quinta-feira, 21 de março de 2024

[#1260][Out/98] SHOGO: Mobile Armor Division

Considere o seguinte: o ano é 1997, e o pináculo dos jogos de tiro em primeira pessoa é QUAKE 2, que saiu um ano antes. Um ótimo jogo por si só, porém, o jogo era inteiramente baseado em combate. E quando digo inteiramente, quero dizer inteiramente MESMO. Tirando telas de texto ou as vezes uma breve cutscene entre as fases, durante o jogo mesmo, quando vc está com o controle na mão não havia história, diálogo, NPCs e nenhuma IA real digna de nota. Você recebe uma arma básica no início do jogo e continua atirando em tudo que se movia até o final do jogo - com armas melhores ou não, mas vc entendeu a ideia. Até 1998, isso era o que um jogo de tiro em primeira pessoa representava.

Então, como algo semelhante ao monolito negro em 2001: Uma Odisseia no Espaço, eis que surge um jogo que muda tudo que se sabia e o que se podia fazer em um FPS. O jogo não começa com você aparecendo em uma sala com uma arma e coisas para atirar, ao invés disso a ação lentamente se revela conforme você explora uma instalação e vê NPCs trabalhando e seguindo suas vidas. E olha só, vc pode até atirar neles - porém isso vai te fazer ficar marcado como traidor e todo mundo vai te atacar!

Mas supondo que vc não atire em ninguém (embora vc possa), os NPCs falam com você (pelo nome, ainda por cima) e aparentemente estão cientes de sua presença para além de um script básico que era triggado. Eu sei que hoje isso parece um nível de interação elementar de uma IA, mas então estamos falando de 1998!

Poucos jogos nascem com mais cara de "isso vai vir na CD Expert" do que esse

Aqui os NPCs não apenas direcionam você para o próximo lugar a ir no jogo, fornecendo exposição e contexto, como se juntam a vc no combate e realmente matam inimigos! Novamente, isso era um nível de IA completamente de cair o queixo para a época!

Não fosse isso o bastante, o jogo é baseado em uma história em que a narrativa acontece DURANTE as fases e não em cutscenes (tipo os NPCs abrem portas e quebram paredes, modificando o layout da fase conforme a história progride e o tiro vai comendo). E a história, saiba você, é até interessante com um toque de nível Shyamalaniano de plot twitter duplo carpado no meio. 

Como dá pra ver, esse jogo mudou absolutamente tudo como as coisas eram feitas em tiro em primeira pessoa (e discutivelmente nos videogames em geral), e é claro que eu estou falando de...


O que? Você pensou em Half-Life? Não, não, não! O jogo que eu estou falando saiu dois meses antes, e hoje falaremos sobre Shogo: Divisão Blindada Móvel!

Antes de começar, eu preciso dizer que eu realmente gosto muito dos jogos de tiro da Monolith Productions. Que não deve ser confundida com a Monolith Soft (que hoje é conhecida pelos RPGs de Xenoblade Chronicles), pq aparentemente "Monolith" é um nome muito maneiro para o seu estúdio. Mas enfim, eu dizia que curto bastante o trabalho dos caras, especialmente pq logo de saída seu primeiraço jogo já é o que eu considero o melhor boomer-shooter que dava pra fazer usando a engine Doom-like em 1997: BLOOD - porém suponho que o estúdio seja mais conhecido hoje pelo jogo que eles viriam a fazer, que mistura survival horror com FPS: a série "F.E.A.R.".

Um lembrete amigável aos guardas, sacumé né?

Seja como for, a coisa boa a respeito dos FPS deles é que eles não apenas fazem um joguinho genérico e lançam e deu. Não, eles realmente investem em um tema e tiram dele o que dá pra tirar e isso sendo dito, vamos então a pergunta de um milhão de waifus: qual é o tema desse jogo?

E a resposta é, acredite ou não, animes.


Embora isso possa parecer uma montagem AMV que era muito comum nos primórdios da internet (pode ser que ainda seja, sei lá eu o que os jovens ultradinamicos de hoje acham maneiro fazer), essa é na verdade a abertura do jogo. Então essa é a coisa desse jogo: ele não tem essa temática de anime pq ele é um jogo japonês e é assim que japoneses contam histórias, não.

Ele é desse jeito pq ele foi feito por um bando de otakus americanos que estavam na vibe de animes, afinal estamos falando de 1998 e estamos no auge do grande boom dos animes! Pra vcs terem uma ideia do quão otakus fididos caçados por caveiras eles são, eis uma coisa que vc encontra no cenário do jogo:


Isso, meus senhores, é uma referencia com vários níveis de otakice.

VOCÊ SABE QUE O FATO DE VOCÊ ENTENDER ESSA REFERENCIA NÃO DIZ MUITAS COISAS BOAS A SEU FAVOR, NÉ?

Sono toori desu, Jorujo-kun! Mas então, o ponto é que o tema desse jogo é anime e animezices mil teremos incluindo - mas não limitado a - mechas, waifus e tiros em forma de barragem de misseis (tambem conhecido como "Itano Circus", em homenagem ao seu criador Ichiro Itano)!


Claro, vc pode argumentar que anime feito por ocidentais não exatamente funciona sempre, e esse jogo definitivamente tem alguns exemplos disso. Como por exemplo os modelos dos personagens, eles totalmente tentaram fazer um boneco 3D com a temática de anime e o resultado foi... isso:


JESUS NO POGOBOL QUE TROÇO FEIO DA PORRA! Sério, que imagem mais cursed e saiba que isso não é um caso isolado, de modo geral o design das pessoas nesse jogo é lazarento de feio do cabógis! Olha caras, eu aprecio que colocar olhões em um modelo 3D para dar uma estética mais anime é uma tentativa válida, mas então eu preciso realmente apontar que isso já foi feito com bem mais elegancia quase DOIS ANOS ANTES:


Tá, tudo bem que a Monolith não tem o orçamento de cem milhões de dolares de uma Squaresoft quando fez FINAL FANTASY 7, mas porra, é quase dois anos depois! Dava pra ser menos nightmare fuel do que isso, bem menos.

Mas bem, a boa noticia é que esse terror se limita aos personagens humanos e os mechas e especialmente as explosões anime-like funcionam de forma bastante maneira, thou:


Shogo tem o dedo no pulso dessa estética anime que funciona mais do que erra realmente: tirando os modelos de personagens horrorosos, todo o resto meio que funciona desde as explosões (conforme acima), mas incluindo a estética noturna da cidade (que parece saída de Bubblegum Crisis), ultraviolência insana (como nos OVAs de Ninja Scroll) e triângulos amorosos esquisitos (que existiam aos borbotões nos anos 90). Isso funciona tal que quase compensa o fato que o jogo parece ter sido lançado inacabado.

Eu digo inacabado e para entender os problemas com esse jogo, é necessário entender a situação da Monolith na época... e as coisas não estavam indo bem, é preciso dizer. Após BLOOD, a Monolith estava trabalhando na sua engine para fazer o salto para os jogos 3D - dado que a era jogos FPS Doom-like faux-3D já tinha terminado. O problema é que fazer uma engine custa tempo e dinheiro, e enquanto eles trabalhavam na engine para lançar "Blood II: The Chosen"... bem, ALGUMA COISA eles precisavam lançar para entrar um dinheiro.

E, como vocês biscoitinhos espertos já deduziram, esse Shogo é o ALGUMA COISA que eles lançaram pq precisavam de grana. Então por mais que a engine que a Monolith estivesse desenvolvendo fosse ambiciosa (e é, já falaremos a respeito disso), o jogo foi lançado em uma versão incompleta dela e isso é algo que dá pra notar aqui.


Se o objetivo fosse apenas ser uma espécie de cópia de QUAKE 2  no sentido de jogo de tiro 3D, seria um plágio esquálido porém funcional. Só que não é apenas isso, a Monolith tinha ambição de contar histórias e sua engine (como veriamos plenamente em F.E.A.R.) dava margem para isso investindo uma grande quantidade de esforço na IA. 

Shogo se esforça bastante nesse sentido e realmente tenta evoluir o que um FPS poderia ser narrativamente - alguns meses antes de Half-Life se tornar o paragon em como criar um FPS narrativo - só que eu vou dar um palpite louco e dizer que tentar revolucionar a industria com um jogo que era apenas o tapa-buraco da empresa não parece algo muito realista. Como de fato não foi, e existe um motivo pelo qual Half-Life é citado até hoje mas Shogo, que tentou as mesmas coisas primeiro, sequer é lembrado de existir.

A nossa história aqui é algo que vc tipicamente encontraria em um anime de mecha dos anos 90: o universo está em guerra por um tipo especial de combustível chamado kato, e o protag Sanjuro é um soldado da Autoridade Corporativa Unida que está em uma guerra de múltiplas facções pelo kato. 


Esse capitulo em particular trata da treta entre a ACU contra a CMC, os misteriosos rebeldes conhecidos como Fallen, e para isso a ACU emprega uma unidade de mechas para se infiltrar e retomar uma cidade controlada pela CMC - essa unidade é a tal divisão móvel Shogo. 

Porém anime que é anime que se prese não faltaria um puta dramalhão da porra, e nosso herói Sanjuro aqui está mais focado em seu irmão morto Toshiro, seu melhor amigo morto Baku e sua namorada morta Kura, todos falecidos graças aos rebeldes Fallen. Ele também está namorando a irmã de Kura, Kathryn, que por sua vez era namorada do irmão de Sanjuro e como ambos perderam seus namorados na guerra, decidiram agora namorar entre si.

Ou, como colocado nas palavras dele, "é meio complicado". No entanto, as coisas logo se mostram muito mais complicadas do que namorar a irmã da namorada morta - com direito a mortos que não estavam mortos voltando da morte, e Sanjuro se vê envolvido em uma trama de traições das traições com o destino do universo em jogo.


Você sabe, all the good stuff que esperamos ver em um OVA de mechas dos anos 90 e tão bem dublado quanto vc esperaria um jogo de tiro dos anos 90 - ou seja, não muito - adicione a isso uma música tema J-Pop farofa que diz coisas bregas como “Eu sei que podemos fazer isso juntos!”, todo seu pacote completo de anime da época. Tudo isso junto poderia ter contribuído para uma história brega e emocionante, só que aí entram os problemas do jogo: infelizmente, não houve tempo para fazer cenas adequadas para a enorme montanha de background e referencias que eles queriam usar, então a história é mais despejo de exposição do que uma narrativa plenamente realizada e isso diminui muito o que o jogo poderia ter sido.

Da mesma forma funcionam as referencias, numa história plenamente desenvolvida seriam a cereja do bolo, porém aqui parecem apenas meio jogadas. Tipo o antagonista recorrente completamente inofensivo que continua voltando, não importa o quanto você exploda seu mecha, como a Gangue Donronbo de Yatterman e os incontáveis ​​vilões de anime que eles inspiraram desde então (incluindo a Equipe Rocket no anime de Pokémon). 

Poderia ser épico se usado como uma parte da trama totalmente desenvolvida, mas aqui está mais para "ah, okay, peguei a referencia" e só. O que eu quero dizer aqui é que tanto a história quanto as referencias tem o tom e até mesmo momentos engraçados, mas não a estrutura para fazer a história ter real impacto.

Caralho o quanto de sangue esses soldadinhos a pé esguicham, a gente tá enfrentando Cavaleiros do Zodíaco?

E essa coisa de "a ideia é legal no papel, mas a execução é meio bunda" se aplica tambem a jogabilidade propriamente dita. As partes que você joga com um mecha são de longe a melhor parte do jogo, as armas dos mechas causam explosões vistosas que parecem ter impacto, andar na cidadezinhas que parecem maquetes de Ultraman é muito maneiro e os controles são tão bons quanto qualquer outro FPS 3D da época. Mas acima de tudo, os mechas são muito mais duráveis, então há muito espaço para erros. 

Os segmentos que vc joga a pé... não são tão gentis, vamos colocar assim. Não apenas suas armas são bem menos impactantes (e bem sem graça se comparadas a ação que acabamos de ver com os mechas), porém o que ferra mesmo com a diversão é a dificuldade do jogo.

Todos os inimigos são hit-scanners (ou seja, assim como em REDNECK RAMPAGE, as armas não disparam projeteis realmente e ao invés de ter a balinha viajando na tela o dano é computado automaticamente sem chance de desvio) que reagem extremamente rápido ao vc entrar no campo de visão deles. Ou seja, esse é um daqueles jogos que vc só consegue jogar se decorou a posição dos inimigos (ou abusa do quicksave) e já os mata antes que eles terminem de spawnar - até porque aqui de alguma forma eles atiram em vc mesmo quando estão de costas, então é um pouco pior do que em  REDNECK RAMPAGE que ao menos tinha isso. 

Isso torna os trechos fora do mecha realmente crueis e embora eu entenda que é proposital para vc sentir diferença quando está no robozão gigante, na prática isso não é nada divertido. Que esse jogo não é Titanfall 2, isso eu suponho que não precisa ser dito...

Fora isso, esse é um FPS extremamente básico onde a única coisa fora do normal que vc esperaria encontrar no genero é um sistema de acerto crítico - que até onde eu entendo, parece ser totalmente aleatório. Como em um RPG, às vezes você causará dano extra com um tiro, e o mesmo se aplica aos seus inimigos. Ele também pode restaurar um pouco de vida, mas a verdade é que eu li algumas discussões sobre o tema e não parece haver um consenso sobre como isso funciona, supostamente um tiro na parte superior do corpo ou um headshot, mas a detecção de acerto da engine não é muito bem definida nisso. É uma ideia legal, mas seria mais legal se vc tivesse algum tipo de controle sobre ela com um headshot ou algo que o valha.

Os mapas também estão notavelmente vazios, e essa é a parte que fica mais claro que a engine não estava pronta. Mesmo que as fases sejam labirinticas, muito raramente tem alguma coisa para encontrar. O que gera um efeito muito estranho, pq vc tem esse cenário super estéril e sem vida, e então do nada um poster de anime na parede "pq esse é um jogo de anime". Parece bem deslocado realmente.


Tendo um sistema de combate injustamente dificil, mapas que parecem o beta inacabado e sendo marketeado com sua temática para um publico que tinha horror da palavra "anime" nos anos 90 (vc ficaria surpreso ao saber o quanto nerds de computador ocidentais eram resistentes aos animes até meados dos anos 2000), não é realmente surpresa que Shogo vendeu mal e acabou tendo algumas expansões planejadas canceladas. 

O que é um caso curioso, pq mesmo que seus numeros sejam de um fracasso embaraçoso, a Monolith certamente não o trata como tal, nem naquela época nem agora. A Monolith faz referências constantes ao jogo em muitos de seus trabalhos, incluindo uma conexão com a lore em F.E.A.R, e o jogo foi trazido de volta ao Steam e GoG de uma forma que não rendeu à Monolith praticamente nenhum dinheiro com vendas devido ao contrato que foi feito com a intermediaria Interplay - pra eles parece o suficiente que seus fãs queiram jogar seu antigo joguinho, o que é fofo na real.

De um jeito ou de outro, Shogo é o marco do fim de uma era. Seu design mescla os labirintos estéreis da era DOOM com os cenários que faziam parte da narrativa para acontecer o tiroteio - iniciado pela era Half-Life, que seria lançado dali a dois meses e mudaria os videogames para sempre.


Porém antes de HL mudar o mundo, houve esse jogo esquisito e com cara de inacabado com NPCs interagindo no campo de batalha em tempo real, história ambiciosa e uma temática bem definida do que queria ser. É uma grande pena realmente que Shogo nunca teve uma continuação, pq todos os seus problemas no fim do dia eram coisas plenamente solucionaveis ao passo que suas qualidades eram algo que vc não encontrava em nenhum outro lugar.

Bem, em nenhum outro lugar pelos próximos dois meses, isso é.

MATÉRIA NA GAMERS
EDIÇÃO 035 (Novembro de 1998)