar que a dificuldade do jogo faz o ritmo do jogo ser muuuuuuuito arrastado. Cada salto mal calculado (e as vezes vc não tem noção de profundidade pra saber realmente) geralmente te causa uma longa caminhada de volta ao início. Esses segundos se acumulam ao longo do jogo, ao final do qual somam horas e horas de jogo apenas patinando na dificuldade

O jogo também não tem um ritmo muito amigavel. Você acaba de descobrir o puzzle mais difícil de sua vida, disparando todos os neurônios disponíveis em seu córtex frontal, apenas para ser confrontado com MAIS puzzles e saltos MAIS difíceis. A história, embora realmente impressionante ao que ela se propõe a fazer, não é espaçada uniformemente: tem momentos em que uma masmorra leva automaticamente a outra sem respiro.


Isso me deixou exausto como eu não ficava em mais tempo do que eu conseguia lembrar (talvez DRAGON QUEST 6: Realms of Revelation), o que faz a experiencia toda ser mais exaustiva do que ela deveria ser. Reiterando: os puzzles são realmente de excelente qualidade, mas o pacing de empilhar esforço mental um em cima do outro poderia ser melhor distribuido.

Isso não apaga o brilhantismo de Alundra de ter excelentes puzzles, trocentos colecionaveis, boa jogabilidade e, talvez acima de tudo, retratar o preço psicológico e espiritual que a morte desenfreada causa em uma pequena comunidade. Alundra foi bem mais do que eu poderia esperar após todos esses anos, e isso não é algo que acontece todo dia por aqui.

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Edição 129 (Julho de 1998)


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Edição 040 (Julho de 1997)


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