Hoje, jogos de tiro em primeira pessoa são chamados de... bem, jogos de tiro em primeira pessoa (first person shooter, FPS para os intimos), duh. Porém nos anos 90 nós não usavamos esse temo, nós chamavamos esses jogos de tiro de "clones de DOOM". Sim, o jogo mais citado desse blog volta a aparecer, mas o que eu posso fazer se esse jogo é influente assim?
Seja como for, o nome "clone de DOOM" não é atoa, já que antes das engines 3D que começaram a surgir com QUAKE e definitivamente popularizadas por UNREAL, os jogos de tiro eram literalmente clones de DOOM pq por volta de 1997 a grande maioria dos FPS usavam a Build Engine (uma engine que não é exatamente o código de DOOM, mas uma evolução baseada nas suas ideias e popularizada por DUKE NUKEM 3D) apenas trocando os mapas, sprites e texturas para fazer a sua própria coisa.
Disso nasceram diversos jogos, alguns realmente memoráveis que puxavam os limites da (então) já velhinha engine de DOOM para fazer coisas parangaricotirimirruaramente loucas ou apenas divertidas, como DUKE NUKEM 3D e especialmente BLOOD (que pra mim é o melhor jogo feito com a Build Engine, como eu expliquei naquele texto). Agora é claro que nem todos esses jogos são revolucionários, interessantes, divertidos... ou que vagamente mantem sua vontade de continuar vivendo.
Isso pq enquanto houveram vários jogos que se enquadram na categoria "esse definitivamente é um dos jogos já feitos", poucos podem ser mais "jogos já feitos" do que a Despirocação dos Caipiras. E é sobre isso que veremos hoje.
Agora, antes de começarmos, suponho que eu deva esclarecer isso: não existe realmente uma tradução ideal em português para "redneck", pq "caipira" - que é o que é normalmente usado - não carrega o mesmo tom de escarnio social que redneck carrega para os americanos. Não estou dizendo que no Brasil "caipira" é usado de forma elogiosa nem nada do tipo, apenas que o que essa palavra significa culturalmente não é a mesma coisa que significa para os gringos.
Redneck é o termo utilizado nos Estados Unidos para nomear o estereótipo de um homem branco que mora no interior, que tem uma baixa renda, basicamente nenhuma instrução escolar e é de origem rural e ultra conservadora. O que é uma forma chique de dizer que o redneck foi estereotipado na mídia e na cultura popular como um homem branco do sul, racista, machista, xenofobico e sem instrução.
Bem, suponho que todos aqui já estão familiarizados o suficiente com a cultura pop dos filmes e seriados americanos para visualizar o cara branco vagamente alfabetizado com uma escopeta na mão e ciente dos seus direitos de atirar em tudo que entrar na sua propriedade, não for americano o suficiente, não for branco o suficiente ou for vagamente bichinha. Rednecks, vc sabe.
E se isso não parece um tema que eu acho hilariamente divertido, ou mesmo remotamente divertido para esse fim. Pq, vc sabe, ódio, ignorancia, racismo, homofobia e misoginia não são coisas que eu automaticamente associo com "haha funny" e eu esse jogo não faz muito realmente para melhorar essa imagem.
Bem, pelo menos o jogo em si não faz (mais sobre isso em breve), pq ao menos o manual dele é definitivamente um dos melhores manuais que eu já vi em todos esses longos anos nessa industria vital. O que rola aqui é que o manual na verdade é no formato de um jornal local do Arkansas, e entre as matérias que vc esperaria ver em um tabloide do interior da puta que pariu de onde judas perdeu as botas estão as instruções de como jogar o jogo. É bastante criativo, na verdade:
Enfim, nossa história aqui é que aliens decidiram zoar com a cidadezinha de Hickston no interior do Arkansas, e não apenas abduziram todo mundo e substituiram por clones ignorantes que atiram em tudo que chega perto deles (ou seja, uma substituição imperceptível) como também levaram a porca premiada Bessie dos irmãos Leonard e Bubba.
Aí não, senhor, aí cê tá arrajandu é sarna pra si coça! A Bessie naum!
Enfim, o jogo não tem mais história que isso mas então honestamente, eu não acho que alguém esperaria que tivesse. E dado o tema do jogo, provavelmente é melhor assim, não vamos puxar nossa sorte além do necessário, okay?
Mas enfim, o que temos aqui no fim do dia é um FPS que usa a Build Engine de
DOOM (na época que o jogo foi lançado, metade 1997, ainda haviam os ultimos exemplares dessa especime em extinção) e a parte boa é que não tem muito como errar com essa estrutura, né?
... né?
Então... meio que tem. Desenvolvido pela Xatrix Enterteinment (mais conhecida por não ser conhecida pelo absurdamente esquecível
CYBERIA, que tirando a Super Game Power que encarnou com esse jogo e deu até um detonado pra ele, ninguém sequer lembra que esse jogo existiu), como já dito RR usa a Build Engine, porém é frequentemente apontado como o mais fraco dos jogos a fazer isso naquela época (considerando apenas os jogáveis, claro, pq minha nossa senhora do passaquatro molhado, o que saiu de shovelware naquela época com a Build Engine afogaria um triceratops).
Vamos colocar assim: se
DUKE NUKEM 3D pretendia criar uma paródia do zeitgeist de Hollywood dos anos 90,
OUTLAWS pretendia criar a sensação de um faroeste na forma de jogo de tiro, Redneck Rampage pretende criar uma paródia do Sul dos Estados Unidos, com as suas influências culturais e ícones rednecks totalmente realizados na experiência de tiro em primeira pessoa.
Como eu já disse, não é um tema que particularmente me interessa, mas então eu estaria mentindo se dissesse que a Xatrix não entrega exatamente o que promete com esse jogo: a dublagem entregam perfeitamente o estereótipo de white trash do sul dos EUA, cada nível consegue abarrotar de todos os estereótipos de rednecks existentes, e de modo geral navegar por todos esses lugares de merda faz você sentir que precisa de um banho. O que é meio que a ideia, eu suponho.
E eu tenho que dizer que o sistema de cura é interessante. Aqui vc recupera vida com álcool e comida espalhadas pela fase, mas existe uma pegadinha: o álcool aumenta a embriagues, enquanto a comida aumenta o intestino. A embriagues afeta seu movimento e tornando seu personagem um alvo mais fácil para os inimigos, enquanto o intestino cheio faz com que vc peide constantemente, alertando os inimigos próximos. Eu estou falando sério, peido é uma mecanica de jogo. Faça o que quiser com essa informação.
Se ambos os medidores estiverem no vermelho, você não poderá consumir mais nada, mas ambos os medidores irão baixar lentamente. Você também pode diminuir a embriagues comendo comida (mas não o contrário, o que é estranhamente acurado com a vida real). De qualquer forma, vc pode baixar bastante qualquer um dos medidores indo ao banheiro e mijando ou achando uma patente para soltar um barro... e novamente, isso é uma mecanica do jogo. O que é... diferente, vamos colocar assim... e tenho certeza que
BOOGERMAN: A Pick and flick Adventure está se mordendo de inveja por não ter feito algo assim, então kudos onde kudos são devidos, tenho que dar isso a eles.
Infelizmente, o positivo termina aí. Não que Redneck Rampage seja um FPS quebrado no sentido de ruim, apenas... é um incrivelmente medíocre, e eu tenho que dizer que dentre os jogos feitos naquela época com a Build Engine (os funcionais, pelo menos, pq tem umas coisinhas que minha nossa), esse é definitivamente o mais fraco.
Uma das coisas que torna esse jogo problemático é a coisa da Xatrix de que seus FPS são notoriamente difíceis - especialmente pq eles abusam do hitscan na programação dos seus jogos. Hitscan, saiba você, é um metodo de programação de jogos em que as armas não disparam projeteis realmente. Ao invés de ter a balinha viajando na tela (ou laser, ou galinha voadora, que seja), o que o jogo faz é que no momento que o tiro é pressionado o dano é computado.
Isso é problemático pq tira completamente a possibilidade do jogador desviar de tiros, assim que vc PASSAR na frente de um inimigo ele te causa dano, sem choro nem vela. Não tem como desviar, não tem como evitar, não tem como fazer nada: se você PASSOU na frente de um inimigo, tomou dano.
Que bosta, heinhô Batista? Agora adicione isso a péssima hit detection da Build Engine - que, lembre você, é uma engine construída sobre um código de 1993 feita com um macetamento selvagem de programação para enganar os computadores a rodarem jogos muito mais complexos do que eles deveriam ser capazes de rodar (que é o que faz Doom tão brilhante até hoje). Isso quer dizer, para o nosso caso aqui, que na prática o que a Build Engine entende como "passar na frente" é bem... vago, vamos dizer assim.
Ou seja, praticamente todo inimigo que existe no jogo consegue te acertar e não tem NADA que você possa fazer senão decorar onde eles spawnam e mata-los antes que o jogo registre que vc entrou "na frente" (aspas aqui por causa do que, como eu disse, a Build Engine considera como "frente" é muito generoso). Se isso não soa a coisa mais divertida do mundo, é pq não é realmente
Adicione a isso que a telegrafada dos inimigos e atrasos do ataque são muito curtos e temos um jogo que eles te causam dano quase instantaneamente - a maioria dos jogos dá um tempo de reação para o jogador pq nós meio que somos humanos e precisamos dessas coisas, coisa que a Xatrix parece considerar apenas uma frescura. A munição também é escassa e a maior parte do tempo vc vai usar espingarda e pistola - que nesse jogo, não tem peso ou particularidade nenhuma, fazendo dessas as armas mais genéricas que eu já vi em um FPS na vida.
Sério, sabe a parte de
OUTLAWS que eles se dão ao trabalho de fazer a coisa de recarregar o revolver para te dar a sensação que vc tá num tiroteio de faroeste, ou em
BLOOD onde a shotgun é absurdamente brutal e satisfatória? Bem, RR não faz nada disso. Ele não faz nada de nada realmente, as armas aqui até funcionam (no papel), apenas são incrivelmente... blah.
Alias, já que estamos nisso, eu preciso dizer que RR tem a pior shotgun da história dos videogames pq seus tiros se espalham horizontal em vez de circular. Por que isso é ruim? Pq a menos que o inimigo seja muito grande, a espingarda só vai pegar um ou dois pontos de dano - a maior parte vai espalhar e ir para os lados.
Quando o tiro espalha circular, isso é fácil resolver: chegue perto do inimigo que ele vai tomar o dano todo antes do tiro espalhar, por isso a espingarda é a arma de fogo favorita dos gamers. Aqui como o tiro espalha para o lado, a grande parte dos inimigos só vai tomar um ou dois pontos de dano a menos que vc esteja colado nele - e se vc passou tanto tempo com o inimigo vivo, vc já está morto por causa do hitscan.
Além disso, a animação da morte do inimigo está de alguma forma atrasada, pq quando você dispara uma espingarda contra o inimigo, leva um segundo inteiro até que ele registre o tiro como dano (tempo esse que ele continua atacando), tornando essa realmente a pior shotgun da história dos videogames. E olha, ser pior que
VIRTUOSO não é algo que muitos conseguem fazer!
O revólver é a arma que você mais usará devido à abundância de munição, e é uma porcaria. São necessários três tiros para matar o inimigo mais básico do jogo, e a taxa de disparo do revólver é tão lenta que leva 4 ou 5 segundos para matar o inimigo mais fraco do jogo. Não ajuda que todos os inimigos neste jogo sejam bulletsponge que apenas toma tiro até VOCÊ cansar de atirar. Existem tipos de inimigos com metralhadoras que são introduzidos mais pra frente no jogo que leva uma eternidade para matá-los, e quando eles atacam, o jogador cai da vida cheia para zero em menos de um segundo. Sério, não é exagero aqui, realmente acontece nesse tempo.
Todo esse design de inimigos e armas tem o efeito que o jogador é desencorajado a ser agressivo na movimentação. Isso faz com que a maioria das lutas gire em torno do jogador espiando pela cobertura, lidando lentamente com cada inimigo, um por um. Devido à natureza da detecção de acertos da Build aliada a hitscan como eu expliquei antes, ficar fora da cobertura é sempre, sempre, morte imediata.
Isso quando o jogo não buga e inimigos atiram através das paredes ou eles atiram no jogador a uma distância ridícula, como se fossem snippers. Ou ambos, temos snippers que atiram através de paredes, que delicia. E como você pode imaginar, isso não se aplica aos seus tiros que tem um alcance ridiculo e frequentemente "pegam na cobertura" apenas pq a Engine decidiu que sim.
Todos esses problemas estão presentes em bons jogos da Build Engine, como
DUKE NUKEM 3D e
BLOOD, mas Redneck Rampage acelera esses problemas por causa dos designs do inimigo e das armas. Joguei na dificuldade Meejum e morri mais vezes do que qualquer outro jogo de tiro na vida, esse jogo é basicamente o
RAYMAN dos FPS.
A próxima coisa a ser apontada é que o level design deste jogo é muito, muito ruim. Os níveis são enormes, mas o que vc precisa fazer frequentemente depende de enxergar coisas na tela que tem poucos pixels de tamanho. Quero dizer, sério:
Sério, a solução dos puzzles é ver "entradas" ou texturas que tem poucos pixels de tamanho numa fase gigante onde tudo parece desesperadoramente igual, e eu não estou exagerando nem um pouco ao dizer que o que esse jogo exige que você faça para terminar a fase aqui seria um segredo colecionavel para completar 100% do jogo em qualquer outro jogo.
Pq puta merda, sério:
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Eu não to exagerando que vc precisa achar essa textura de rachadino pequena num canto de uma fase que tem caixas empilhadas por toda parte, vc passa por pelo menos umas três pilhas de caixas igual a essa e o jogo espera que vc examine cada uma delas. |
O nível do esgoto aqui é o pior nível de esgoto que já joguei desde
STAR WARS: Dark Forces. E isso trás lembranças as quais não realmente deveriam sair dos limites dos meus pesadelos e gritos desesperados a noite. Para aqueles que não viveram o horror de jogar a fase do esgoto de
STAR WARS: Dark Forces, para estas pessoas felizes, saiba que aqui o esgoto é escuro, confuso, subaquático, interruptores que facilmente vão passar batidos, inimigos alienígenas no pântano que você não pode atingir por causa da detecção de hit de merda... No último obstáculo, o jogador tem que atirar no interruptor em miniatura (sério, deve ter um pixel ou dois essa merda) e inencontrável através de uma pequena abertura na parede da saída .
Como diabos o jogador deveria saber disso? Isso sem falar de um puzzle de switchs que não apenas eu não consegui descobrir o que fazer sem um detonado, como mesmo usando o walkthrough eu não entendi nem remotamente a lógica do que tinha que fazer.
Enfim, como dá pra ver, eu não gostei muito de Redneck Rampage. Deixando o tema de lado, que é algo que na melhor das hipoteses só me faz balançar a cabeça e murmurar "anos 90 é foda, mano...", mecanicamente esse jogo é dos medíocres. Funcional - kinda - mas medíocre. Dava pra fazer pior com a Build Engine? Claro, tanto que essa própria série tem um spin-off que prova isso (Redneck Deer Hunting), mas então definitivamente dá pra fazer infinitamente melhor.
Especialmente pq esse jogo foi lançado apenas um mês depois de
BLOOD e
OUTLAWS, definitivamente não tinha nada nesse jogo que o colocasse a frente dos outros jogos lançados com a Build
Engine (e similares, como a Jedi Engine da Lucas Arts que foi usada em OUTLAWS e
Star Wars: Dark Forces) na mesma
época. Se vc quisesse muito jogar um boomer shooter lançado em 1997, essa seria uma das escolhas mais fracas que vc poderia fazer
TERMINOU?
Sim, terminei. Pq?
BEM, SUPONHO QUE APÓS TODO ESSE RANT, EU DEVERIA APONTAR QUE VOCÊ FEZ A REVIEW DO JOGO ERRADO
Espera, o que?
SIM, O JOGO QUE SAIU NA AÇÃO GAMES É A CONTINUAÇÃO, REDNECK RAMPAGE: Rides Again.
Espera, "Rides Again" não é uma expansão?
NOPE. "RIDES AGAIN" QUE NÃO É UMA EXPANSÃO, E SIM UMA CONTINUAÇÃO PROPRIAMENTE DITA. A EXPENSÃO É A "SUCKIN' GRITS ON ROUTE 66"
Então eu escrevi sobre o jogo errado?
TOTALMENTE.
Entendo. Entendo. Agora, se me permite, Jorge, com sua licença:
Ah bem, foda-se.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
EDIÇÃO 133 (Novembro de 1998)