Em 2008, uma então pouco conhecida empresa japonesa propos um jogo que deveria ser publicado mundialmente pela Sony, mas foi rejeitado pq ele era um jogo muito esquisito e provavelmente não daria certo no ocidente: era inenarravelmente dificil e o jogo não explicava paçoca molhada pro jogador. Vc não tem muita certeza de qual seu objetivo, não tem um tutorial pras mecanicas, a história faz menos sentido ainda e de alguma forma é contada mais pelo cenário do que por NPCs (?!?).
O jogo teria permanecido um daqueles jogos esquisitos japoneses que youtuber adora chamar de "hidden gem" (tudo é hidden gem pra eles), não tivesse sido publicado pela Atlus no ocidente. Porém um jogo tão esquisito e diferente, para alguns injogavel devido a dificuldade, obviamente que vcs sabem como foi recebido né?
É claro que ele foi... excelentemente recebido! Demon's Souls dos melhores títulos do Playstation 3. Deu tão certo que a Sony não titubeou ela própria a lançar sua continuação "Dark Souls" e o resultado foi um gigantesco, colossal, pangalatico, esperiquibertico sucesso.
Dark Souls da From Software em 2011 foi um acontecimento tamanho que não se tornou apenas um jogo aclamado e premiado, ele se tornou muito mais: se tornou um genero (que hoje são chamados de jogos "souls-like"), se tornou um modelo que influenciou toda indústria pela próxima decada (tanto que mesmo que jogos que não tinham nada haver com Dark Souls, como Assassin's Creed adotaram uma postura mais souls-like em suas mecanicas) e se tornou até mesmo um adjetivo. Se isso não é ser um dos jogos mais influentes de todos os tempos, puta la mierda, eu não sei o que seria preciso pra ser então.
Devido a dificuldade altissima ser uma das características mais iconicas dos jogos da From Software, sempre que um jogo é muito dificil passou a ser descrito como "é o Dark Souls dos jogos de plataforma" ou "é o Dark Souls dos jogos de futebol".
Obviamente que isso virou meme e ninguém mais fala uma coisa dessas a sério. Entretanto eu precisei explicar isso tudo em virtude do que eu vou dizer a seguir: King's Field é o Dark Souls do Playstation 1. Só que eu não falo isso de uma forma review preguiçosa tipo "esse jogo é muito dificil, lol, é o Dark Souls do PS1", não. Eu quero dizer literalmente: a série King's Field foram os primeiros jogos feitos pela From Software e desde o inicio você já pode ver muito claramente as raízes do que viria a ser a série Souls.
Se vc acha que eu estou de sacanagem, chupa essa manga: uma ilha foi isolada do mundo por algum tipo de maldição, e de vez em quando um metido a herói vai pra lá ... apenas para nunca mais ser visto novamente. Seu personagem é um desses heróis... e obviamente tomou na rabaneta. Agora vc está preso nesse reino onde dorme um poder ancestral incompreensível para a mente humana e te vira aí, maluco.
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Na época King's Field foi uma grande coisa com esses gráficos mind-boggladores |
Ora, a história da ilha de Melanat é essencialmente a mesma história do reino de Boletaria em Demon's Souls! Os detalhes em especifico são diferentes (Demon's Souls puxa mais pro lovecraftiano e a perca da sanidade é um grande tema aqui), mas a ideia geral da coisa não tem como negar que King's Field é um primeiro rascunho da série Souls.
Mas a parte realmente importante é que jogando os primeiros minutos de King's Field vc tem muito a vibe única da série Souls. Tem algo depressivo e melancolico no ar, uma mistura de silêncio com música atmosférica e o barulho da sua espada que te indicam claramente que nada de bom vai vir daquele lugar.
Quando você começa a jogar Demon's Souls, a primeira frase que recepciona o jogador é "No primeiro dia, foi concedida uma alma ao homem e, com ela, clareza. No segundo dia, sobre a Terra foi plantado um veneno irrevogável, um demônio devorador de almas". E a parte realmente importante dessa frase são as implicações dela: no primeiro dia, Deus deu a alma aos homens. Então apareceu um demonio que se alimentava de almas e Deus não fez nada a respeito disso. Deus não se importa, e definitivamente não vai te ajudar. Ninguém vai te ajudar.
King's Field passa essa exata mesma sensação, ainda que em uma versão prototipo: você está sozinho e ninguém vai te ajudar. Existem alguns NPCs que você se encontra na ilha de Melanat (majoritariamente que foram para lá como você, e como você não tem como voltar), mas eles estão quebrados além da salvação.
Uma garota em uma das raras cidadezinhas pergunta se você, que está vindo das dungeons, encontrou o irmão dela nas catacumbas. Ela não tem esperança de ve-lo vivo novamente, apenas gostaria de se despedir do corpo. Um homem toma sopa em silêncio olhando para o vazio, porque não há mais nada o que fazer.
Como eu disse, King's Field é apenas um primeiro rascunho da ideia final, mas não tem como negar que o conceito da atmosfera já está lá. E não é apenas conceitualmente que o jogo parece um primeiro rascunho de Dark Souls, mecanicamente também: o combate desse jogo lembra o combate lento e metódico dos Souls-like... mas sem os anos de experiencia pra saber o que funciona e o que não.
E por anos de experimentação eu quero dizer literalmente isso: existem ao total 4 jogos de King's Field, mais 3 spin-offs. Ou seja, quando Demon's Souls foi lançado em 2008 a From Software já tinha brincado nesse rodeio 7 vezes antes. O King's Field que tivemos no ocidente é apenas o segundo da série (no Japão é o King's Field 2, mas como o primeiro não foi lançado no ocidente não fazia sentido manter a numeração)... e essa falta de experiencia é algo que dá pra sentir, e não de uma forma boa.O combate de KF é... duro. Tanto quanto literal quando metaforicamente.
A politica da FS é sempre tratar cada inimigo do jogo como um chefe pq senão vc morre. Não importa que vc tenha a ultima armadura do jogo e esteja pronto para enfrentar o chefe final, se vc não lutar seriamente contra os inimigos iniciais eles te matam em 2-3 golpes. Isso é verdade hoje (quer dizer, eu só não joguei Elden Ring ainda, mas ficarei surpreso se esse for o único diferente da famílila), e definitivamente era verdade em 1995.
Embora, verdade seja dita, em 1995 a From Software era bem mais selvagem do que é hoje. Aqui, sério, eis como o jogo começa:
Vc começa em uma ilhazinha e se pisar errado, já morreu. Mesmo para os padrões da From Software isso é bem bruta. Mas hey, vamos ver então como é o primeiro inimigo que você encontra no jogo:
Holy guacamoly, From Software! Botar um objeto brilhante perto de um inimigo que te mata com 1 hit e esse ser o primeiro inimigo que vc encontra no jogo... dá uma boa ideia de como as coisas vão ser daqui pra frente, pq King's Field não dá muito arrego depois disso.
Mas divago, eu estava falando do combate e, como este é o embrião da série Souls, ele é metódico e duro. Só que minha santa margarida da escócia, ele é MUITO metódico e sua margem de erro é zero absoluto armadura de ouro de Aquário!
Existem duas formas de combater os inimigos nesse jogo: vc pode ficar fazendo esse balanço pra frente e pra trás... só que se você errar o timing da espadada, tomou no Frioba. Enxague e repita para todo e cada inimigo do jogo, sem nunca podendo errar.
A outra forma de combate envolve dar a volta no inimigo: os inimigos atacam só em uma direção, então se vc se manter do lado dele vc não tem como ser atingido. Seu movimento é meio clunky e obviamente os inimigos não ficam parados, mas tende a ser o modo mais seguro... se o inimigo estiver sozinho na sala. O que raramente acontece. Então ficar andando sem ver para os lados pela sala pode te manter no ponto cego do inimigo que vc quer matar, mas não tem como ver se vc não está caindo no alcance dos outros.
Então o problema não é que o combate não tem variedade, com esses dois estilos de luta e a proibição de cometer erros, o jogo sem te mantem entretido. O problema é a impossibilidade de errar senão é Game Over, maluco. Errou uma vez, já era começa de novo do último save que fica lá na casa do caralho, supondo que vc encontrou um.
E isso ao longo de um jogo de horas e horas é absurdamente exaustivo. Dificuldade é legal, mas o jogo não pode arrancar o seu couro tão intensamente durante períodos de tempo tão longos... cara, o jogo tem que dar um respiro também.
Porém enquanto a dificuldade do jogo é algo que eu posso entender como parte da proposta, meu maior problema com esse jogo nem é esse e sim o objetivo geral do jogo que é... hã, ele é... o que vc tem que fazer aqui é...
Então, esse é o ponto: o jogo não te diz absolutamente nada. Vc anda por dungeons, sobrevive do jeito que der a pau e corda, mas... pra que? O que é que vc está procurando? Como se avança nesse jogo? Aí é que está: você vai andando e vê o que aparece, sendo que em 98% do jogo você está realmente andando pra ver no que dá.
Andar em uma dungeon sem mapa já é bem ruim (embora as salas sejam diferentes o suficiente pra vc conseguir se virar com um mapa mental), mas andar aleatoriamente sem um proposito? Isso é menos cool. O que é algo que a propria From Software concorda, já que os jogos dela passaram a terem objetivos discerniveis de preferencia dados pelo level design ao invés de dialogo expositivo ao invés de "vai jogando ae e vê o que dá". E isso com o jogo descendo a lenha no seu lombo com a dificuldade sem da respiro. Dificil, amigo.
Do ponto de vista tecnico, o jogo é bastante impressionante. Não tanto pq os gráficos sejam muito a frente do seu tempo, mas pq King's Field não tem "fases" e sim tem um mundo aberto com várias seções interconectadas. A parte realmente impressionante é que esse é um jogo de PlayStation de 1995 completamente 3D em mundo aberto... isso SEM nenhuma tela de loading exceto pela primeira quando o jogo começa. Jogos inteiramente 3D não era particularmente abundantes nessa época, e um que carregue o mundo inteiro sem telas de loading é sem precedentes.
O resultado disso é que King's Field é um jogo muito interessante conceitualmente, a jogabilidade é clunky mas é okay, tecnicamente é impressionante para o PS1, historicamente é um jogo muito importante... só não achei particularmente divertido. Vale pela curiosidade de ver da onde a From Software veio, especialmente em um ano que apenas um milagre tira do Game of the Year de Elden Ring, e é realmente interessante ver como eles estão cultivando essa proposta a decadas, sempre polindo a cada iteração até se tornar o que se tornar a fábrica de empilhar Game of the Year que a From Software se tornou.
MATÉRIA NA AÇÃO GAMES
Edição 103 (Maio de 1996)
MATÉRIA NA SUPER GAME POWER
Edição 005 (Agosto de 1994)
Edição 026 (Maio de 1996)